Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 76: Amor
— Continue perto de mim… e na primeira oportunidade que tiver, você foge…!
Os corredores do terceiro piso enfrentavam os piores dias desde sua construção. A cada centímetro, lascas de madeira e cacos de vidro enfeitavam o chão, e as luzes quebradas o garantiam um ar fantasmagórico.
Um verdadeiro furacão passou pelo lugar, avançando décadas de ruína, abandono e vandalismo, em questão de alguns minutos.
— Ele me quer viva… Não vai te fazer nenhum mal se estiver do meu lado…!
No meio da destruição, a tentativa de soar confiante perdia sentido nos passos para trás, cuja única serventia era mostrar o quão encurralada de fato se encontrava.
O lado de fora foi tomado por uma nuvem viva. Tentou sair antes, mas, seja pela porta da frente ou qualquer janela, a cortina de insetos não perdoou qualquer oportunidade.
— Abby, por favor! — A voz cantante, vinda da direita, a alertou. — Você sabe que eu não quero ter que te machucar! Por favor, meu amor! Me escuta e larga dela. Vem ficar comigo…!
Abigail não tinha mais para onde correr e seu conhecimento do terceiro piso dizia que de um lado só veria salas vazias, enquanto do outro, um caminho sem saída, em direção aos banheiros.
— Jacob…! Quando é que você vai entender que eu não quero saber de você?!
A jogada desesperada da arroxeada era assistida em silêncio, por quem ela insistiu em proteger. Atrás, se escondia uma moça muito mais alta, de semblante morto e afogada em pensamentos.
“Então as teorias da conspiração estavam certas esse tempo todo…”
Seu tornozelo, inchado e dolorido, tinha apoio em um guarda-chuva que pegou pelo caminho e mesmo que sua altura avantajada não ajudasse, foi o suficiente para que descobrisse a verdade.
— Abby, deixa ela! Ela é a última pedra no meio do nosso caminho!
Ele sequer estava ali, como se tudo não passasse de um joguinho. Por mais que soasse tão próximo, teria ainda de cobrir alguma distância até alcançá-las, em passos lentos e incômodos.
— Pensa no futuro que a gente pode viver juntos, e pensa, também, em como isso tudo podia ter começado antes, se essa maldita e as amigas dela não tivessem interferido…!
Eventualmente, aprendeu do que toda essa batalha se tratava ao trombar com ele, pessoalmente; Jacob não queria que acabasse tão cedo, por isso, sempre a deixava tomar um pouco de vantagem, antes de retomar a perseguição.
— Do que você tá falando…? Jacob… Por favor… só entende que a gente não tem mais nada…!
Abigail veio a entender que ele desejava sua rendição — que ela mesma se entregasse, de corpo e alma —, para satisfazer seja lá qual desejo tenha, e iria eliminar cada um no caminho com algo estranho.
“Como ele está fazendo isso…?”
Veio a pensar que tinha um rastreador preso no corpo, pois ele, em todas as ocasiões, a achava, independentemente do quão distante estivesse.
Às esteve perseguindo até então, utilizando de algum meio para causar essa destruição toda, com o qual não tinha condições de se preocupar com teorização ou inferência.
— Me escuta…! — olhou para trás, capturando a imagem cabisbaixa de Olivia. — A gente tem que ficar juntas… A gente vai segurar ele até as autoridades chegarem…! Se estivermos juntas, não vai fazer nada contra nenhuma de nós…!
Olivia não respondeu, fixa no chão, cabelos ocultando grande parte de seu semblante. Não tinha a energia ou a condição mental de dizer algo, afinal, como poderia?
“Isabella não conseguiu.”
O crânio de Ava foi feito em gelatina e a situação não parecia agradável para Isabella também, fato esse confirmado pela última frase dita por ele. Jacob queria sangue — o seu sangue.
— Abigail…
— O quê?! O que você está fazendo?! — entrou em desespero, diante da ação. — Não…! Não faz isso…!
A mais alta sabia o que fazer e segundo as teorias que olhava na internet, forças policiais não fariam nada de bom.
— Olivia…! Fica do meu lado… Não se aproxima dele…! Não…!
A arroxeada, mesmo usando de todas as forças, teve dificuldades em puxar a mão da gigante Olivia, de uma voz ainda mais robótica e menos viva do que antes, unida a um olhar de puro abandono.
— Se salve. Ele vai ficar ocupado comigo e isso vai te dar tempo para correr.
De certo modo, há tempos cogitou essa série de possibilidades e se sentia preparada para a escolha a ser feita.
— Não…! Você não pode desistir assim…! Olivia…!
A puxou para trás com a força de todo o corpo, se abraçando à garota que tão pouco conheceu, pois suas vidas dependiam disso.
— Eu não vou te deixar ir…! — exclamou, chorosa. — Eu não vou me salvar por cima da sua morte…!
— Você sabe que isso só vai te trazer problemas, não? Não tem escape daqui. Não dá para fugir disso.
— Mesmo assim…! Eu não vou te abandonar…!
O abraço, tão apertado a ponto de doer nas costelas, roubava o ar do membro do agora finado Clube de Literatura. De vista cerrada, Abigail falhou em ver o perigo materializado logo à frente.
— Eu não quero ter que fazer isso do jeito difícil… Eu odiaria ter de te machucar, meu amorzinho…
O escape das palavras foi frio, temperado pelo conjunto de acordes lentos da guitarra. O limite da paciência eventualmente o alcançou.
— Não corre de mim, amorzinho… — exclamou, quase inaudível. — Eu não quero ter que causar um arranhãozinho na sua pele tão bonita e macia…
As roupas dele, embebidas de sangue e carne alheios, a davam bem mais que somente nojo. Caso não houvesse dito um sussurro, ainda saberia que está perto, graças ao cheiro repugnante.
— Nos deixa em paz…! — exclamou, em vão. — Pela última vez…! Eu não quero nada com você e nunca vou querer…!
A reclamação caiu em ouvidos surdos. Não eram essas as palavras que ele queria ouvir, e estaria determinado a fazer esse ajuste nas intenções de sua amada.
— Sabe, por todos esses dias que a gente teve que ficar afastado… a única coisa que me manteve vivo foi o seu amor, Abby…
O ar ao redor dele estremeceu, se comportando em ondulações, distorcendo a imagem, tal qual um espelho d’água, sinal que elas vieram a descobrir se tratar de algo muito ruim.
— Olivia, fica para trás…! Ele… ele vai fazer aquilo de novo…! — Mesmo que não soubesse do conceito, detinha de conhecimento intuitivo acerca do que ele preparava. — Por favor, fica longe…!
Seria um ataque; um bastante poderoso, por sinal, já que nunca viu as tais ondas se espessarem tanto, em um tempo tão prolongado de preparação.
A jovem tomou um passo retrógrado, arrastando Olivia.
— … Quando o meu corpo tremia tanto que eu não conseguia me mexer… Quando os meus nervos congelavam, queimavam vibravam e entravam em choque, tudo ao mesmo tempo… Quando a minha carne parecia que tava sendo rasgada, costurada e depois dividida de novo… em milhões de pedaços… Nessa hora… tudo o que eu pensava era em como eu queria ver você…
As fitou, penetrando o fundo da alma daquela que dizia tanto amar com o brilho dourado.
— Me deu essa voz, para que eu possa sempre te dizer, em alto e bom tom… falar o quanto eu te amo — sussurrou, imitando a sutileza do vento.
Tocou um sucinto ré menor. A nota saiu chorosa, potente de modo impossível. O som escavou os ouvidos, a levando a se questionar se não estariam sangrando, a julgar por quanto doeram.
— Vou te dar a última chance, meu amor… Deixa ela de lado e vem comigo.
Imbarganhável, incapaz de ouvi-la e compreendê-la; sentimento muito mais profundo do que simples idolatria. As coisas no coração do rapaz jamais poderiam ser explicadas e nem mesmo todas as palavras, de todas as línguas, teriam sucesso.
Aquele que um dia ousou tratar como um amante, hoje não mais a ouvia e não havia palavra que o fizesse compreender.
“Espera…”
Ou, talvez, houvesse algumas. Corajosamente, desviou o foco da fina dor do ouvido direito, e se dirigiu a ele.
— Tudo bem. Eu vou com você… Nós… vamos ficar juntos… como você quer…
Tais palavras preencheram a boca de amargura, forçadamente engolida para as profundezas do estômago, não muito melhor que o restante do corpo. Ela se sentia nauseada e desejava que tudo isso só pudesse acabar.
— Eu… eu vou… Eu vou com você… Mas… mas…! — abriu os braços, soltando Olivia e se pondo frente a ela. — Deixa… deixa ela viver…!
E tão logo disse isso, toda a atmosfera mudou, chocando seus corpos com um segundo impacto, mais violento e indiscriminado, de qualidades diferentes.
— Urrrgh…! GAH…! — gritou ele, agarrando a cabeça.
Foi repentino, os atingindo de forma similar a uma onda. O impacto confundiu seus sentidos, arrancando, temporariamente, as noções de tempo e espaço. Foi claro, desde o princípio, o fato de não ser trabalho dele.
“O que… é isso…?” questionou Olivia, em pensamento, sem forças para se levantar.
Só podia ser descrito como uma mistura absurda de todas as coisas, tão plural que se tornava nada, embora também fosse tudo. Quando chegou, perderam o chão e as luzes que ainda funcionavam ficaram loucas, flutuando com eles pela ausência sem limites.
Carne raspada, coração esmagado, estômago revolto, garganta trancada, gritos abafados, mistos de muito mais, tão rápidos quando a luz, esticados ao longo do que diriam ter sido horas.
E tão velozmente quando se iniciou, findou, sem avisar.
— Ugh… Bluergh…!
O café da manhã, acumulado sob a forma da poça amarela, mostrou seu rosto, que demorou tanto para ser reconhecido.
— … Eu… não queria isso… para você… para mim…
A voz ao fundo se dirigia a ela — sabia quem era e desejava se lembrar —, mas as lembranças se confundiam e misturavam.
— Eu sei… que você… nunca me amaria… desse jeito… E eu juro… eu não… queria… isso…
Quis se mover e vê-lo de frente, porém os espasmos de seus músculos desorientados não a permitiam.
— Mas… eu não… suporto… Eu… não tenho como negar… essa voz… dentro… essa voz que… me manda… te perseguir… te… procurar…
A realidade não fazia sentido. Quem seria ele? Quem era ela? O que é tudo isso?
— Eu tentei pensar… mas… isso… me afoga… Eu tentei… lutar, mas… sempre… fala mais alto… Isso não… é certo… mas… me força a fazer…
O som da nota musical a fez lembrar de tudo. Em conjunto, as memórias vieram, tal qual a onda que as arrancou, a preenchendo do contexto perdido, revivendo o medo.
— Isso… me machuca… moendo… moendo… moendo… dentro da minha cabeça… me levando… para você… Não dá… para negar… para debater…
Ouviu somente sussurros e quase nenhum ar fugiu dos lábios dele. Se uma coisa notou, porém…
— Meu coração… é uma ferida aberta… com um buraco de flecha… e estar longe de você…
É que não continuaria assim.
— … É O QUE FAZ ELE SANGRAR…!
Em ritmo acelerado, Jacob deixou a guitarra para a mão esquerda, cobrindo os vários metros que fizeram o ótimo trabalho de separá-los por aquele tempo.
— MAS AGORA, ELE NÃO VAI SANGRAR MAIS…! VOCÊ VAI CURAR O MEU CORAÇÃO… COM O SEU AMOR…!
Lhe restavam apenas dez metros, tempo suficiente para, talvez, puxar ar e pensar um pouco sobre algo qualquer.
— EU NÃO VOU MAIS RESISTIR! NÃO VOU MAIS PENSAR…! SÓ VOU SENTIR AGORA… SÓ SENTIR!
Cinco metros. Abigail via sua própria imagem projetada na poça ácida ser abalada e distorcida pelos passos pesados, e a luz do ambiente, já baixa, se enfraqueceu.
— MINHA… MINHA! SÓ MINHA…! VOCÊ É MINHA…! MINHA COMO… Uh…?
Dois metros. Ele ouviu algo se aproximando, e rápido.
BOOM! — num piscar de olhos, o ar se tornou frio e impossível de respirar. Também não via nada, presenciando mares infinitos de branco acinzentado, outra vez, distanciado de sua amada.
— Hein…? Hein? Hein?! HEIN?!
A explosão arrancou seu senso de direção e agora, sem saber onde está, a oportunidade, tão próxima, se viu mandada para o ralo, outra vez.
— Não… Não longe da minha Abigail… Não… Não… NÃO…!
Chutou o ar enevoado dos arredores, sequer preocupado ou ativamente consciente do fato de sua mão esquerda ter perdido três dedos inteiros.
O sangue vivo gotejou, e entre os pingos, notou algo mais: subitamente, sua perna esquerda pareceu estar muito quente.