Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 78: O Plano Perfeito
— Esquenta isso…!
— Mas e se explodir?!
— Vê se só faz o que eu tô mandando e aquece logo essa merda…!
Os níveis pressóricos do cilindro vermelho foram às margens mais perigosas — uma operação complicada — um pouco quente demais e as moléculas escapariam, dilacerando o braço do Savoia.
— Não acha que isso tá o suficiente?! Vai explodir a tua mão, seu maluco…!
— Eu ainda não sinto a minha mão queimando…! Fala menos e esquenta mais…!
A perspectiva de perder um membro não lhe importava, comandante de modo tão distante de si mesmo. Nesse espaço tão separado de qualquer deus, a sombra da psique o consumia do topo à base.
— Eu… eu acho que já tá bom…
As chamas ao redor dos punhos de Steve cessaram. Cauteloso, analisou com cuidado a coisa à frente: uma bomba pressórica, justo no limite do caos controlável.
— O quê?! E se isso não explodir?! Vai arruinar o plano perfeito…!
— Não tem como não explodir…! Ryan, se liga de que a gente não precisa morrer antes da luta começar…!
Ensandecido com a miríade de pensamentos e sentimentos, mordeu a ponta da língua, aplicando o máximo de sua força de preensão contra o metal aquecido.
— Se isso não der certo…
Explodiu com o pesado objeto em mãos, enviando energia para as pernas. No choque da adrenalina, sentiu ser capaz de qualquer coisa, e sua mente o levou a tal horizonte, quando enfim cruzou o corredor à direita.
— … Então eu vou colocar toda a culpa em você…!
Um salto, seguido de um veloz giro em torno do próprio eixo, e tudo foi pelos ares.
BOOOM!
Não se via outra coisa, senão o branco-acinzentado, a se espalhar rumo ao infinito e, como uma cachoeira em câmera lenta, as nuvens se derramavam sobre o chão, roubando calor para abandonar a forma visível.
Steve de fato atingiu a proporção certa e nesse instante, prometeu agradecê-lo, caso sobrevivessem. Por agora, porém, isso teria de esperar.
— Ei…!
O estado de flow causado pela explosão de hormônios o levou a esquecer das dores e, dentro de um gesto ágil, pegou a garota do chão, tão leve quanto um travesseiro.
Se preparou para bater em retirada e levá-la tão longe quanto possível, porém, para sua boa surpresa, percebeu o toque em seu punho logo no primeiro passo.
— Huh?! Você tá acordada?!
Abigail se debateu, besuntada pelo próprio vômito azedo. Dotada de surpreendente força de vontade, a jovem se ergueu, abandonando os cuidados do Savoia.
— Eu… Eu… — desnorteada, demorou para tomar os arredores. — Eu…
A dificuldade de respirar era clara, evidenciada pelas inspirações profundas e orais. Confusa, piscou com força, na tentativa de se arrancar do torpor gerado pela intensa onda de energia.
— Ah… Eu… O Jacob… Ah…!
Voltou presa a um estado ainda sub-ótimo de consciência, mas que a possibilitou apontar, com dificuldade, para a névoa.
— Salve… ela… — implorou, fraca. — Salve… a Olivia…
Não existia tempo para ponderar; se podia se levantar e falar, também conseguiria andar, e por mais penoso que se encontrasse quanto à sua situação, não podia se dar ao luxo de arrastá-la.
— Vamos salvar ela… Mas, você…
Dentro de centésimos de segundo, tomou toda a forma da garota. Abigail tinha um porte atlético, além de deter de certa resistência. Mesmo abatida, parecia ter energia suficiente para correr.
— Você vai me fazer um pequeno favor…
O contexto não possibilitaria questionar os motivos éticos de sua decisão e não poderiam fazê-lo caso morressem. A decisão dele no momento foi um ato não menos que necessário.
— Huh…? O que você… — reagiu ao toque dele em seu rosto. — Isso…!
— Tem gente esperando por você e só você pode fazer algo! Essas pessoas… elas precisam de ajuda…
O roxo na visão dele a penetrou, escavando as profundezas da mente, criando conjuntos e redes, fundadas em apressadas memórias falsas.
— Elas precisam de você… Elas estão gritando o seu nome agora… Precisam ser salvas…
Alterar as lembranças dela se comparava a construir um robô com restos de sucata. Pedaço por pedaço, catou informações e as agrupou, criando novas histórias a partir de algo anterior.
— Elas estão no corredor dos banheiros do primeiro piso, sangrando. Uma tem uma perna quebrada e por isso não se move, a outra, machucou o braço... Corra! Elas precisam de você…!
Tão logo, uniu fragmentos das próprias lembranças, vindas da tragédia no andar de baixo e, no tempo de um estalo, costurou a imensa colcha de retalhos que enfiou na mente já perturbada da adolescente.
— Hkk…! — assombrada, cambaleou para trás, quase em queda. — Elas… Como eu me esqueci delas?!
A artificialidade do terror deixou um amargo gosto. Com pressa, não teve tempo de criar algo novo. Sempre seria muito mais simples trabalhar com coisas pré-existentes.
— Eu… eu tenho que ir atrás delas…! Nós três nos separamos e…!
Os detalhes sobre Olivia foram apagados, desmontados e reutilizados, no propósito de criar uma linha falsa, onde os eventos se sucederam de forma diferente. Com sorte, não haveria jeito de separar a realidade da invenção e contava com tal aposta.
A criação resultou em um trabalho frágil e cheio de improvisos, algo até esperado, posto ter levado só dois segundos para construir.
— Uh… Uhh…! — hesitou, mobilizando a ansiedade a lhe invadir as veias. — Você… Você também tem que…!
— Foge daqui…! — exclamou, soando enfurecido pela falta de ação da adolescente. — Desce a porcaria dessas escadas e não olha para trás…!
O brilho arroxeado trouxe as últimas memórias confusas acerca de Jacob, similares ao extremo às exibidas quando estava prestes a explodir alguma coisa.
— Eh… Eeeeh…?
O corpo dela recusou-se a mover um músculo, paralisado pela mente, exigente quanto a uma explicação para essa loucura.
Ao contrário de todos os outros, esse cara, em particular, não temia a situação, além de propositalmente atacar Jacob. Em outras palavras, ele sabia o que estava fazendo.
“Ele… O nome dele…”
O conhecia de algum lugar e tinha certeza disso. Ela sabia como chamá-lo — sentia isso —, mas a lembrança lhe faltava, perdida na ponta da língua.
“O nome dele é…!”
Não estava coberto de bandagens e sujo de cinzas da última vez, porém, por mais que cavasse e coçasse por cada recanto de seu cérebro…
BOOOOOOM!
O tremor do abalo a arrancou da inércia, ensinando a mente sobre a existência do restante de seu ser, retomando o controle.
“As minhas amigas… Elas precisam de mim…!”
Rapidamente, desceu as escadas e fugiu da cena de embate, focada em cortar o caminho até o piso mais inferior.
“Eu preciso ser rápida…!”
Ao observar o lado de fora, notou pela falta dos insetos. Por todo lado, pilhas e montes deles jaziam, mortos.
“Como foi que todos morreram…?”
Poderia nomear cada um dos clássicos sinais de ruína, esperados de uma construção abandonada há décadas, em uma escola que, até poucos minutos no passado, se mostrava íntegra e rija.
“O cheiro de fumaça… só fica cada vez mais forte…!”
Fechou o nariz com a manga longa de sua blusa antes branca. Os tons de cinza traziam um aspecto claustrofóbico à edificação, atrapalhando a dispersão da luz e a impedindo de ver bem.
— Ahk…! Droga…!
O objeto, não visto, quase a desestabilizou ao ser pisado. Quase caindo, os tendões de seu tornozelo gritaram, desfavoráveis ao súbito estiramento.
— Ai… Ai…! — parou, agarrando a perna esquerda. — Isso doeu… mais do que deveria…!
O tato da mão destra tomou um pedaço de madeira, aquilo que lhe causou tal dano. Tomada por frustrações e instável demais para pensar, atirou a coisa longe, deleitando-se nos ecos distantes.
— Eu… tenho que continuar…!
Ainda faltava um lance de escadas até o térreo, e em meio a tanto sofrimento, se questionou, outra vez, o motivo de ter ignorado a presença de suas amigas e o fato de que precisavam de sua ajuda.
— Elas estão machucadas…!
Memórias borradas e avulsas, mistas de gritos e clamores de dor e sofrimento, a conduziram a se levantar e dar os últimos passos pesados rumo ao térreo, despreparada para o que descobriria.
— Uh…?
O lugar, sequer remotamente, a fazia pensar se tratar de um pátio escolar, pois, além da ruína nas paredes, portas e lâmpadas, a nova camada de pintura lhe revirou o estômago.
— Ahhh…
Sangue, entranhas e massa cinzenta, decoração cuidadosamente selecionada por seu perseguidor, aos gostos do desejo distorcido, sob o ousado nome de “amor”.
— Jacob…
Quis tomar um passo para trás, impedida pelo tornozelo. Graças ao tempo em que permaneceu parada, a lesão teve tempo para inchar. Logo, intensos puxões e choques se tornaram a totalidade das sensações na perna direita.
— Jacob… O que… você fez…?
A fumaça densa servia de único motivo para não ter vomitado. Imperativo, o odor do incêndio sempre chegava primeiro ao olfato, quase em uma demonstração de pena por parte da realidade.
— Ahh… Ahh…! — perdeu a estabilidade e caiu sentada no último degrau. — Ahh… Jacob…!
Lembranças iam e vinham, no ritmo das gotas de sangue saídas do amontoado de corpos. Por dentro, um combate de memórias revelou o caminho que culminou nesse ponto.
Quando as coisas mudaram? Em que momento preciso a personalidade daquele cara tão gentil se tornou nisso?
— Jacob… — trêmula, mirou fixamente no braço decepado de uma garota. — Por quê…? Por quê…?!
Ele era tão bom no começo… um tanto tímido, mas sempre arranjava um jeito de usar o bom humor para passar por cima de qualquer medo e falar com ela mesmo assim. Olhando para o passado, gostava bastante daquele humor.
— Por que você fez isso…?!
Lhe eram óbvias as suas tentativas de agir como um “bad boy” ou algo parecido, porém, Jacob nunca fez esse tipo de verdade, e por mais que pertencesse ao grupo dos jogadores de futebol, tinha claras diferenças e individualidades.
— Por que você mudou…?!
Tinha um gosto forte por música, com apreço por compartilhar melodias, dedicadas especialmente a ela. Sempre amou aquele brilho nos olhos dele, ao pegar o violão e fazer sua mágica.
— Hic…! Hic…! — cobriu os olhos chorosos. — O que aconteceu… com você…?
Ele mudou — “quando” e “por quê” eram suas maiores dúvidas — e nunca voltou ao ideal pelo qual se apaixonou. Aquela coisa, lá em cima, não tinha como ser ele.
Se iniciou com atos pequenos; de início, um pouco de possessão a mais, preocupações desnecessárias com seu jeito de se portar ou vestir, mas até então, bastava conversar e atingiriam um acordo.
Mas os meses passaram e esses comportamentos evoluíram em uma obsessão extrema. Jacob construiu um pedestal, a colocou nele e, de repente, cada aspecto de sua vida passou a lhe dizer respeito.
E surgiu a agressividade, o jeito terrível com o qual a trata atualmente, os insultos e as ameaças constantes ao seu espaço pessoal, certas vezes em proporções criminosas.
Algo ocorreu com ele e essa só podia ser a explicação. Saber disso, porém, não eliminava a questão principal.
— Por quê…?
Por quê ele não podia voltar a ser o cara suave e meio abobado que teve o prazer de conhecer? Que tipo de coisa arrancou aquela essência tão maravilhosa? O que tornou tamanho carinho e segurança nesse pesadelo?
— Jacob… Por quê?!
A indagação reverberou pelos corredores vazios, respondida pelo silêncio e Abigail, tendo caído ao vale de sua dor, entregou-se às sombras, presas no fundo do seu próprio coração.
“Por quê…?”
O cansaço forçou a vista a ceder, e sob o abraço gelado do torpor, escutou algo, pesado e ritmado, se aproximando das escadas.
… … …
— Isso… Eu não acredito… É uma sobrevivente…?!
O grupo de sete policiais cortou caminho agilmente por entre o oceano de cadáveres destroçados. No caminho, esmagaram ossos, fígados e a metade de um cérebro, esforço necessário diante da revelação.
— Ela… A garota tem um pulso… Ela está viva…!
Qualquer vida íntegra tinha de ser comemorada, os preenchendo com a esperança de descobrir mais, afinal, se existia um sobrevivente, haveriam de existir outros.
— E parece totalmente bem, também…! Deve ter desmaiado por conta do choque…
O mais distante puxou do bolso o rádio comunicador, pronto para anunciar a melhor coisa até essa altura do dia. Ansioso, pressionou o botão e procedeu a falar.
— Encontramos um sobrevivente! Repito, encontramos um sobrevivente…! Solicito permissão para condução para o lado de fora…! É uma garota! Ela parece estar bem!
Animados, os membros da equipe anteciparam a resposta positiva, e um dos homens logo tratou de arrumar a menina o mais confortavelmente em seus braços.
— Permissão concedida…! — vibraram em esperança e animação. — Tragam a menina e continuem buscando por…
GAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!
— Merda…! O que é isso?! — O oficial, com a jovem nos braços, se assombrou com a imensa vibração. — … Pareceu um terremoto…!
As paredes e o teto estremeceram e logo, rachaduras se abriram em cada canto visível. Por um breve instante, as luzes piscaram e vidro estourou ao longe.
Não tinham a mínima ideia da causa, porém, o conceito da origem foi unânime e subentendido desde o princípio dos longos vinte e três segundos de medo do teto cair em suas cabeças.
— Foi um grito... Isso foi a porra de um grito...! — a mulher mais próxima da sobrevivente anunciou, em tremores. — E… veio do andar de cima…!
A mulher tomou a arma tirada da cintura. Hiperventilando, a mira trêmula apontou a escuridão dos andares acima.
— Martin… você sobe e leva a garota… Eu e os demais… nós vamos descobrir mais sobre isso…
Trocaram um breve aceno e sem mais uma palavra, a equipe se dividiu, levando os seis restantes ao andares superiores.