Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 59: Mais um Dia Escolar...
— Pois bem, pessoal. A aula de agora acabou. Aproveitem o almoço.
Para a maioria, viria o tão adorado momento de descanso, longe de todos os problemas, e tão apressadamente quase todos saíram, mostrando o súbito ânimo, ausente nas aulas.
Para os poucos que ficaram, porém, o trabalho de verdade acabava de começar.
— Bem, mas que merda… — Mark mostrou a língua, mordendo sua ponta. — No fim, parece que a Amanda Cooper que apareceu no escritório tem mesmo o maior naipe de fantasma.
A estudante não voltou para casa, tampouco foi vista sair da escola e, acima de tudo, a família já reconheceu o cadáver como pertencente à garota.
Ou seja, de um ponto de vista puramente humano e técnico, Amanda morreu há dias e a entidade vista por Ryan não tinha qualquer direito de existir.
— Parece quase uma história de fantasma… Sei lá, o espírito vindo para finalizar algum negócio inacabado ou alguma coisa assim… — jogou a bolsa fechada por cima dos ombros. — Isso tá mais bizarro do que qualquer outra coisa.
Nem mesmo trinta segundos passaram e a sala ficou totalmente vazia. Despreocupados, podiam falar alto, um luxo o qual raramente tinham.
— Exceto que fantasmas não existem — rebateu a asiática, também com sua mochila em mãos. — Não devemos dar brecha para pensar em coisas estúpidas como essa.
O rapaz pálido foi veloz em lamber os lábios finos e apontar para ela, acusadoramente.
— Primeiro, você não tem como ter certeza disso. Não é porque nunca viu um fantasma que eles não possivelmente existam. Talvez o teu humor só expulse eles… E em segundo…
Puxou uma garrafa plástica, cheia pela metade com água mineral e sem mirar ou qualquer outra preparação, fez perfeitamente o planejado.
— Você não podia estar mais correta quanto a isso. Tem algum engraçadinho bancando de skinwalker por aí e a gente precisa descobrir quem é e porque mirou justo na Cooper… — concluiu, balançando a garrafa. — Pensa rápido, Ryan!
A garrafa acabou em suas mãos sem dificuldades, mostrando os apurados reflexos desenvolvidos nos dias de árduo treino. Ele sequer hesitou em fechar as mãos no tempo certo, amassando o plástico.
— Bons reflexos! Sinal que a gente só pode estar te criando direitinho… Olha, Lira! Olhando bem, ele não parece meio que um filho nosso? Digo, a gente que tá ensinando as coisas para ele e tal!
Repudiada pela ideia, a moça mostrou os dentes brancos como pérolas na forma de um riso azedo, cruzando os braços.
— Prefiro não me dar o trabalho de entreter esses pensamentos, além de que, em primeiro lugar, Ryan Savoia não faz nada diferente do que já haveria de ser esperado. Treinar assim é apenas a sua obrigação.
A mente do Savoia se encontrava em seu próprio mundo desde o fim de semana; aqueles dois não sabiam muito e ele preferia que continuasse assim.
“Eu acho que é só melhor deixar eles pensando e chegarem nas mesmas conclusões que eu…?” pensou, abrindo a garrafa e tomando um gole. “Eles devem chegar lá em algum momento.”
E tal qual a água que desceu por sua garganta, eram as dúvidas, volumosas e muito numerosas, onde a verdade de tudo era que suas ideias não passavam de mera suposição.
“Melhor não ficar dando ideias sobre o que eu não sei bem.”
E a única coisa a mantê-lo em pleno chão firme eram as dores em seus músculos que, embora pequenas, ainda se faziam incômodas na justa medida do suficiente.
— Falando neles, já fez todos os exercícios que lhe passei hoje? — Ela questionou, desta vez em espera de uma resposta mais vocal que sua mera leniência em dizer algo.
— É, eu fiz — respondeu sem sequer sentir. “Fiz, por mais que eu deteste ter que acordar às 4 da manhã todos os dias.”
Nesse ponto, já podia quase ver a morte em sua plena glória, espiando-o pelo canto do quarto, esticando seu manto preto sobre ele, conforme se destruía com o protocolo de treino criado por ela.
“Tecnicamente, é para ficar mais suportável com o tempo, mas continua a mesma coisa de sempre…”
Todos os dias, tinha a tarefa de destruir seus pulmões e carne com esforços descomunais, muito maiores do que qualquer trabalho já antes feito em toda a sua breve existência.
“Ai de mim se eu não fizer…”
Lira não podia necessariamente ler sua mente, contudo facilmente apontaria uma mentira de sua parte. No final, era fazer ou fazer: nunca houve escolha.
“Não me sinto mais forte, honestamente.”
Apalpou o bíceps esquerdo, sem notar diferença além da dor ácida e, brevemente, ponderou sobre contar isso a ela.
“Não… Pensando melhor, ela não precisa saber disso. Eu já tô lesionado o suficiente e não tô afim de mais tortura.”
Suprimiu quaisquer sentimentos negativos no fundo do poço mais escuro de seu coração, e já com a garrafa vazia, a jogou de volta para seu dono.
— Mark… Quando vamos ter a conversa sobre a Samantha?
Ares sombrios tomaram os par de rubis de sangue. De longe, Mark mirou na transparência esvoaçante e deformada, levando cada músculo ao seu estado antecipatório de tensão.
— É… A gente já tá em tempo de te passar a visão sobre ela, né?
E quando se aproximou o suficiente, derramou sua fúria em um chute, que mandou o monte de plástico diretamente rumo à lixeira.
— E planejar umas coisas também. A gente já andou ficando inativo por tempo demais. Tem coisa rolando e isso precisa da nossa olhada.
Sempre o mesmo padrão evasivo, se repetindo outra e outra vez. Se tivesse de dizer, o Savoia o chamaria de hipócrita.
“Ele nunca foi alguém de deixar os próprios sentimentos na frente do dever, então por que insiste em fazer isso agora?”
Pelo pouco que conhecia de Mark Menotte, sua ética de lidar com as coisas desconsiderava o emocional, com até mesmo o desejo por diversão pronto para ser posto de lado, caso necessário.
Aquele tópico, porém, sempre foi o único em que existia tal tipo de hesitação. Podia não saber muito sobre a história dele com a maior baderneira da escola, mas julgava esconder isso uma escolha infeliz.
— De qualquer forma, é melhor a gente começar a pensar em como a gente vai lidar com esses problemas logo… E eu sugiro começar pelo que for mais palpável no momento.
Como sempre, um perfeitamente executado desvio de foco, no rumo de alguma outra coisa, de um tópico mais importante do que lidar com o verdadeiro elefante da sala.
— A gente precisa investigar a morte da Amanda Cooper e os rastros por trás. A cidade tá começando a ficar esperançosa, pensando que talvez tenham encontrado alguma pista sobre os desaparecimentos das mulheres, mas é bem claro que essas duas linhas de crimes não estão conectadas, até porque não ia ser especificamente na quadragésima sétima morte que o responsável ia pisar na bola desse jeito… Afinal, qual o assassino que vai escolher um número lixo desses para findar na sua carreira de crimes?!
De todo modo, decidiu não perguntar. Samantha Wilson ainda permaneceria uma incógnita por mais algum tempo.
“Esse vai acabar sendo mais um dia padrão, certo? Sem novidades além de meras especulações… Um bando de adolescentes com uns dotes a mais bancando de serem detetives…”
A conversa da noite de sexta-feira não trouxe muitos resultados, se houve qualquer um de fato, não passando dos três conversando sobre tudo o que já sabiam bem.
Felizmente — ou não — tal noção logo mudaria com a novidade trazida à mesa por Lira.
— Aparentemente, tem uma conversa correndo pelos corredores da escola. Ouvi alguns estudantes conversando sobre as manchas de sangue no pequeno refeitório do outro lado da escola.
Orgulhou-se em chamar a atenção do par de rapazes, tomando a oportunidade para mostrar de seu imenso perfeccionismo ao “arrumar” o rabo-de-cavalo castanho.
— Não é uma conversa grande e em nenhum instante foi mencionado qualquer tipo de nome, contudo o fato é que a data coincide com algo mais… Algo diretamente relacionado com o que estamos lidando agora.
— E esse teu costume de ficar fazendo drama… Vai e fala logo…! — Mark a urgiu a continuar. — A gente quer saber…!
— Obviamente eu vou contar — rebateu, um tanto afetada pela raiva. — Enfim, mais especificamente, com o motivo de Amanda Cooper ter saído da escola.
Nenhum dos outros dois sabia da razão exata por trás da expulsão e o fulgor da dúvida a brilhar nos dois pares de olhos posava como a maior das obras de arte, para a Suzuki.
— Mas tu tá me dizendo que…
— Isso. O evento do “refeitório sangrento” coincide com uma situação ao redor dessa garota. A verdade é que ela saiu por ser acusada de derramar sangue sobre outra estudante.
— Mas espera… — Mark levantou o indicador direito, em um gesto exagerado. — Isso aí não configura só mais um caso de bullying? Certo que foi sangue, mas… Não parece normal para vocês?
— Isso até poderia ser verdade, se não fôssemos contar com outra coisinha.
Lira puxou seu celular e os ágeis dedos demoraram caçaram o registro no grande aparelho caro. Certa de sua descoberta, lambeu os lábios e, ao fim de toda a série de gestos, os mostrou algo.
— Essa menina — pausou por um segundo, mostrando uma foto. — Ela foi a vítima do aparente bullying.
A tela exibia uma fotografia em alta definição do rosto de uma menina cuja idade qualquer um diria não passar de quatorze. Na realidade, confundi-la com uma criança seria a primeira reação de muitos.
No registro, ela carregava um semblante cansado e abatido, diferente da seriedade ou do sorriso, geralmente esboçados pelos estudantes.
Seus cabelos coloridos em um firme tom de cobre se espalhavam desgrenhados, tão volumosamente crespos que podiam ser comparados a uma nuvem sobre sua cabeça.
Tinha grandes olhos castanhos, aprofundados pelas olheiras e que fitavam para baixo. Na pele clara do rosto, marcas de cravos e espinhas combatiam com as sardas nas bochechas para descobrir qual mais chamava a atenção.
— Olha, olhando essa foto, até que dá para entender o motivo de ela ter sido bulinada… Porque vamos ser honestos… Ela me tem perfil de vítima… — Mark citou, como um expert no assunto. — Mas acontece que eu nunca vi ela antes por aqui.
— Nem eu — afirmou a garota. — Normalmente, você esperaria que alguém assim seria relativamente memorável pelo pior motivo possível, mas fato é que essa garota não podia ser mais invisível para nós.
O silêncio de Ryan foi tomado por Lira como a confirmação do que já imaginava: ele também não a havia visto.
— Ela é um ano mais nova do que nós, o que significa ser uma primeira-anista, logo, ela não toma nenhuma aula junto com a gente. Eu estive aqui no fim de semana e invadi o escritório do diretor Eastwood para descobrir isso.
— Espera…! Como assim tu invadiu a escola no fim de semana e não me chamou?! Pô, eu queria ter vindo também…!
“Eu acho que essa não é a principal questão aqui, Mark…” Ryan pensou, engolindo o seco diante da perspicácia de Lira. “Invadir a escola… Bem, se considerar que eu invadi uma casa muito tecnicamente assombrada, acho que isso é até pouco.”
— Eu não julguei ser necessário. Não tem ninguém realmente competente vigiando o lugar, então foi fácil entrar — afirmou, factual. — Foi uma busca simples, especialmente depois de se ligar ainda mais alguns pontos.
O dinâmico saltador de mesas se sentia prestes a fazer justo isso a cada vez em que ela falava sobre pontos, fatores ou qualquer outra coisa que se ligasse em um sistema maior.
Ele sabia plenamente do grande orgulho levado por ela em suas explicações demoradas e embasadas, contudo, seu próprio estilo, muito mais veloz e direto ao ponto, clamava por praticidade.
Em suma, a impaciência o mordia em mil e um lugares.
— Ô criatura… Fale logo, criatura…! Qual é o link que essa pirralha ranhenta e cravejada aí da foto tem com o caso?
— Na segunda-feira, durante o final do intervalo, os zeladores foram chamados para limpar estranhas marcas sangrentas no refeitório. Ninguém sabia explicar o que aconteceu no momento, além do fato de terem visto toda a sujeira a tomar uma mesa específica. Como aparentemente não havia alguém a responsabilizar, a conversa seguiu como mais um eventual ocorrido estranho, uma conversa tão marginal que sequer chegou em nossos ouvidos.
— Mas deixa eu adivinhar… Nem de longe que para por aí, né?
— Precisamente — confirmou e piscou. — No fim do mesmo dia, Amanda Cooper foi chamada ao escritório do diretor Eastwood ao ser apontada como a responsável por um episódio de bullying ao lado de outros dois alunos. Lá, os três foram apontados com a queixa de terem jogado sangue animal sobre os cabelos e o almoço de uma aluna… A garota da foto, Phoebe Martinez.
“Esse nome…!”
Ryan sentiu sua alma escapar do corpo com a menção. Ele conhecia esse nome.
— Ryan… Rolou alguma coisa aí? A história tá pesada demais? Ou ‘cê tem medo de sangue?
Silencioso até então, foi enfim forçado a se colocar.
— Esse nome… Eu vi ele nas memórias da minha irmã — anunciou, perdido nas lembranças já enevoadas de Hannah. — Phoebe Martinez estava se tratando de… Síndrome X, se eu não me engano…
— Bingo. É aí que tudo se conecta. Phoebe Martinez faltou às aulas por todos os dias seguidos, passado o seu primeiro dia aqui em nossa escola, Ryan Savoia, além de que seu retorno foi, precisamente, na segunda-feira passada.
— O mesmo dia do ocorrido… — suspirou, atônito.
— E o mesmo dia em que Amanda Cooper desapareceu, depois de ter afirmado que a própria Martinez causou os ferimentos em si mesma, arranhando seu próprio braço com absurda facilidade, fazendo uso de garras afiadas e enormes que rasgavam sua carne com imensa precisão.
— Espera… Isso… E o corpo que a gente encontrou…! — Os olhos de Mark saltaram diante da linha racional que só fazia mais sentido a cada palavra. — O corte preciso na garganta…!
— Eu vou chegar lá, mas primeiro… — tomou para si um segundo de ar, estalando o pescoço. — Quando inquirida sobre os cortes em seu braço, nada foi encontrado. A pele se encontrava íntegra, sem qualquer marca. Com isso, o testemunho foi dado como falso e ações para expulsão da instituição foram tomadas.
Um pesado segundo de silêncio cortou o ar, quase incapaz de transpassar o ambiente denso da sala.
— E ao fim disso, Amanda Cooper foi dada como desaparecida, seu corpo encontrado em estágio de decomposição, condizente com seu tempo de sumiço… E antes que perguntem…
Buscou no celular por mais um instante e, segundos depois, os dois rapazes receberam notificações do chat em grupo em seus próprios aparelhos.
— É o link de um fórum da internet. Como tudo lá é anônimo, você pode ter qualquer tipo de conversa, incluindo essa. Olhem por um momento… Não acham a história que o post conta um tanto morbidamente semelhante com a linha que construímos aqui?
A postagem falava de um longo relato dado por um estudante que não quis identificar localidade de moradia ou sequer o país em que estudava. No post, o anônimo contava uma história que supostamente ocorreu com sua pessoa na exata data de segunda-feira passada.
Uma leitura rápida revelou ser sobre uma “garota estranha e claramente psicopata”, que montou algum tipo de esquema para incriminá-los por algo que não fizeram.
— É exatamente a mesma história, com os rumores do sangue e tudo mais, só que com a perspectiva de um dos três, provavelmente um dos outros dois… — Mark concluiu. — Então será que dá para a gente fechar o que eu tô pensando que dá?
— Vamos concluir que Phoebe Martinez fez isso, e que ela é uma pessoa com poderes.
— Então o que a gente tá esperando para ir atrás dela?!
— Ela tem faltado às aulas desde segunda, Mark, e no endereço à mostra nos documentos agora só vive um casal com duas crianças. É um registro desatualizado. Não sabemos onde ela mora. Acredite, eu mesma me dei o trabalho de olhar.
— Ah, mas que merda…! A porra do acaso só para complicar as coisas simples da vida…!
A situação urgia de um plano, e rápido.
Neutralizar Phoebe Martinez deveria ser tratado como um tópico de prioridade máxima, afinal, desconheciam-se os seus motivos ou se estaria relacionada a mais mortes.
E embora trouxesse respostas, sempre vinham mais perguntas a acompanhá-las.
“O que significa ‘Síndrome X’?”
Pelo pouco que ainda lembrava de sua leitura da mente de sua irmã, sabia se tratar de algo grave, uma estranha doença que afetava aleatoriamente, sem causa aparente.
“Doença grave… Pensar nisso me lembra…”
Perdido em seus pensamentos, Ryan quase não notava seus arredores, até ser puxado de volta ao mundo por um barulho conhecido e peculiar.
— PUTA QUE PARIU…! — Mark gritou aos quatro ventos. — AH, MAS VOCÊ NÃO ME DIGA…!
— Tem algo acontecendo… E é sério…! Vocês dois, precisamos de um plano…!
Foram dezenas de gritos.
Vieram de longe, possivelmente de algum canto do térreo, e para serem escutados dali, só podiam ser intensos e desesperados.
Sua primeira reação foi a de correr até a porta e tentar abrí-la, contudo, viu-se paralisado diante da súbita mudança no ambiente.
— Uh… Lira… — O jovem pálido ria em nervosismo, olhos vidrados nas janelas. — Mas que merda é essa…?
Um misto de zumbidos tomava o interior da sala, conforme as pequenas formas de várias borboletas brancas cobriam as janelas, bloqueando qualquer luz externa.
Vieram centenas, milhares de pequenos insetos, unidos em uma única causa.
— Ah, esses filhos da mãe…!
A Suzuki estapeou sua própria face, estupefata. Ironicamente, ela ria sem parar enquanto balançava a cabeça em negação.
— Eles nos pegaram…! — exclamou entre gargalhadas. — Eles nos conduziram como ovelhinhas em direção ao abatedouro… Quando a gente menos esperava que ia acontecer…!