Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 77: Obra de Arte

O dia corria bem e talvez, um pouco menos corrido do que tinha por costume, e isso queria dizer algo incrível.

Ao menos, muito melhor em comparação aos que costumava ter naquele poço de tortura infernal chamado “escola”.

— Hmm…

Murmurou sozinha, enquanto desenhava em seu caderno de desenhos uma paisagem e tanto. Sobre o papel, linhas vermelhas, amarelas e alaranjadas se enchiam em um grande foco de incêndio, de chamas agressivas, como as de um dragão.

Podia ver o fogo dançando, irradiando seu calor sobre as estruturas antes tão imponentes, fazendo-as ceder ao seu teste, até não serem mais do que uma pilha de cinzas.

Seu desenho, feito com tanta dedicação desde o início da manhã, estava quase perfeito… Quase, pois lhe faltava uma cor.

“Eu não consigo achar…”

E desde os mesmos primeiros minutos de seu dia, buscou incessantemente pelo que lhe faltava. Sem esse detalhe, sua arte não poderia estar pronta. Sem essa cor, olharia para seu trabalho e sentiria uma terrível falta, um vazio.

Certamente, não era para nada grande; somente colorir um detalhe aleatório no cenário, mas se indagar onde o tal lápis havia parado a deixava com uma pulga atrás da orelha.

Logo ela, que sempre foi tão organizada com seus materiais artísticos, não perderia um pedaço tão importante de seu kit de forma tão desleixada.

“Onde será que foi parar?”

Seus olhos correram por um último instante pelos arredores da sala, buscando, esperançosamente, por isso que sabia não estar prestes a encontrar em qualquer lugar ali perto. 

Mesmo assim, seu coração teve esperança.

— … Cheguei…! Demorei, mas cheguei…!

A voz exausta a arrancou de sua busca, assim como o barulho da porta a se fechar. Logo, esses sons deram lugar ao amassamento das compras em sacolas plásticas e passos calçados em sandálias.

Esse sinal enviou por seu pequeno corpo uma descarga súbita, a motivando a agir.

— Demorei demais, filha? As coisas… Estiveram complicadas lá fora!

— Ah, mamãe…! — Ela saltou da cadeira. — Deixa… deixa eu te ajudar com isso…!

Rapidamente, suas pernas a guiaram até a mulher, e os braços logo trataram de tentar pegar para si as sacolas pesadas. Vê-la assim a preocupou, porém, houve algo que não antecipou.

— Ah, minha filhinha…!

Ela deixou as compras caírem, não se importando com seus conteúdos. Em um impacto único, o peso do que o plástico continha a abandonou, dando lugar ao carinho aconchegante e apertado que daria para sua cria.

— Eu fiquei tão feliz… Tão feliz que você resolveu que ainda não estaria pronta para voltar à escola hoje…!

Sua voz soava chorosa, e logo, a menina percebeu as manchas de umidade crescendo em seu ombro direito, se instalando em suas roupas. 

— Ah… mamãe… — Se esforçou para falar.

— Minha Phoebe…!

Pensou em modos para confortá-la, porém antes de ter a chance de executar algum, foi pressionada com ainda mais força. A reação tomou um pouco de seu ar, no início.

— Phoebe, você não faz ideia de como eu estou feliz por você ter faltado às aulas hoje…!

A validade de seus dias fora da escola já havia acabado. Com sua recuperação daquela infecção estranha, os médicos acharam por bem devolvê-la à sua rotina logo ao perceberem que tudo estava normal.

Olhando atrás, foi algo estranho. Um dia, ela simplesmente acordou em um leito de hospital, sentindo-se como se nada de mais houvesse acontecido. 

Seus olhos se abriram, e se encontrava em uma condição tão ideal quanto a de sempre, senão um pouco melhor, até. Seus níveis de energia demoraram um pouco em se restabelecer, mas, para apontar um fato…

“Eu nunca me senti tão bem.”

É claro. Não foi uma simples infecção.

“Foi o meu presente… O meu pagamento, ao fim de ter sofrido tanto nas mãos de todos eles.”

Um sorriso que começou tímido surgiu em seus lábios, logo adquirindo proporções de coragem e grandeza. Sua mãe não o via, e mesmo que visse, isso não faria diferença.

— É… Eu também estou feliz por estar aqui com você hoje, mamãe!

A televisão não foi desligada a menos de cinco minutos. Ela sabia do que acontecia e por isso, buscou representar ao seu próprio modo. Se uma coisa a vida lhe ensinou, é que deveria formular suas próprias interpretações sobre toda informação.

— Ah, minha Phoebe… Me perdoe se eu te deixei preocupada, minha filha… É que a rua… Está tão cheia de abelhas…

Com um afago final, acariciou as costas de sua mãe, sentindo nelas duas pequenas marcas em forma de calombos.

— Felizmente, eu consegui me esconder antes de ser atacada, mas não pude evitar de ser ferroada algumas poucas vezes… Você… você poderia me ajudar a sentar no sofá? Eu… Eu… Eu acho que posso estar desmaiando…

Seus braços se moveram prontamente, capturando a mulher não tão mais pesada, embora um pouco maior. Com cuidado, acomodou seus fios longos e volumosos, antes de ajudá-la a sentar.

— Precisa de mais algo, mamãe? Se quiser, por favor… Me diga!

Rita sorriu diante das virtudes de sua filha, sempre tão carinhosa. Lentamente, balançou sua cabeça em negação, com a mão na testa e cotovelo apoiado no braço do sofá.

— Não, não precisa, minha querida. Eu vou ficar bem… já até me sinto melhor, depois de receber tanto cuidado assim…!

— Mamãe, por favor, não faça brincadeiras…! Você sabe que eu me preocupo!

— Sim, eu sei… Eu sei, e por isso eu agradeço muito…! Você é o doce da minha vida, filha!

Rita puxou sua filha para mais perto, aconchegando-a junto de si, ao lado, e com felicidade plena, pela primeira vez notou o caderno de desenhos, aberto em um trabalho magnífico.

— Eu acho que você nunca me mostrou esse…! É tão lindo!

Sua observação do que julgou ser um trabalho digno de uma exposição artística durou pouco, já que os finos dedos de Phoebe trataram de roubar o caderno de volta.

Encabulada, a menina abraçou sua arte, prendendo-a contra o peito.

— Ainda… Ainda não está terminado…!

A entonação contundente e o olhar esquivo, juntos da postura defensiva, só aumentavam a vontade que tinha de agarrá-la ainda mais forte.

— Mas está lindo! Por que você não quer me mostrar? Sabe que não vou te julgar… muitíssimo pelo contrário!

— É… É que eu não quero mostrar um trabalho… inacabado, sabe? Eu… Eu quero mostrar quando estiver pronto… e só quando estiver pronto…!

Tomou essa postura tão doce ao coração. Desde sempre, foi tímida quanto a mostrar seus talentos, e enquanto mãe, Rita Martinez se empenhou para nunca cobrar demais de sua filha, enquanto não estivesse no tempo certo para fornecer resultados.

Ela o faria quando bem entendesse, e quando enfim acontecesse, seria algo maravilhoso, disso ela tinha certeza.

— Certo, certo… Esqueci que minha filha é altamente criteriosa com seus padrões, então, que ela me desculpe!

O tom brincalhão gerou um abraço compartilhado, dividido com a elevação do controle para ligar a televisão, e no pressionar do botão, contou-se, exatamente, três segundos para a realidade se mostrar.

— Minha nossa… — Rita suspirou. — Isso… Isso é horrível…

E todo o clima de leveza foi levado embora pelo estrondoso barulho da fala do repórter, noticiando o que ocorria a pouquíssimas quadras dali.

— Fazem exatamente três minutos, nesse exato momento, que a primeira equipe de sete policiais entrou na construção…!

O tempo marcado no relógio fornecido na tela pelo noticiário local era de 12:23 AM. Do lado de fora da escola, via-se uma intensa movimentação.

— E temos uns oito minutos desde que a misteriosa “nuvem de abelhas”, como os populares começaram a chamar, foi completamente destruída por um fenômeno ainda mais misterioso…!

A filmagem mudou para focar no chão de concreto e grama, e em específico, na massiva quantidade de abelhas no chão, muitas, ainda, se debatendo em busca de sobrevida.

O número de insetos era colossal, cobrindo quase perfeitamente o chão, trazendo inúmeras perguntas para a imprensa local.

— Jack, já foi recebida alguma resposta por parte dos oficiais sobre alguma parte do que aconteceu e continua acontecendo nesta manhã?

O foco do noticiário se alterou, com a tela dividida entre mostrar as filmagens ao vivo e a bancada com os apresentadores do programa matinal encaixado naquele horário. Em uma mesa, os três apresentadores se dispunham a discutir sobre o que ocorria na escola.

— Nenhuma notícia confirmada ainda, Eileen, mas o que se sabe é que não há explicação científica plausível para essa série bizarra de fenômenos.

O repórter, de aparência jovem, tinha dificuldades em trafegar, se limitando a cobrir uma distância curta, antes de voltar. Apreensiva, a equipe aguardava, conforme nenhuma resposta era recebida.

— Já se fala na possibilidade de mandar um novo grupo para o interior da Elderlog High, embora nada seja confirmado no momento… Espere… um sobrevivente?! Foi encontrado um sobrevivente!

O noticiário continuava a correr, e em nenhum instante, Rita largou da filha. Abraçada com sua menina, a preocupada mãe agradecia mil e uma vezes pelo milagre da coincidência que lhe foi dado.

— Phoebe, minha Phoebe… Isso é tão… Isso é tão horrível…

Jamais a veria da mesma maneira após a recente infecção violenta. Quando ninguém tinha mais fé, ela foi a única a acreditar, e por causa de seus esforços, somados ao seu amor, sua filha agora estava viva e quente, bem ao alcance dos braços.

— Vamos… Vamos parar de ver isso, sim? Nós não precisamos ficar vendo esse tipo de notícia triste!

Mais uma vez, capturou o controle em seus longos dedos e, com pressa, procurou pelo botão de desligar. O noticiário da televisão não estragaria seu ótimo dia.

— Vamos fazer uma lasanha, sim? É a sua favorita!

Depois de tanta dor, ter de lidar com isso era o que menos queria, e ao encontrar enfim o botão…

— Oh, meu Deus…!

A câmera deu zoom no primeiro grande registro humano do dia.

— ALGUÉM CAIU DA JANELA…! Foi um rapaz… UM RAPAZ CAIU DA JANELA AGORA MESMO!

A câmera da mais alta definição capturou com ricos detalhes o momento em que uma vidraça partiu em milhares de pedaços e um adolescente caiu do segundo piso.

— ALGUÉM…! — gritou Jack, sem profissionalismo. — POR FAVOR, ALGUÉM FAÇA ALGO PARA AJUDAR!

Forças policiais se mobilizaram, juntas de bombeiros e até alguns poucos populares, e em questão de segundos…

— Eu acho que já é isso por hoje…

A surpresa veio por parte de Phoebe, que pressionou o dedo de sua mãe, arrancando a vida do aparelho mais uma vez. Resgatando a mãe de seu transe, a menina tão similar a ela trocou um olhar cheio de significado.

Ela queria a lasanha, e não seria o noticiário local que a impediria de devorá-la o quanto antes.

— Não se preocupe! Eu vou pegar os ingredientes.

Repousou seu caderno de desenhos, fechado, sobre a bancada da televisão, e em passos ágeis, juntou, sozinha, todas as cinco sacolas contendo as compras do dia.

— Filha, você não precisa levar elas agora, eu…!

— Eu já estou bem, mãe! Não precisa se preocupar! Não sinto mais nenhuma consequência daquela doença esquisita!

— Certo, mas…

O semblante de Phoebe carregava algo fácil de identificar, porém impossível de se definir com precisão. Em sua boca, o leve sorriso apontava rumo a um êxtase vital já não visto a muito tempo.

Foi fácil perceber sua súbita mudança de atitude quando, de repente, uma onda de otimismo consumiu sua garotinha, antes tão tristonha e fechada.

Talvez algo de especial tenha acontecido? Notas boas nas provas? Um garoto que expôs algum tipo de sentimento por ela? Ou uma garota, afinal, quem sabe?

Tudo o que Rita mais desejava saber era sobre a origem de tamanha animação fervorosa.

— Prontinho! Eu já deixei todas as compras na cozinha, mamãe! — anunciou, tendo voltado depressa demais. — E, ah, eu encontrei, até que enfim! Estava sobre a mesa de jantar! Eu acho que devo ter esquecido ontem ou algo assim…

Mostrou o objeto com uma graça infantil, sua cor contrastando diretamente com o tom de cobre de seus cabelos e o marrom-claro das sardas. Contra seu peito, ela o mantinha como seu pequeno tesouro.

— Eu estive procurando por isso o dia inteiro, mas não achei em lugar nenhum… Ainda bem que eu não tinha perdido o meu lápis roxo!

Agora, finalmente, poderia colorir do jeito certo à figura solitária que queimaria até as cinzas, no centro do fogo infernal.



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