Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 58: Espaço Mental
— Ah, sim! Eu me lembro de você ter dito isso quando falou com o general naquela missão para cuidar do ataque feito pelos vampiros! Sério, como foi aquela batalha para você? É difícil para você ter que lidar com a morte de tantas pessoas inocentes, não é, Hoob?
Uma voz contente e curiosa rasgou o vazio branco infinito, seu som vindo de todos os lugares e, ao mesmo tempo, de canto nenhum.
Um lugar sem paredes, sem limites, se esticando e expandindo, onde cada conceito físico do universo não podia falhar ainda mais. Naquele lugar, os dias passavam no tempo de segundos e as ideias nadavam, livres, como em um oceano.
E no meio do nada, surgiu uma mesa de chá, redonda e branca como qualquer outra, cheia de enfeites e delícias sem fim.
As estrelas eram livros espalhados, prontos para serem pegos e lidos, formando uma galáxia de contos e fantasias entre o oceano branco a se perder de vista.
A materialização de seu mundo ideal, longe dos problemas das coisas tão limitantes, que insistiam em prendê-la a um chão sem graça. Nesse lugar, sentia-se livre para ser quem desejava.
— Ah sim. Às vezes é um pouquinho difícil. A verdade é que você nunca se acostuma. Lidar com vidas é uma coisa e tanto, especialmente em um cenário tão perigoso quanto o que eu e os outros temos de viver todos os dias.
Uma delicada e bela xícara de chá se materializou, junto de um açucareiro, deixados à disposição dos dedos longos e finos de uma bela mulher, de cabelos quase tão brancos quanto o próprio espaço que ocupava.
Misturando enorme força e a mais sutil graça feminina, adoçou sua bebida.
— É tão difícil que não temos tempo para descansar na maioria das vezes. As noites são ruins e sempre existe a preocupação quanto à possibilidade de não voltarmos.
Ela tomou um tímido gole de seu chá, prendendo o olhar nas formas e padrões criados pelo movimento do líquido amarelado, sorrindo ao final.
— Está maravilhoso. Acho que esse é o melhor chá que eu já tomei na minha vida inteira, Emily.
A adolescente sentiu suas bochechas se aquecerem diante do cumprimento. Na melhor face do pânico, abrasou suas bochechas com as mãos, tentando roubar seu próprio calor.
— Ah, obrigada, Hoob…! — gargalhou, encabulada. — Imaginei que fosse gostar. Obrigada por sempre ter estado comigo por todo esse tempo desde que te conheci.
A mulher sorriu muito sutilmente de volta, ao passo que uma linha fina de vapor subia pelo ar sem temperatura ou vento, visível apenas de relance, contrastando a pele pálida da caçadora de vampiros.
— Fico feliz que se sinta assim, Emily. Sinto-me muito bem por ter feito a diferença.
Hoob nasceu com seus fios brancos como a neve, exposta aos perigos da vida como uma caçadora desde muito cedo. Em seus olhos, a jovem de apenas 23 anos levava o peso de quem já viu serem levadas e tomou muitas vidas.
Vestia trajes militares, sempre descritos nos livros como um pouco acima de seu tamanho, e no quadril, o cinto esbanjava suas companheiras: um par de pistolas e outro de facas de combate.
Sempre foi um símbolo de coragem, crescendo longe do talento, tendo o esforço diário e extenuante como seu melhor amigo.
Foi ela quem a ensinou a sempre perseguir com toda força o seu lugar no mundo, mesmo diante de cada adversidade e independentemente de quem fosse o inimigo no caminho, mostrando que cada um molda seu futuro.
E Emily queria ser assim.
— Emily! — Outra voz a interrompeu em sua observação. — Gostaria de um ouvir um pouco mais sobre as minhas aventuras? Eu tenho muitas delas para compartilhar!
— Oh…! Desculpe por te ignorar, Sophia…! Eu… Eu não quis te deixar de lado…! — entrou em uma leve crise de pânico, balançando as mãos para a frente.
— Hah, tudo bem! Eu sei que as histórias da Hoob parecem ser interessantes também! Embora vivamos em universos tão diferentes e com conceitos tão diversos, é mesmo uma abertura de mente poder escutar e comparar.
E ali estava a confiante Sophia, do lado oposto de Hoob. Sem se incomodar, a poderosa guerreira Élfica em armadura medieval brilhante esbanjou seus longos cabelos rosados.
— Obrigada por me convidar para a sua festa do chá, em primeiro lugar. Eu não provei algo parecido com isso, mas… Estar em uma boa companhia e se tratando de algo tão saboroso… Acho que isso não tem preço, certo?
A sempre nobre Sophia tomou um gole a mais de sua própria bebida vinda do nada: uma lata de refrigerante. Dentre todos os sabores da bebida tão alienígena ao seu tempo e construção de mundo, a que mais gostou foi a que vinha na lata vermelha.
— Nossa, você parece ter gostado do sabor cereja! — A menina sorriu, admirando o modo como sua heroína se refrescava. — Você pode ter quantas quiser, Sophia.
— Agradeço muito a sua nobre oferta. Esta bebida, embora tão estranha, é de fato uma maravilha sem qualquer comparação! — repousou sua lata sobre a mesa flutuante, dirigindo a encarada à Hoob. — Mas já que estamos falando sobre nossos mundos…
Assistir cada uma delas falar sobre seus mundos a enchia de satisfação. Por dentro, sentia poder ficar assim para sempre.
— Como você acha que se daria lutando contra Goblins, Hoob? Aposto que seria bem fácil para você com todo o seu treinamento em armas e combate manual!
Orgulhosa, a caçadora de vampiros devolveu-lhe uma risadinha sutil, carregada de um pequeno deboche, até.
— Dependendo do quão forte seja um Goblin em comparação com um vampiro, eu acho que poderia ter minhas chances… Embora eu tenha certeza de que você venceria um ninho deles sem sequer suar um pouquinho.
— Bem, embora eu tema dizer que isso é verdade… Acho que só tenho que admitir que somos diferentes demais uma da outra para isso…! Eu acho que teria iguais dificuldades entrando no seu mundo, ou então seria ainda pior!
Parte do discurso da heroína não soou correta, embora, talvez, essa houvesse sido apenas uma impressão.
Não era do feitio de Sophia se deixar ter uma opinião tão negativa a respeito de si mesma; ela lembrava que não, afinal, fez uma promessa ao aceitar sua espada mágica.
Sophia jurou nunca se permitir olhar para baixo e deixar de sorrir, mesmo que por um instante, ciente de que, para proteger os fracos, ela mesma jamais haveria de fraquejar.
E ela lutou bravamente, sempre com um sorriso no rosto.
— Digo, no seu mundo não tem Magia, certo, Hoob? — inquiriu, com um sorriso levemente quebrado. — Pensar em como as coisas funcionam de formas tão diferentes entre as nossas realidades me fez pensar que… Eu não conseguiria ser perfeita como você tem sido.
— Sophia… — Emily estendeu sua mão. — Por favor, não se sinta mal! Você brilha na sua própria narrativa! Você é uma guerreira mágica do tipo mais forte! Você é a melhor!
Dor de cabeça. Não foi intensa, apenas uma pontada ao fundo de seus olhos por um milésimo de segundo.
— Eu não sou esforçada e capaz como a Hoob, Emily. Tudo o que eu faço depende do meu dom para a Magia, algo que já vem naturalmente. Se não fosse por isso, eu certamente não passaria de mais uma inútil no mundo.
Não entendia o que acontecia. O clima da reunião estava tão bom, e Sophia jamais agiria daquele jeito.
— Sophia! Pense na sua promessa! Pense no quanto você trabalhou para chegar onde está!
A grande aventureira Sophia de Galore nunca derramou lágrimas. Por lutas e guerras, ela sorriu, protegendo tudo e todos, sem permitir uma única morte.
— Desculpa… Eu… Talvez só não seja competente quanto a Hoob… Eu… Sei que não sou suficiente…
— Não! Não fala isso…! — assustada, a menina se esforçava em ampará-la. — Hoob…! Por favor, diz alguma coisa…!
— Tudo bem. — A caçadora de vampiros, em um único gole, tomou todo o restante de seu chá. — Bem, Sophia…
Levantou da cadeira, flutuando sobre o infinito branco e tentou alcançar Sophia. O chão não fazia falta quando o poder de sua mente criava todo o necessário.
— Como eu posso dizer isso…? Bem… Você seria mesmo uma completa incompetente se viesse para o meu mundo.
“O quê?!”
Escutar aquilo de Hoob partiu seu coração. Não tinha como ser daquele jeito; Hoob nunca diria uma coisa assim para ninguém, ainda mais tão gratuitamente.
Tentava alcançar as duas, porém só tomava distância. Sem o controle, agarrou os cantos de sua cabeça, quando um flash de uma fina dor perfurou seu cérebro.
— Hkkk! — travou os dentes. — Por favor… Parem…!
Não podia fazer nada, tomando distância no vácuo, ouvindo os sons mais e mais altos das vozes agoniadas.
— Você só foi tão longe graças ao talento, Sophia. Você nasceu em um berço de ouro, veio de uma boa família que sempre lhe deu tudo o que você precisava, e de repente pensou que a melhor coisa que podia fazer era cuspir no prato de quem te alimentou a vida inteira e dizer que iria viver a sua própria aventura egoísta. Patética.
Hoob não queria escutar e ela foi obrigada a vê-la agarrar a deprimida Sophia pelo pescoço. A caçadora encarou a guerreira com a mais pura cólera e em um baque surdo, socou seu rosto.
— Nunca se esforçou na vida, nunca teve que trabalhar duro por nada. Você não tem direito nenhum de chorar!
A bateu outra vez, fazendo seu olho direito sangrar. Sophia não reagiu.
Emily quis gritar, mas som algum saiu.
— OLHE PARA MIM! Olhe para mim e me diga se eu estou errada…! Me confronte!
Puxou uma faca e apunhalou a heroína no braço direito, deixando seu sangue rubro cair rumo ao infinito do mar branco.
Sophia não reagiu.
— Sempre sorrir? Sempre conseguir salvar todas as pessoas?! Que mundo mais infantil é esse?! Eu não entendo como ela te admira tanto!
“Por favor, parem…”
Estava distante demais agora, flutuando rumo ao longe, mas ainda assim, ouvia cada um dos dedos de Sophia, partidos ao meio, juntos de seus gritos de dor.
“Parem com isso…!”
Chorava, pois essas não eram suas personagens favoritas, as pessoas que moldaram seu caráter. Não se via nessas representações distorcidas.
“PAREM…!”
Dor, quando em bilhões de pedaços, sua cabeça explodiu.
Os sentidos se confundiam em visão dupla e um barulho agudo e ininterrupto, altamente desconfortável. Sentia-se tonta, incapaz de reagir à cena adiante.
Ao longe, a miserável Sophia não reagia. Não entendia as palavras pesadas de Hoob, cheias de raiva sem precedentes ou limites.
“Parem com isso…”
Os olhos fechados não viram, porém, cada célula de seu ser captou a nova presença aterrorizante na sala.
Hoob, a caçadora de vampiros, havia assassinado Sophia com uma única facada no peito.
— Hehehehe!
Foi forçada a ouvir seu deleite conforme, mesmo já morta, a aventureira deflagrou dois cartuchos em sua cabeça.
Massa encefálica e sangue manchavam seu rosto, mas Hoob não se importava. Pelo contrário, ela parecia amar a experiência, abrindo um largo sorriso.
— Hehehehe… AHAHAHAHAHA!
A presença sem forma a abraçou, envolvendo e rasgando sua carne com garras e dentes frios, prendendo-a no maníaco sorriso perpétuo.
E toda luz se apagou, restando trevas frias e inóspitas.
[...]
— Droga…! — Uma das enfermeiras murmurou por alto. — Segurem ela…! A paciente da 32-A, Emily Attwood, passa por hemorragia interna severa com hematêmese…!
Os vários profissionais se desdobravam da maneira que podiam para tentar lidar com aquela anormalidade absurda no leito.
— Precisamos de Fator X imediatamente…! Tragam uma bolsa de Fator X…! — exclamou um médico plantonista. — Mas que coisa…!
Tudo em uma raio de um metro do leito ocupado por Emily se encontrava coberto de sangue vivo. Das roupas hospitalares ao chão, traços de grosso sangue vivo mancharam com abundância, preenchendo toda a sala com o terrível odor férrico.
— BLUERGH…!
Seu corpo entrou em espasmo. Os olhos saltaram, vidrados no teto, conforme o peito foi alavancado para cima por uma violenta força invisível e uma nova enxurrada volumosa de escarlate escapou de nariz e boca.
— A perda de sangue é intensa demais! Ela vai entrar em estado de choque hipovolêmico! Tragam bolsas de sangue…! Precisamos de bolsas de sangue! Vamos movê-la para a UTI… Imediatamente…!
Os gemidos molhados soavam horríveis, e o modo como seu semblante assombrado se dirigiu ao absoluto nada, perturbador. Essa foi a terceira hemorragia em dois dias.
— Rápido…! Rápido! Ela precisa ser estabilizada…! Depressa!
O esforço coletivo desorganizado tomou caminho. Entre eles, havia uma enfermeira em particular que, estranhamente aos olhos dos muitos outros, se mantinha calma demais.
Mesmo diante das convulsões tão absurdas e da perda de sangue que certamente tomaria uma vida humana bem depressa naquele ritmo, não repousava uma preocupação em seus ombros.
“É tudo parte do processo.”
— Ela está convulsionando…! — apontou um enfermeiro, diante dos tremores musculares incontroláveis e da espuma sanguinolenta a escapar por sua boca.
Ela sabia melhor do que todos eles juntos acerca do que a jovem passava.
“É só mais uma parte do processo.”
Os ajudou de muito bom grado a levá-la a um lugar mais apropriado, embora certa de que não seriam quaisquer equipamentos ou medicamentos a mais o que faria a diferença em seu estado.
“Prove-se forte ou pereça, Emily Attwood.”
Fez o que estava ao seu alcance; agora, a verdadeira luta iria se iniciar.
“Conquiste a si mesma.”
Os médicos e enfermeiros a sedaram, dando um fim às convulsões e enchendo-a de bolsas de sangue por cada caminho que pudessem encontrar.
Nada disso ajudaria.
“Seu corpo ainda está resistindo ao meu sangue; suas células, lutando bravamente contra as minhas…”
Não se preocupava; nunca houve necessidade disso.
“Mas você vai perder. É melhor que perca, se quiser viver.”
Hannah Savoia riu, comparando sua própria experiência com a coisa. Muito ao contrário de Emily, ela nasceu pronta.
“É incrível como as coisas são injustas! Algumas pessoas são mesmo privilegiadas! Eu até poderia ter deixado você morrer, mas...”
Deu uma volta completa e estalou o pescoço. Um longo sábado de trabalho viria pela frente.
"... Depois de ver o quanto você se aproximou do meu irmão, quis te dar essa chance. Não falhe comigo, Emily!"