Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capitulo 53: Presente
— Alguma de vocês duas viu a Emily hoje? Tá estranho o dia sem ela …
— Não. — Sem esperar, a jovem de longos cabelos cor de creme, totalmente embaraçados, enfiou o garfo em sua porção de lasanha. — A verdade é que ela ficou doente.
— Doente?! E como assim você só me diz isso agora?!
De repente, o refeitório da escola focou seus olhares no trio de garotas a em uma das mesas ao centro e longos segundos de puro desespero cortaram a pequena loira e seus olhos verdes.
— Tá! Me desculpem! Podem todo mundo parar de olhar para cá, por favor?!
— Sabe que isso só vai fazer eles prestarem mais atenção em você, não? — A outra rebateu, ainda mastigando. — Só se sente e fique quieta.
Paralisada, a menor das três sentiu os braços gentis da terceira e até então calada se entrelaçarem ao redor de seu pequeno corpo.
Com cuidado, ela colocava força para baixo, encorajando-a a sentar de novo e deixar de causar alvoroço.
— Certo, certo, Ava… Nós três sabemos que você se sente mal pelo fato de ela não estar aqui. Acredita em mim, a gente também sente.
A última, pálida e de olhos e cabelos pretos, estilizados em tranças duplas, a amparou como um bebê. Confortando-a na cadeira, era uma das poucas pessoas capazes de desarmar com sucesso aquela personalidade forte.
— É só que não é a mesma coisa sem ela… — cruzou os braços, em frustração. — … E a gente não vai poder abrir a sala do clube hoje…
O sentimento geral se fazia compartilhado por todas, cada uma de seu próprio jeito. Em seu lugar, Olivia, a mais alta, silenciosamente apreciava o pouco de felicidade na forma de macarrão, queijo e presunto, unidos por um molho não tão tóxico quanto se fosse de esperar.
— Fiquei sabendo pela mãe dela. Aparentemente, a Emily acordou bem mal ontem — esperou um leve tempo para engolir. — Não parece ser coisa de hospital ainda, resolveram que seria melhor ela ficar em casa. Ela tinha muita dor de cabeça, nos músculos e febre.
— Coitada… — a última mostrou os dentes. — Se ao menos tivéssemos como visitá-la…
— Seja lá o que ela tenha, provavelmente é contagioso, então eu não encorajaria que fôssemos — repousou o garfo na bandeja, tendo finalizado a refeição. — Vamos tentar manter um contato virtual.
— Parece ser o melhor… — completou a trançada. — … E você ficou tão silenciosa de repente, Ava… Qual a razão?
— Deixe ela assim — interrompeu a desgrenhada. — Não me importo de tê-la falando um pouco menos e chamando menos atenção na hora do almoço.
— Olivia… — a repreendeu, levemente. — A Ava ficou bem triste com isso. Acho que ela merece se sentir assim. Pense um pouco pelo lado dela, sim?
— Hmph — deu de ombros. — Emily não se importaria com isso, e acima de tudo, a Ava já é grandinha demais para entender que nem todo mundo é tão gentil assim, especialmente se tratando dela mesma, que grita por aí com todo mundo como se pudesse mandar neles.
Tal ponto foi o golpe baixo para as ouvintes e Ava, em especial, sentiu-se quebrar com a fala tão fria.
— Olivia…! — a última tentou implorar.
— Continue superprotegendo ela da realidade dessa forma, Isabella. Vai ver onde isso vai chegar em algum tempo. Mas enfim, já que todas terminamos, não querem deixar as suas bandejas de volta? Não tem motivo para ficarmos mais um minuto aqui.
A habilidade dela de transformar um assunto tão sensível como algo irrelevante em questão de segundos era algo impressionante, de um modo que não sabiam dizer ser bom ou ruim.
— Maldita girafa… — Por entre os lábios, a menor murmurou. — Não é à toa que precisou da gente para que parassem de te zoar…
Seu pequeno corpo escapou raivosamente dos braços de Isabella, quando o fato de estarem no meio do refeitório passou a não apontar diferença nenhuma em seu coração.
— Você zomba comigo mais é tão fria que o inverno nessa pocilga vira verão em comparação…! Claro que qualquer um iria te achar uma esquisita…! Olha só para você, com esse tamanho todo! — apontou, de olhos chorosos, para a menina com 1,94 metros de altura.
A característica levantada de sobrancelha a zombou pela tentativa.
— Nossa, isso realmente me afetou — respondeu em um tom monotônico. — É impressionante como você não aceita o fato de que tudo o que eu falo não passam das mais absolutas verdades.
— Vocês duas…! — chamou Isabella, se pondo entre elas. — Não percebem onde estamos?! Vocês duas estão indo longe demais com essa coisa boba de ficarem atacando uma à outra…! E Ava, você sabe que ela odeia ser chamada de girafa!
— Hah…! — riu orgulhosa, de braços cruzados. — Mas é só a verdade, não é? Como a girafa diria, são só os fatos…! E isso tudo além de ser tão feia! Não se arruma e nem se veste direito!
— Ava…!
A confusão entre as três gerou todos os diferentes tipos de reação na plateia.
A grande maioria via a disputa como uma tão desejada porção de entretenimento para mais um dia chato e chuvoso nesse meio de nada, cada um pondo suas apostas em qual das duas ganharia.
Quem seria a vencedora? A pequena, marrenta e emotiva Ava; ou a gigantesca, gélida e lógica Olivia?
A respostas daquilo era o que cada um mais queria saber no momento, ou melhor, quase todos.
“Esse lugar já tá ficando barulhento demais…”
O refeitório maior já não era mais o lugar apropriado para se ter um almoço pacífico, mas sempre havia aquele outro lugar para o qual podia ir em busca de um semblante de sossego.
Com cuidado e visando não chamar atenção para si mesma, fechou a pequena marmita metálica feita por sua mãe. A comida da escola sempre foi, em sua sincera opinião, algo nojento.
O segundo refeitório estava quase vazio, ocupado por poucos, espalhados por entre as múltiplas mesas vagas, repletas de restos deixados pelos outros que as ocupavam antes.
Comparado ao primeiro e principal dos refeitórios, era bem menor e descuidado, muito mais comparável a um amontoado de poucas mesas em um canto aleatório da construção, postas ali para fecharem o espaço de algum modo.
Quando próximo do fim do horário de almoço, o canto tornava-se sem vida ou movimento, o que dava o tempo perfeito para conseguir aproveitar as refeições sempre tão sem sabor.
Ela quietamente selecionou um lugar distante do restante dos outros. Não interessava onde iria se sentar, posto que nenhum deles estaria sequer dando a mínima atenção para seu ser.
A ausência quase completa de sons não foi interrompida. Alguns olhavam para o vazio, outros checavam algo em seus celulares. Ninguém estava realmente interessado na pessoa que acabou de chegar.
Um lugar quieto, onde se poderia respirar em paz. Ela selecionou uma mesa comum, entre as muitas outras deixadas em estado deplorável. Ao menos ali, teria um pouco de paz, um pequeno porto-seguro longe do desejável, mas que ao menos existia.
Um lugar onde as pessoas não se importavam, mas por uma razão completamente diferente da habitual.
Todos ali eram os “perdedores” da escola. Além dela, tinha alguns alunos acima do peso, outros com óculos e grandes aparelhos, ou nerds magros e estudiosos.
Havia uma espécie de respeito mútuo entre essas classes de estudantes, que não tinham por costume se intrometer uns nas vidas dos outros. Todos ali buscavam paz, um descanso da discriminação diária.
Tirou o tempo para notar a primeira coisa que saltou os olhos: suas unhas, perfeitamente cortadas.
“Elas pararam de crescer depois que mamãe as cortou.”
Por mais que pensasse, não tinha uma explicação para as garras enormes e afiadas, crescidas apenas em sua mão direita quando, naturalmente, o processo deveria ser bilateral.
“Ah, eu não quero ter que pensar nisso agora.”
Preparou seu garfo, abrindo a marmita cuidadosamente preparada pela única pessoa no mundo que sensivelmente se importava com ela.
Pensar em tal pessoa — sua amada e tão carinhosa mãe — a fez sorrir. Ela estava preocupada em deixá-la sair tão cedo, pois acabou de se recuperar daquela infecção estranha e horrível.
Mas, incrivelmente, Phoebe se sentia surpreendentemente bem, e acima de tudo, não faltaria, por maior que fosse a sua vontade de não comparecer pelo restante da semana.
Era um dia de provas, e ela não queria perdê-las.
Ali, ela encontrou o verdadeiro significado da felicidade, quando o odor da comida tomou forma, para lhe dar um abraço tão caloroso…
… Que aconteceria, se uma uma maldita mão não entrasse no caminho, derrubando no chão a marmita e arruinando a comida feita com tanto amor.
—Ah, foi mal aí, amiguinha! Eu juro! Eu não vi que o seu almoço tava no caminho da minha mão!
Essa voz gerava calafrios em qualquer um que fosse submetido à horrível experiência de ouví-la.
Presenciar sua chegada a deixou petrificada, presa no lugar como um simples tijolo. Sua respiração se tornou veloz, e os dedos tremeram, mas nada de movimento.
Ela não conseguia sequer pensar em tentar fugir.
O que há poucos segundos era seu almoço foi espalhado, derramado por todos os lugares como se fosse lixo.
A pessoa posicionou sua mão em seu ombro esquerdo e magro, aproximando sua face do respectivo ouvido.
— Espero que tu tenha curtido direitinho a semaninha que ficou de folga, pequena Phoebe.
Olhou para frente, sem ao menos piscar. Não era como se alguém fosse protegê-la, afinal de contas. Ninguém em sua sã consciência faria algo que fosse contra os interesses da pessoa que se punha ali.
A representante de um grupo tão temido e, ainda assim, tratado tão frouxamente pelas autoridades que deveriam protegê-los.
Seu agarro mudou lentamente de lugar, a mão envolveu o pescoço, e o que se seguiu foi firme o suficiente para fazê-la liberar um pequeno grito, retido pelo temor.
Espremendo seu pescoço como a metade de uma laranja, aproximou-se ainda mais de seu ouvido.
— Você quer que isso pare, né? É tudo o que você mais quer.
Parou, mas não por muito tempo.
— Todas as vezes que eu olho nessa tua cara de saco de lixo, meus olhos doem... Eu sinto vontade de vomitar! Você é tão feia e patética que me dá nojo! Eu não consigo me controlar quando vejo esse seu rosto fedido, cheio de sardas, e esse cabelo de palha de aço enferrujada!
Com uma única aplicação de força, foi pressionada contra a mesa. Mais um dia em sua rotina estava prestes a começar.
— Olhar para você faz meu estômago se revirar... E eu não sou a única que pensa isso, sabia? Por que acha que não tem amigos? Todos na escola têm nojo de você!
Com a sua cabeça pressionada contra a mesa, se manteve silenciosa, afinal, não eram mentiras.
— Eu, na sua pele, não voltaria para cá nunca mais. Eu teria tanta vergonha de sempre parecer um sapo que eu faria a coisa óbvia.
Sabia que não deveria estar viva, que esse talvez não fosse um direito seu: o de respirar o mesmo ar que o resto dessas pessoas. Por ser tão patética, merecia isso.
Outro dia para confirmar a futilidade de sua existência.
Misturando-se com as lágrimas, que desciam silenciosas de seus olhos, uma outra sensação líquida, bem maior e fria, tomou sua cabeça.
— Eu acho que seu cabelo precisa de um pouco de tratamento! Não que vá fazer muita coisa, mas deixa eu tentar!
Leite, nomeado por seu cheiro. O fluido frio e um tanto corpulento ensopou seus cabelos crespos e absorveu as lágrimas, criando uma nojenta mistura ao englobar pedaços de comida.
Algo tão repulsivo quanto ela se sentia acerca de si mesma.
Uma risada satisfeita acompanhou o fluxo branco. A essa altura, sequer esboçava a menor vontade de resistir, entregue à realidade.
Ao fim da lenta, fria e repulsiva tortura, um último suspiro cantou no ouvido.
— Você sabe o que tem que fazer para isso parar. Você só tem que deixar de existir. Vê se pega a dica.
E então, como em uma tempestade, tudo se tornou quieto, repentinamente. A presença sumiu da mesma maneira que surgiu. Tudo voltou a ser quase tão silencioso quanto sempre foi.
Com exceção do leve som dos soluços, misto ao gotejar do leite.
“Essa merda…”
As coisas em sua vida nunca mudariam.
“Por que eu tive que nascer assim…?”
As risadas das garotas, as piadas inconvenientes dos rapazes…
— Ugh! Parece que eu vou ter que pedir a Phoebe Martinez em namoro…! Nojo!
— Olha só para ela… Às vezes me dá pena, na real.
“Eu… Eu já não aguento mais…”
— Ei, Phoebe! Será que dá para lavar um prato com o seu cabelo?
— Nossa, já viram como ela cheira mal?
Risos. Sempre acabava em risos.
“Eu queria mandar eles todos para o inferno… Fazer esses desgraçados todos pararem de rir…”
— Ei, Phoebe! Conheço um cara que tá afim de ti… O tal do Zé Ninguém!
— Não, não vai falar com ela… Ela é esquisita e estranha. Deixa ela lá.
Os ecos de cada risada se somavam em sua psique, misturando-se às intenções em seus olhos mortos, fixos no leite fedorento que gotejava de si.
“Eu quero destruir a vida de todos eles…”
Suas unhas haviam crescido de novo, arrancando com facilidade pequenas lascas da madeira, conforme ela arranhava.
Era aquilo que as estava fazendo crescer.
“Eu vou fazer cada um deles desejar nunca terem feito um centésimo do que fizeram comigo…”
E elas continuavam a crescer, mais e mais rígidas, a ponto de cavar cada vez mais mais fundo.
“Eles vão sofrer cada segundo…!”
Fincou as garras com profundidade em sua própria carne, arranhando seu braço esquerdo. Sem se preocupar com a dor, cortou pele e tendões, até chegar no osso.
Os demais estudantes assistiam com horror ao sorriso megalomaníaco de Phoebe Martinez e ao fluxo de seu sangue, a formar um tom grotesco de rosado em sua mistura com o leite.
“ELES VÃO VER…! EU VOU PEGAR CADA UM! EU… EU VOU ME VINGAR…!”
— Meu Deus… Será que a gente chama alguém…?
— Não! Vamos… Vamos só fugir daqui mesmo…! Ela é maluca..!
Em face de tamanha loucura, os demais se uniram em corrida, deixando-a sozinha com sua descoberta.
Os amplos olhos castanhos admiravam o movimento de sua própria carne pulsante. O sangue não parava de jorrar do grande corte, manchando tudo ao redor.
E tão depressa quanto foi feito, o corte se fechou. Pelo comando dos mesmos olhos, sua pele e músculos se uniram de novo, como se o dano nunca houvesse sido feito.
— Eu entendi…! Eu entendi agora…!
Contudo, as marcas permaneciam, espalhadas em carmesim por cada canto de suas imediações, liberando o detestável odor metálico no ar.
Phoebe Martinez nunca sentiu-se tão feliz em sua vida inteira. Finalmente todos os seus pedidos foram respondidos.
— Isso é um presente… Um presente para mim!