Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 79: Partindo em uma Aventura

— O que foi isso?!

Hannah se segurou com toda a força na porta da sala quando os tremores começaram. Por vinte e três longos segundos, a estrutura estremeceu e se abalou em um pequeno terremoto.

Em meio ao escuro, ouviram vidro quebrar em abundância e os cadáveres de insetos no chão da sala de aula saltaram em breves instantes de uma falsa vida.

E tão depressa quanto começou, desapareceu sem deixar rastros.

— É ele… — Sua companhia respondeu. — Ele deve estar por perto…

A amargura de sua voz foi potencializada pelo desvio do olhar. Ann mostrou seus dentes, baixando a cabeça e trancando os punhos.

— Eu vi ele nas câmeras… Aquele poder… não é uma coisa que qualquer um de nós consiga competir contra…

A atenção da Savoia agora se prendeu aos olhos hesitantes. A manipuladora de insetos tinha um discurso incerto, e ao mesmo tempo, tão cheio de impacto negativo.

— Ele faz alguma coisa que as câmeras não conseguem detectar, e que interfere com elas, e só dura alguns segundos, mas quando a imagem volta… Quando volta…

Abraçou seu próprio corpo, expulsando o frio de espírito, e o medo invadiu o semblante, fazendo-lhe bater os dentes.

— Não precisa dizer nada. 

O toque da enfermeira a acordou de seu transe repleto de sofrimento, trazendo a sensação de paz. Ao focar nela, seu coração foi recebido com um sorriso reconfortante.

— Não vamos nos preocupar com isso agora. Podemos cuidar desse sujeito depois… Mas, por agora, é importante que comecemos a nos mover.

Estendeu a mão para ela, que hesitou um pouco antes de tomar, e em um solavanco suave, porém firme, viu-se sobre os próprios pés.

— Tudo indica que vamos ter um monte de trabalho para fazer aqui, amiguinha! E sem mais um segundo de tempo a perder!

A enfermeira de olhos roxos abriu um sorriso largo, levando o punho ao alto em um gesto de força. Notar sua empolgação enchia a boca da adolescente de um tipo único de amargura.

— Não precisa ficar tão para baixo! Nós duas vamos dar um jeito nisso! — Ela afirmou, contente. — Certo?

— Uhm… Certo… — confirmou, repleta de hesitação.

— Isso! Eu sabia que poderíamos ser uma grande equipe! Agora, vamos lá! Sem mais um minutinho a perder, minha companheira!

Sem compartilhar de seu ânimo, a menina de marias-chiquinhas castanhas acompanhou-a para fora da sala. Em sua testa, formou-se uma gota de suor frio, veloz no ato de escorrer até a bochecha.

Ver Hannah tão animada a preenchia do mais terrível tipo de ansiedade, afinal, sabia estar escondendo dela um terrível segredo.

“Aquele cara que eu vi correndo nas câmeras… Ele se parecia muito com ela. Com toda certeza ela deve estar atrás dele…”

Havia certo tempo desde que o vira, ainda nos andares de baixo e preso na crise inicial, cavando caminho entre pessoas tomadas pelo medo de morrer.

“Eu não vou contar a ela…”

Não existia modo de confirmar o seu status. A proximidade do golpe massivo lançado por Lira se provou suficiente para arruinar o sistema e corromper quaisquer arquivos das gravações. De certo modo, também, pensou ser melhor que fosse assim.

“... Mas… O que foi aquilo…?”

Jamais teria as palavras para descrever a brutalidade de tal manifestação de energia, com a sensação de ser tudo e nada, ambos em simultâneo, distante de qualquer coisa concebível ou vivida.

No auge da dúvida, até mesmo esqueceu de prestar atenção no ambiente, e no chamado da mulher.

— Hey…! — Hannah acenou. — A gente tem que ir andando…! Ou você prefere ficar presa nessa sala escura, sozinha?

— Uh?! — tomada pela surpresa, apressou o passo rumo à porta. — Não…! Claro que não!

— Hehe! Imaginei que não! — fechou a porta, trancando o quarto escuro para si mesmo, e agora, confrontadas com a realidade distópica do exterior. — Vamos! Você não ia querer ficar aí sozinha… Não quando tem uma aventura dessas para fazer aqui fora!

“Eh… Aventura…” Em pensamento, mostrou um sorriso forçado. “Esse… é um jeito peculiar de colocar…”

— Vai, me diz alguma coisa…! — insistiu. — Eu sei que ficar na sua cabeça pode parecer legal e tudo mais, só que o mundo tá aqui para ser vivido, então nada de ficar com essa cara insatisfeita!

O corredor do térreo se tornou um campo de guerra, onde, pela grande parte, não se via muito, graças à densa fumaça, carregada de cinzas.

— Você sabe como isso se iniciou? Já daria uma pista bem grande para descobrirmos onde começar…!

O modo como a energia dela não se rendia ao ambiente chegava a ser, de certa forma, incômodo e na concepção dela, era como se ela não pudesse se importar menos.

“Ela age como alguém que usa roupas de verão em pleno meio de Dezembro…”

Porém, bastava pensar um pouco e refletir para que, depressa, a opinião mudasse ao seu extremo oposto. Havia familiaridade nesse modo de agir, tão bem conhecido da jovem de marias-chiquinhas.

“Eu tô sendo estúpida, não tô?”

Resignou-se, levando a destra ao rosto em um tapa misto de negação e decepção. O barulho correu alto pelas paredes vazias, chamando a atenção de sua companhia.

— Uh… Ann…? Você tem certeza de que tá tudo bem? Se você quiser e dar uma descansada, eu posso seguir sozinha e…

— Não, não…! Tá tudo bem! Eu só pensei um pouco aqui e…

Fechou os punhos ao longo do corpo, puxando o máximo do ar poluído. Quase imperceptível, o sorriso de canto lhe decorou os humores, dando lugar a um novo tipo de brilho.

— Uma aventura…! Sim, vamos! Vamos, uh…

— Descobrir a causa do problema e acabar com a raiz desse mal…! 

— Uh… Isso… Vamos fazer isso… sim…

— Incrível…! Se preparem, forças do mal, porque as duas heroínas estão a caminho…!

Demorou para que percebesse não se tratar de simples infantilidade; nesse tempo inteiro, o comportamento de Hannah visou confortá-la e, admitidamente, funcionou.

— A biblioteca tá pegando fogo, não é isso? Então, vamos lá olhar do que se trata…! Eu espero que você não tenha dificuldades em lidar com o calor!

As maneiras dela de falar e agir acalmavam mente e coração de modo que nenhum exercício de relaxamento já fez e, pela primeira vez em muitos dias, sentiu-se liberta outra vez.

— Eh… Calor não é o meu clima preferido… mas a gente pode arranjar isso…

— Gosto da sua determinação! Agora, hora de marchar para o meio desse fogo cruzado… literalmente…!

A piada foi tão terrível que a levou a rir.

— Heh… Talvez as coisas mudem um pouco… talvez, para melhor…

— Disse alguma coisa? — olhou para trás de modo um tanto cômico, cheia de dúvida. — Foi comigo?

— Ah… não…! Eu só… pensei um pouco alto…

— Ah, saquei…! Heh, olhando agora, eu bem que queria que o meu irmão pensasse assim… um pouco alto…

As duas tomaram o caminho à esquerda, de onde aparentava vir a fumaça. Depressa, Hannah cobriu o nariz, a incentivando a fazer o mesmo.

— Ele é meio… calado demais, sabe? E, às vezes, eu sinto que ele gostaria de ter alguém com quem conversar, mesmo que não mostre isso… Ele gosta de parecer todo independente e tal… Talvez ele pense que isso o deixa “maneiro” ou algo assim?

Optou por somente escutar. Na realidade, Ann não tinha o menor dos argumentos para fornecer e escutar Hannah falar sobre qualquer coisa soava melhor que se entregar ao silêncio.

— E, bem… ele pode ser meio fechado, calado e pouco receptivo de começo, mas…

A pausa das palavras se sincronizou à dos passos. Levou quase três segundos, mas Hannah decidiu qual rumo tomar.

— … Ele tenta fazer o melhor que pode, sabe? O meu irmão… é um cara legal, apesar de tudo…

O súbito acréscimo de peso nos fonemas foi tão notável quando a diferença entre terra e mar. A voz da mulher decaiu a algo sombrio e desolado, distante do brilho tão característico.

— Então, Ann…! — E tal qual isso aconteceu, retornou aos padrões normais num sopro. — Você me prometeria uma coisa?

— Uh… depende… Dependendo do que se trata…

— Ah, relaxa…! — sorriu, exibindo a fachada branca de perfeitos dentes. — É coisa simples! Eu só queria te pedir que, se você ver o meu irmão…

Alcançaram, enfim, o último corredor até o pátio. Chegando ao destino, alcançar qualquer localização do primeiro piso, tal qual chegar às escadas e subir, seria simples demais.

A solidão do caminho, livre de interrupções, causou estranhamento.

— … Eu só queria que você ajudasse ele… Só isso! E eu adotaria se você considerasse isso um favor para mim. Prometo que ele não é uma pessoa ruim…!

“O quê?”

Estranhou o pedido, incapaz de não manifestar isso no rosto contorcido em dúvida e surpresa.

— Então você quer que eu… uh… “cuide” do seu irmão…? — perguntou, cética. — Uh… Hannah… isso…!

— Oh…! — A interrompeu, captando o erro óbvio no entendimento da mensagem. — Não, não, não…! Não pense nada sobre isso…! O que eu quero dizer é para você estar lá por ele, entende? Quando… Quando eu não estiver…

O mesmo pesar de antes retornou de modo mais sutil, e ainda, dolorosamente presente. Nos metros finais, a enfermeira umedeceu os lábios e cuspiu angústias.

— Eu não tenho muita chance de estar presente na vida dele e você até pensar que eu tô te pedindo para fazer o meu trabalho, mas… Quer dizer, na verdade eu tô sim, mas esse não é o ponto…!

Riu para se esconder do sofrimento, tática essa que, amargamente, conhecia tão bem.

— Eu só tô te pedindo para manter um olho nele quando eu estiver longe… Não precisa ser o tempo todo, claro… Longe de mim te pedir isso. Eu só quero me certificar de que ele tá bem. É só isso.

Preocupação com a família — essa, também, lhe era uma velha conhecida.

— Você não tem que aceitar. Não se sinta forçada. Não quero te forçar uma responsabilidade que não aceitar cumprir.

O barulho das três pisadas seguintes soou mais intenso.

— Por que eu…?

— Huh? Dessa vez você disse algo…! Eu ouvi! Eu tenho certeza que ouvi…!

O cessar dos passos cedeu lugar ao temido silêncio, e a breve pausa de dois segundos se esticou além.

— Por que eu? Por que confiar em mim para isso? — questionou, inconformada. — Eu não entendo! Você me diz todas essas coisas, me fala tudo isso e… e depois me pede algo assim?!

— Como eu disse, você não tem que aceitar. — cruzou os braços. — Foi um pedido, não uma ordem. Se não quiser, tudo bem!

— Não é disso que eu tô falando…! O que eu quero saber é… Por que eu…? Eu, uma estranha que você mal conhece e que acabou de descobrir como se chama…! Por que eu?!

Em face da indignação, a Savoia riu.

— Hehe…! Ahahaha!

— Do que você tá rindo?! É uma pergunta séria…!

— Eu sei, eu sei…! É só que…! — espanou o ar com a mão. — Você ficou tão indignada e…!

Riu por mais alguns segundos, acalmando os ânimos. Ao fim da crise, já restabelecida, a mais velha dirigiu a ela um olhar sereno, junto de um pequeno e legítimo sorriso.

— É porque você parece confiável o bastante, Ann — disse, em tom singelo. — Quando olho para você, enxergo alguém onde eu posso me apoiar, sem medo.

É isso; essa mulher adquiriu a capacidade plena de ir e vir, sem barreiras, por entre alma e coração.

— Eh… confiável…? Uh…!

— É o que meus olhos me dizem, e cá entre nós, eles são muito bons nisso!

Não suportaria um segundo a mais perto de tamanha luz e só de pensar nela, surgia essa estranha quentura nas bochechas e…!

— … Mas que momento mais lindo! Tão harmônico e belo… Quase me faz sentir alguma coisa…!

— Eeek…!

O modo de falar, um pouco arrastado ao final e repleto de pontos dramáticos a congelou do topo à base. Em espasmo, o cenho da controladora de insetos se contorceu, agoniado.

Sem chances de sentir algo diferente, afinal, o dono do trono de ouro em seus pesadelos surgiu ali.

— Eeeeh?! — estarrecida, a enfermeira tomou nota do estranho entre a fumaça. — E de onde você veio, seu maluco?!

O rapaz em questão arranjou os fios pretos a cobrirem seu olho esquerdo. Com passos lentos, revelou sua forma magra e pálida, brandindo um venenoso sorriso.

— Huh! Você me parece bem deficiente de algumas vitaminas importantes…! Deveria tomar um pouquinho mais de sol, também…!

Os alarmes da intuição soaram no instante em que o som tão desagradável de seu discurso chegou aos ouvidos e não precisava conhecê-lo para determinar a podridão de sua índole.

— Hannah Savoia…! Como é um prazer te conhecer mais de perto…!

Não pôde evitar a vontade de zoar dele mais um pouco.

— Eh? Mais de perto? Mas você ainda tá tão distante…! — O mostrou a ponta da língua. — Chega um pouco mais perto e vai poder olhar melhor o que eu tenho aqui… Mas só avisando, que junta dessa beleza toda… eu tô cheinha de agulhas…!

Por mais que tivesse seus momentos de divertimento com o perigo, alguém mais não via a mesma satisfação, tendo problemas para algo tão fundamental quanto respirar, diante de tanta pressão.

— Hannah… Não… Não… provoca… ele…

O toque trêmulo de Ann-Marie na pele do cotovelo esquerdo trouxe à tona os detalhes importantes, mais uma vez. Ela vivia o pico de seu medo, relembrada dos diversos dias de terror.

— Então esse é o sujeito por trás disso tudo, hein? — Primeiro, suspirou, para que somente ela ouvisse, mas em seguida, elevou o tom. — Bem ousado, para alguém que não levantaria um décimo do próprio peso na academia…!

Com cuidado, esticou o braço para trás e a encarou, sorrindo, num gesto de “deixe isso comigo”. Prontamente, enrijeceu a postura para indicar o absoluto oposto e se propôs a enfrentá-lo.

— Ora, ora, Hannah Savoia… Assim você acaba me ofendendo de verdade…! E pensar que eu tirei do meu tempo, muito precioso, por sinal, para chegar aqui e te dar um oi… e é assim que você me recebe? Pensei que nossa conversa correria de um jeito diferente, doutora!

— Oh? — levantou a sobrancelha. — Na minha lista não consta um menino tão levado como paciente… Mas isso não é problema, querido, porque eu sei bem que remédio dar para cuidar direitinho de um garoto-problema!

— Ah…! Nesse caso, me julgue bastante ansioso…!

Dos bolsos, ele puxou dois canivetes escolares, empunhando um em cada mão, tingindo o rosto de seu típico sorriso sádico.

— Será que existe tal droga que seja capaz de me curar, doutora? — piscou, e o único olho visível brilhou em azul profundo. — Eu já fiz tantos tratamentos, mas nada consegue tirar isso de mim…!

— Heh…! É melhor rezar que sim, porque essa droga, embora tão milagrosa…

Em sua vez de se armar, a Savoia puxou do bolso uma única seringa, preenchida de fluido transparente, culminando em uma grande, afiada e quase invisível agulha prateada. 

— … nunca passou com uma boa nota pelos controles de qualidade experimental…!

No tempo certo, as condições se alinharam e ambos desconectaram os pés do chão, na intenção de matar ou morrer.

— Huh…! E o que torna esse remédio tão especial, se não se incomodaria em me dizer?

Num piscar de olhos, deixou de ser, tornando-se um com a fumaça. Em nenhum lugar viam-se as menores pistas de sua movimentação.

— Ah, é porque a verdade é simples e brutal! Esse remédio até cura quem tem a doença, mas…

O pescoço de Hannah inclinou subitamente para a esquerda. Milissegundos mais tarde, a lâmina cega da ferramenta escolar se materializou, atrasada.

— … mata em todas as outras 98% das vezes…!

Sem piedade ou hesitação, afundou a seringa na carne do pescoço dele, causando um breve sorriso a surgir, antes do novo desaparecimento.

— Garotinho levado… Garotinho levado…! Sua mãe ficaria desapontada se soubesse que está evitando as vacinas…!

Caos passou a ferver na forma mais pura no caminho estreito e paralisada, nada podia fazer além de assistir.

“Eu… tenho que ajudar… tenho que… fazer algo…!”

Não existiam insetos vivos nas redondezas, ou, ao menos, não em números suficientes para formular um ataque eficiente. Levaria tempo demais para unir uma nuvem pequena, e as chances de sucesso nunca foram tão mínimas.

— Sabe, eu já atendi muitos pirralhos, alguns com mais atitude, outros com menos, embora ainda bem problemáticos…

Ela não tinha problemas em desviar dos ataques, sorrindo abertamente a cada giro do tronco ou cambalhota…

— … mas eu nunca vi um que tentou matar a enfermeira! Isso é outro nível de má-criação! Vou ter que conversar com sua mamãe…!

Mas Ann-Marie tinha ciência de que não continuaria assim. Sonhos começam bem, antes de serem contaminados pelas trevas.

— Oh, por que chamar a minha mãe…? — lançou um corte duplo, em cruz, contra a mulher. — … Não seja tão cruel assim…! Ainda quero ganhar doces de sobremesa!

Surgiu à esquerda dela e, dessa vez, não houve tempo para desviar. O contato cruzado dos metais se dirigiu, em cheio, ao punho esquerdo da Savoia.

— HANNAH…! NÃO…!

A garota foi paralisada, tomada pela descoberta macabra quanto à imensa facilidade com a qual uma mão podia ser amputada.

— Hannah...!

Desde o primeiro segundo do confronto, soube a verdade: desse pesadelo, não se podia despertar.



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