Chamado da Evolução Brasileira

Autor(a): TheMultiverseOne


Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou

Capítulo 56: Um Engano

“Isso tudo tá errado… Essa calma tá errada!”

O último horário da sexta-feira era livre; sem um professor em seus pescoços, os alunos podiam fazer o que bem quisessem, e isso significava dizer tudo, com exceção de estudar.

“Por que não acontece nada?! Tem tudo para rolar algo, mas não acontece nada!”

Os movimentos de sua perna mostravam a inquietude de seu espírito, sem se importarem com fazer barulho.

“A casa… A pessoa que criou aquelas sombras ainda está por aí… Mas, por que não tá agindo?”

Sair da sala não era uma opção; o trio tinha de manter a imagem de estudantes comuns, e as várias faltas já levantavam suspeitas.

Eles sempre perdiam ao menos um horário de cada dia, para treinarem suas habilidades ou discutirem as notícias do rádio.

Ultimamente, as coisas estavam estranhamente quietas, algo bom.

O problema existia  em se ter de se acostumar com tal realidade.

Como a calmaria antes da tempestade.

— Tem alguma coisa em mente?

Rubis afiados o arrancaram de seu transe. De início, sentiu o solavanco no peito, puxando-lhe as veias, para logo encontrar o semblante sério da asiática.

O livro em suas mãos já foi devorado quase por inteiro, cheio de explicações sobre como as emoções foram importantes para o desenvolvimento do ser humano enquanto espécie.

Não foi muito, mas ele leu algumas palavras, e julgou que, se Lira fosse mesmo seguí-las, teria de se transformar em outra pessoa.

Ryan duvidava muito disso, porém.

— Se tem alguma ideia, fale — soou como uma demanda, mesmo em tom neutro. — Sinto tumulto em você, Ryan Savoia.

O nome completo soava estranho e distante e essa era a intenção da Suzuki; algo nela sempre o dizia que tinha medo.

“Ela não quer se permitir ‘amolecer’ comigo.”

O Savoia podia não ter vivido muito, porém, sabia que o nome de alguém é algo de imensurável valor subjetivo. Seja ao se apresentar ou ler as memórias de alguém, o próprio nome é sempre a primeira coisa a se descobrir.

Se uma coisa descobriu, é que a noção de ser “alguém” e, acima de tudo, ser tratado pelos demais como tal, é algo que empodera o ser humano.

Logo, a escolha de Lira em não dizê-lo como ele gostaria servia como seu modo peculiar de se afastar e demonstrar desrespeito.

Diante disso, mordeu a ponta da língua, ciente de que nada mudaria e, agora, a fez curiosa.

— As coisas estão boas demais… E isso me deixa pensando até quando vai durar.

Antes de terminar, ouviu um estalar de língua, vindo de Mark, que abandonou seu celular; seja lá o que estivesse jogando, não era tão importante quanto se intrometer na conversa.

— Tô pensando por essa linha aí, também…

O jogo capaz de deixá-lo calado por breves dez minutos perdeu seu poder de influência com a emergência do tópico e, escondendo suas ansiedades, estalou o pescoço, antes de falar.

— Você tá falando que tá demorando demais para acontecer alguma coisa e isso tá deixando uma impressão ruim no ar… É, eu sei… Até porque é o que eu tô sentindo também.

O mais pálido apoiou os cotovelos na mesa, seu casaco acinzentado no mesmo tom do céu. No momento, uma leve garoa caía sobre a cidade, cujos sutis barulhos se ouviam ao longe.

— Isso tá me deixando meio perturbado, vou contar para vocês… — clicou a língua contra os dentes. — Em especial quando a gente bota no jogo que não sabemos merda nenhuma sobre qual é o plano dela ou se sequer tem um, além do meu palpite de que vai inevitavelmente vir atrás de mim em busca da vingança dela…

— Vir atrás de nós, Mark. — Lira o corrigiu. — Ela sabe que nós dois fomos os responsáveis por ter parado da cadeia. Seja lá como for, não é uma luta que nenhum de nós vai brigar por si próprio.

Os dois rapazes reagiram de maneiras diferentes, mesmo que, por fora, parecessem tão iguais, nas mesmas expressões de surpresa e olhos arregalados.

Se, por um lado, o respeito de Mark por Lira aumentava com cada palavra, para Ryan, os dois só se distanciaram em seu conceito.

“Lira… Ela sempre é tão mais solícita e menos severa com o Mark… O peso da história que construíram juntos deve mesmo ir longe.”

O olhar que trocaram veio sem palavras, mas ambas as partes o quebraram tendo a compreensão de tudo, com um leve sorriso a brotar nos lábios de cada um.

Ele entendeu o significado disso.

“Talvez eu devesse dar um tempo para eles… Ao menos, até esse clima morrer um pouco.”

Bicicletas funcionam perfeitamente com duas rodas; ele se sentia como a terceira.

“E isso é até mais literal do que eu tô imaginando…” levantou-se, calado. “Eles não precisam de mim.”

O Savoia apenas não entendia o motivo disso o incomodar tanto, dado nunca ter dado atenção a dinâmicas sociais, como essas, antes.

— Ué, onde é que ‘cê vai? A gente já ia te falar um pouco mais acerca dela, para não te deixar tão de fora, e começar a discutir uma possível estratégia! — Mark citou, em até bom humor.

— Só uma passada rápida ao banheiro.

— Ahh! Que foi? Apertou aí, foi? Sei… Sei…! Ou será que…

— Eu já fiquei tempo demais.

Saiu, frio como uma pedra, e tão inexpressivo quanto um conjunto delas, também. Com calma, fechou a porta, e, enfim, deixou o vapor de seus pulmões escapar.

Nunca que aquele cara vai tratar qualquer coisa de um jeito um pouquinho mais sério…

Voltou tão depressa quanto pôde para seu universo de introspecção, como o apreciador que é, de suas próprias ideias inacabadas.

“Essa Samantha… Ela também tem que ser uma das minhas maiores preocupações…”

Brevemente hesitou em entrar no banheiro escuro, temeroso pelo resgate das memórias daquele fim de semana. Ele percebeu os tremores na carne, suplicando que não fosse.

— Isso é irracional…

Mordeu o lábio inferior, forçando cada contração muscular, até chegar à cabine, negando os gritos de seu coração em modo de luta ou fuga.

— Eu acho que passei uns três dias sem conseguir dormir direito, acordando no meio da madrugada com o pensamento de que as sombras das coisas no quarto tinham ganhado vida…

Se deu o luxo de falar em voz alta posto estar sozinho. No fundo, queria gargalhar um pouco de si mesmo.

— E pensar que as sombras das minhas roupas estendidas na parede seriam as primeiras vítimas dos meus golpes de kickboxing…!

Ele não tinha orgulho daquilo.

E, obviamente, seria inevitável relembrar o incidente sem a memória de sua mais ilustre participante. Antes mesmo de notar, seu espaço mental, antes tão branco e vazio, se encheu de verde-esmeralda e uma voz de tom mimado.

“Droga… Será que alguma coisa a mais aconteceu com a Emily? Quer dizer… Nenhum agente do FBI bateu na minha porta ainda e a mídia não fala sobre qualquer rumor acerca de pessoas com poderes ou algo do tipo… E se…”

Os pensamentos o distraíram. Já sem medo, fechou a torneira e secou as mãos.

“E se a conversa sobre ela estar doente não for só uma possível mentira para ficar longe de mim?”

Naturalmente, qualquer indivíduo normal temeria alguém com superpoderes, por mais que essa pessoa se apresentasse inofensiva e esse não era um conceito tão ilógico.

“Talvez eu tenha mesmo tão pouca fé assim nela?”

Não julgava errado pensar pelo modo mais frio, porém, não sentia-se bem com a possibilidade de a julgar por algo que não cometeu.

“Talvez ela seja mesmo confiável?”

Pela segunda vez em menos de cinco minutos, se viu puxado para fora de sua cabeça como um peixe fisgado por um anzol.

“Huh?”

Uma cena não tão corriqueira, embora relativamente normal, se passou diante dele no centro do corredor à sua esquerda. Não muito ao longe, se deparou com uma figura em atividade “suspeita”.

Nada a respeito de superpoderes ou assassinatos, e sim algo bem mais simples e um tanto distante de suas maiores preocupações no momento.

“E eu pensando que isso só acontecesse em séries…”

Não tinha como se dar ao luxo de investir atenção em algo tão bobo; não era para ele, e mesmo que fosse, não aceitaria. Sua vida já estava complicada demais para abarcar uma responsabilidade a mais.

“Eu nem mesmo conheço ela, para começo de conversa.”

Então, para quem fosse, ele desejava a sorte de longe, para a garota que deve ter gastado tanto de seu tempo e sentimentos naquela carta de amor.

“Espero que ela tenha sucesso com essa carta.”

Deu mais um passo, se forçando a pensar só mais um pouco a respeito.

“Espera… Uma carta…?!”

Um choque e sua alma quase fugiu do corpo. Intranquilos, seus pensamentos viajaram de um lado ao outro de seus extremos, urgindo cada músculo à ação.

“Uma carta branca…!”

A ansiedade daquela adolescente em querer desesperadamente socar o envelope naquele armário podia significar algo mais.

— Ei…! Menina! Espera aí…!

Um envelope branco. Nunca antes se deparou com um além da descrição imaginada que tinha construído a partir dos relatos de Mark e Lira. 

— Uh?! Eeh?! — Assustada pela investida tão súbita, escondeu a carta. — O… O que você quer…?! Sai… Sai de perto de mim…!

Sem esperar, a garota de cabelos pretos, arranjados em tranças duplas, iniciou uma corrida, mantendo o envelope preso contra o seu peito como se fosse um tesouro.

— Eu quero dar uma olhada nesse seu envelope…! — O estranho rapaz exclamou, já tão próximo. — Para um minuto…!

— Não…! Fica… Longe de mim…! — E antes mesmo de fechar dez metros, foi tomada pela potência do agarro masculino em seu ombro direito.

Sem cuidado, Ryan pressionou as costas da garota muito menor contra a parede próxima. Agressivamente, seus olhos roxos brilhavam, focados em sua figura assombrada e minguante.

— A carta…! Eu quero ver a carta…! — demandou, opressor.

Os toques firmes dele fizeram marcas de um vermelho intenso em sua pele; em sua posição tão inferior, podia fazer nada além de chorar e rezar para que nada pior fosse acontecer.

— Eu vou pegar isso aqui — falou sem tranquilidade, tomando o objeto de uma forma bruta.

Talvez, essa jovem de aparência inocente fosse somente um modo de manter oculta a passagem das cartas, já que ninguém duvidaria de sua aparência frágil e, muito menos, machucariam um rostinho bonito.

Os responsáveis não fariam algo assim aleatoriamente; tudo devia ser parte de um plano complexo, cheio de atravessadores tão cotidianos quanto o mais normal ser humano poderia ser.

Esse é o melhor jeito de se infiltrar em uma sociedade por anos, sem nunca ser descoberto pelo parasita destruidor que é.

“Um envelope branco, sem remetente, destinatário ou qualquer outra informação, geralmente do tamanho do centro de uma mão aberta.”

Descobrir a possível fonte de distribuição dos envelopes era uma prioridade do grupo no momento.

“Então…!”

Ainda com a garota cativa a derreter-se em lágrimas, Ryan virou o envelope.

— Eh…? — Seus dedos tremeram, afinal…

— SOCORRO! — gritou a menina, em alto e bom tom. — EU ESTOU SENDO ABUSADA NO CORREDOR! SOCORRO!

Aquele era apenas um envelope comum, endereçado a uma pessoa amada.

O papel não se mostrava descaracterizado como previamente pensado; uma metade podia não ter nada, mas ao virar, suas suspeitas desabaram.

A pequena carta tinha um adesivo na forma de coração rosado e, em uma bela caligrafia, as letras liam: “De sua admiradora secreta”.

— SOCORRO…!

Engoliu a saliva, incapaz de reagir. Em seus pensamentos, puniu-se por segundos que duraram anos, remoendo o teatro horroroso que fez, sem poder até criticar o quão estúpido foi.

Somente restou uma opção óbvia.

“Não tem jeito… Eu vou ter que fazer!”

Chamou outra vez por seus poderes, desta vez com o foco de acessar a mente da adolescente, aproveitando-se do contato físico já estabelecido para firmar a ligação entre suas psiques.

“Eu tenho que apagar tudo desses últimos dois minutos da mente dela…!”

As dores em sua própria cabeça refletiam o desespero do processo. Como uma toupeira, o Savoia cavou nos pontos mais profundos, criando caminhos e cavernas.

— GAH…! 

Mas logo ao estar tão perto, um estranho e muito doloroso impacto em sua cabeça o forçou a abandonar o processo.

— Isabella, você tá bem?! A gente ouviu os seus gritos… Pode garantir que eu mesma vou cuidar de lidar com esse tarado maldito…!

Precisou de alguns segundos para recuperar seu foco após o impacto bruto e, logo ao abrir os olhos, todos os seus reflexos se ativaram de uma única vez.

— … Espera…! — desviou com um salto para trás.

— Não me manda esperar, seu estuprador!

Uma menina de cabelos loiros e olhos verdes, menor porém de disposição muito mais explosiva que a primeira, o tentava continuamente atingir com um taco de baseball

— Para com isso…! — Por pouco, desviou de outro golpe. — Deixa eu me explicar…!

Ela não daria de seu curto tempo e pouquíssima paciência para ouvi-lo, especialmente a se tratar de uma história que soaria tão falsa.

— Isso tudo foi um… Mal entendido…!

Desviou por pouco de um golpe baixo em seu joelho. Como uma mãe a proteger sua cria, a baixinha mostrava os dentes em hostilidade, em defesa da sua amiga.

— “Mal entendido” a minha bunda…! — balançou outra vez o taco, errando. — Como é um mal-entendido você ter feito a Isabella chorar?!

A garota entrou em total foco e, cheia de intenção assassina, acumulou toda a força em um ataque que faria omelete de quaisquer ovos que fossem.

— Vou te lembrar de NUNCA mais mexer assim com uma mulher…!

Um golpe certeiro e sua capacidade de gerar descendentes seria perpetuamente comprometida. Com isso em mente, ela girou em um impulso cinético e mirou entre suas pernas.

— Eu já disse. Foi um mal entendido e só isso.

Seus joelhos se transformaram em geléia, quando, com apenas um braço, ele parou seu golpe em pleno ar.

E ele a encarou com imensa frieza, de um modo tão ameaçador que apagava sua coragem como um sopro aniquila o fogo de uma vela de aniversário.

Ela pôde jurar que viu aqueles olhos brilhando, iluminando em um púrpura vazio, ameaçando engoli-la, lembrando-a da coisinha de nada que é perto dele, um homem, quase quarenta centímetros maior do que ela.

— Larga… Larga… Do… meu taco…

Os longos dedos dele sequer ameaçavam permitir o mínimo movimento em seu favor.

— Eu não acho que isso se usa para bater em gente, garotinha. Eu vou ficar com isso.

Com um simples puxão, roubou de suas pequenas mãos o pedaço de madeira polido e tão perigoso, a congelando de puro medo.

— Seu… Seu valentão… de merda… — Mesmo em óbvia desvantagem e preenchida de terror, continuou a afrontar. — Machucando… Garotas… É mesmo… O pior…

O alto rapaz de pele negra coçou os cabelos crespos e bufou em um gesto cansado. Sabia que não importava o que dissesse, pois graças ao choro da tal Isabella, nenhuma delas acreditaria na sua versão.

“Delas”, pois havia outra.

O púrpura se encontrou com o azulado morto dos olhos tão sombrios. De algum modo, aquela garota em particular conseguia superar a própria Lira em termos de ameaça na encarada.

Seus braços longos se envolviam em torno da amiga chorosa, puxando-a para perto de seu peito e nunca em sua vida ele havia visto uma mulher tão assombrosamente alta.

Sem dúvidas, ela o superava por seis ou sete centímetros.

Os cabelos ondulados e muito espessos, da cor de creme, caíam frente ao rosto para dar-lhe um aspecto mórbido e fantasmagórico, típico de um personagem de filme antigo.

Não dizia coisa alguma para ele; não precisava de palavras para comunicar sua ameaça.

— Mas que excesso de confusão é esse acontecendo aqui fora?!

O som da porta da sala a ser aberta revelou a professora responsável pelo horário da sala ao lado. Não foi necessário muito esclarecimento ou interpretação de cena, dado o “fato” de um rapaz com um taco de baseball estar ameaçando três pobres garotas.

Tudo por culpa de um grande mal entendido e, em certo sentido, o "movimento a mais" do qual sua vida precisava.



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