Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 51: Chuva
— Chuva de novo, hein? É melhor eu correr de volta logo…!
O céu de um pouco antes já deixava claro que logo viria uma das maiores tempestades de verão do ano, e quando a estação nem havia começado, pensar isso significava bastante.
“Ugh… Ainda bem que a gente saiu daquela casa velha antes de sermos obrigados a ficar do mais que só um pedaço…!”
As pequenas gotas acertaram sua pele, iluminadas do âmbar das luzes, e um pequeno calafrio a cortou da cabeça aos pés.
Por um segundo, cogitou voltar todo o caminho e fazer a coisa de um jeito um pouco mais certo.
“Eu não deveria ter deixado ele voltar para casa sozinho daquele jeito… O cara mal conseguiu pedalar direito para chegar ali e…”
Pensar em Ryan trouxe uma mistura estranha de sentimentos e concepções. Se por um lado sentia-se feliz e bastante animada, — em especial após a grande experiência de seus sonhos que vivera, graças aos seus talentos — por outro, algo a levava a uma profunda melancolia.
Ausência em seus olhos, e o modo como sempre pareciam perdidos em algum outro lugar tão distante e cheio de muitas preocupações.
— Eu não devia ter deixado ele ir só — falou em voz alta, ressentida de sua escolha de apenas sumir.
Com todo o tempo que se passara, ele não estaria mais lá, especialmente com a promessa de chuva. Logo, por mais culpada que se sentisse por deixá-lo, acabava sendo a única opção restante.
— Não adianta mais olhar para trás.
Seu dia foi cheio, e tudo o que mais desejava era tomar um banho quente. Felizmente, seu endereço não era distante dali, bastando cortar uma única rua menor para chegar de volta à Oak Street.
“A chuva deixa a cidade um pouquinho mais bonita.”
Gostava de aproveitar cada momento de tudo o que fazia, guardando as experiências individuais em caixinhas perfeitas, no fundo de seu coração.
Não havia detalhe estético que lhe escapasse a visão, tudo cheio de amplos significados e conexões com coisas tão distantes e, para os outros, sem sentido.
Como de praxe, não haviam muitos outros além dela na rua, contudo, para os poucos que iam e vinham, a segurança contra os pingos era assegurada por estilosos guarda-chuvas, coloridos em padrões floridos.
Os carros se multiplicaram, exibindo o fluxo dos vários respingos, em um ritmo quase constante. O som de cada motor se marcava distinguível, quase desejado pela população tão privada de um pouco mais de agitação.
“É tudo tão bonito…”
Os letreiros das lojas, brilhando em diversas cores e tons; o cheiro dos doces vindos da padaria ao lado da esquina, em seus últimos minutos de funcionamento pelo dia...
Quem diria que um canto tão bonito carregaria tamanha maldição.
— Huh?
Foi forçada a parar quando sentiu algo engasgar na roda traseira. Sem muito tempo e não querendo se ensopar mais, tratou depressa de checar do que se tratava.
— Um pedaço de papel…? Como foi que justo isso ficou empacado na roda a ponto de fazê-la parar?
Seu cenho se distorceu em aguda curiosidade, somada a uma porção válida de ceticismo. A essa altura, decidiu não valer mais a pena se preocupar com estar molhada.
Suas roupas pregavam na pele, de tão ensopadas, logo, permanecer na chuva não faria tanta diferença a mais.
Entenderia se a coisa em questão se tratasse de uma sacola plástica ou de uma fatia de qualquer papelão um pouco mais rígida, todavia, nem de longe foi esse o caso.
— Espera aí… Isso não é só um pedaço de papel… É…
Um material surpreendentemente rígido. Os dedos captavam a sensação do papel comum, porém, mesmo sob tamanha tempestade, permanecia seco, pleno e intocado.
— Uma carta…? Mas o que raios uma carta tá fazendo no meio da rua, no meio de uma chuva dessas…? E o mais importante… Como foi que isso daqui não estragou?!
Por mais que sua mente criativa tentasse vir com possibilidades, nada justificava o fato do envelope sem nome ou endereço se encontrar tão conservado.
— Negócio esquisito… Parece que é uma carta selada… Mas não parece estar endereçada a ninguém…
Um envelope completamente branco e descaracterizado, sustentado somente por uma pequena colagem e de tamanho um pouco maior que a palma aberta de sua mão.
Ao se chocarem, quaisquer gotículas eram prontamente rebatidas, deslizando sem cerimônia ao rumo do chão.
— Hmm… Eu me pergunto o que isso deve significar… Acho melhor dar uma olhada melhor assim que eu chegar em casa. Parece que tem mesmo alguma coisa aqui dentro… Não seria tão pesado se não tivesse.
Balançar o pequeno envelope próximo de seu ouvido revelava o barulho distinto de algo a se mover. Não afetado pelo clima, o conteúdo bailava com a agitação, similar a um chocalho.
Seria esse mais um dos vários mistérios da cidade?
— Ah, claro que não… — falou sozinha, em um riso amargo. — E além do mais, depois de tudo o que eu vivi hoje…
Guardou o envelope no bolso de seu casaco besuntado de água e sem mais delongas, voltou ao ritmo do pedal.
— … O ar de mistério que aqui tinha antes agora só dá lugar ao medo do que pode acontecer amanhã.
Ter as coisas subitamente fazendo sentido não se traduzia em uma experiência tão boa quanto antes pensava. De repente, ela viu tudo perder sua magia e o encanto de se tentar descobrir e justificar.
Não havia mais a graça da aventura, só a morbidez dos detalhes sombrios, o pensamento do diabo sempre à espreita no canto, esperando por quem devorar.
“Não é à toa que nunca encontraram os fugitivos…”
Suas pernas inconscientemente aceleravam o ritmo, ignorando o cansaço.
“Não é à toa que ainda não se deram conta do que tá acontecendo…”
E então, algumas dezenas de metros à sua frente, um clarão.
“… Ou será que eles já sabem…? O quanto escondem de nós?”
O fulgor azulado mudou todo o cenário, levando embora consigo toda a beleza da cidade sob a chuva.
Caiu nas proximidades da biblioteca e tudo se apagou.
— Mas que bela hora para a gente passar por um blackout…!
As poucas pessoas aceleraram seus passos, contando com a luz dos poucos carros para serem suas únicas fontes de visão por algum tempo. Por todos os lados, trevas, onde mal enxergava as formas das construções.
Depois dessa tarde, o escuro tomou tons aterrorizantes.
— Uuuurgh…! Melhor voltar para casa rápido…! Tomara que a mãe tenha comprado velas…!
[...]
— Cheguei.
O impulso de tirar o casaco ensopado logo ao entrar quase o persuadiu. Todavia, bastou pensar um pouco melhor na sensação ácida vinda de suas costas. Não queria acabar revelando demais.
— Ah, e aí, irmão! Curtiu o seu dia fora? Tô vendo que até resolveu tomar um banho de chuva!
Hannah, sentada no sofá da sala, olhou para o corredor com uma plenitude de expectativa.
Já sabendo o que esperar, ele preparou todas as respostas.
— É, eu andei por um tempo pela cidade… Sabe, para conhecer um pouco… — tirou dos pés os sapatos molhados, posicionando-os contra a parede. — Ela me mostrou uns lugares. Foi até bem legal.
E foi apenas com a falta de resposta de sua geralmente curiosa e falastrona irmã que o frio na barriga atingiu o Savoia mais jovem com toda a intensidade.
Ele citou algo que não devia, um mísero pedaço de informação pronto para mudar o rumo da coisa toda.
— Ryan, eu ouvi isso mesmo?! — Em uma explosão de energia, Hannah sorriu e sem saber o que fazer com as mãos, as balançou no ar. — “Ela”? Você disse “Ela”?!
“Oh não”, foi o que ele pensou ao entender o rumo tomado.
— E pensar que o meu irmãozinho enfim encontrou uma garota na qual ele se interesse… Ah, mas eles crescem tão rápido…!
Ciente de que qualquer coisa que dissesse iria ser usada contra ele, por enquanto se manteve calado, deixando a mais velha ter seu momento.
— E como foi com ela? Vocês se divertiram em algum lugar? Ou quem sabe...
Ryan engoliu sua saliva, se solidificando para o próximo comentário, um que ele literalmente conseguia sentir.
— ... Vocês foram para a casa dela, ficaram sozinhos lá esse tempo todo e você só tá usando esse argumento de terem explorado a cidade para me ludibriar?
Mordendo a ponta da própria língua, logo o conhecido gesto de elevar uma sobrancelha se fez no rosto dele.
— Seriamente... Que ideia você tem de mim, Hannah? — suspirou.
Andou até o sofá e levantou a sua mão, fazendo com que a base da sacola plástica que trouxe consigo, tão gentilmente, entrasse em contato com o topo da cabeça de sua irmã.
— Ainda bem que o plástico não deixou a chuva molhar. Presente para você.
— O que é isso? — Apressadamente, pegou o plástico que parecia conter algo bom.
— Caiu a luz no resto da cidade depois de um raio. Pelo menos uma parte de Elderlog acabou ficando no escuro — pausou. — No meio do caminho, eu topei com uma lojinha vendendo esses bolos. Resolvi te trazer um enquanto esperava passar.
Tanto a residência dos Savoia quanto as demais próximas da Rodovia 93 ainda tinham abastecimento elétrico garantido. Era de se supor que isso se devia à diferença no sistema de distribuição.
— Ah, é para mim? Irmãozinho, você é um docinho…!
Sem mais delongas, desembalou o que havia recebido, e logo Ryan viu os olhos de sua irmã mais velha brilhando como os de uma criança que acabou de ganhar um novo brinquedo.
— Eu bem que queria mesmo alguma coisa para compartilhar com o pessoal do hospital! — Disse ela, segurando alto o pequeno bolo de chocolate.
— Levar para o hospital? Você não vai comer? — perguntou, ciente do quanto ela gostava demais de doces para apenas decidir que vai compartilhar com os outros.
— É que semana que vem é o aniversário de uma das minhas colegas de trabalho. Seria bom dar ao menos algo pequeno, mas que seja significativo, não é?
Ele se percebeu um pouco surpreso pela resposta, mas logo se livrou dessa sensação. Esse era apenas o caráter natural de Hannah.
— Entendo. Eu tenho certeza de que ela vai gostar.
Fazendo seu caminho até as escadarias que o levaram ao andar de cima, Ryan disse uma última coisa, antes de se permitir ser absorvido pela escuridão.
— Eu vou descer logo. Quer alguma coisa para o jantar?
— Acho que estou cheia demais para pensar em qualquer comida… — acusou a si própria, esparramada no sofá.
— Deve ser por isso que você não quis saber do bolo… — sorriu com um suspiro cansado. — Tudo bem. Quando sentir fome, pode me chamar e eu preparo alguma coisa. Eu também não estou com fome agora.
— Certo!
Após ouvir essa confirmação, o rapaz subiu depressa as escadas em direção ao quarto. Ele fechou a porta, fazendo questão de acender as luzes.
Tenso, sentou na cadeira e tomou alguns minutos para analisar a loucura que viveu na casa abandonada.
— Talvez eu devesse contar para Mark e Lira a respeito daquilo… — cogitou. — Eles poderiam me ajudar a tomar alguma atitude concreta.
Mas logo essa premissa caiu por terra no momento em que ele se lembrou de como suas ações individualistas foram repudiadas pelos dois. Conhecendo o par, dizer-lhes algo assim só podia acabar em punição.
— Então me parece que vou ter que ficar calado, hein…? E esperar que a Emily faça o mesmo… Talvez eu tenha sido frouxo com a decisão…
Foi a primeira vez em que viu algo tão aterrorizante, e por mais que aparentasse estar calmo, o mero ato de encarar a escuridão embaixo da cama o fazia tremer.
— Agora eu vou começar a ter medo do escuro, é…? Típico de alguém com cinco anos!
A melhor resposta para o medo seria a zombaria, ou ao menos foi o que pensou. Felizmente, ainda era sábado, o que abria margem para pular a noite de sono, se assim quisesse.
Curioso, venceu seu medo e foi até a janela, olhando ao longe, para onde Elderlog deveria estar.
“Isso é um pesadelo.”
Onde em todas as outras noites via um amontoado de luzes, entre azul e laranja, agora existia o nada, um breu tão denso quanto o da floresta ao redor.
… E mesmo com todas as suas forças, não permaneceu por mais de trinta segundos, de volta ao conforto da luz.
— Olhando melhor agora, não morar no meio da cidade foi uma opção melhor…
Deitou-se na cama, despertando as diversas dores em seu corpo, incapaz de descansar.
[...]
— Calma… Fica calma… Respira… Isso… Isso vai passar…
A tempestade raivosa martelava o telhado e escorria pela vidraças da janela, arranhando-as.
— Foi só um blackout… Logo vai se resolver… Logo vai se resolver…
Escuridão, por todo canto que olhasse, escalando pelas paredes, sempre tão próxima.
— Eu… Eu posso ficar calma… Eu consigo…
Se encolhia entre o edredom que falhava em aquecê-la numa noite tão fria. Ao lado, a porta do quarto foi trancada às pressas, o mesmo válido para a do banheiro.
Deveria se sentir segura, mas nenhuma proteção lhe seria suficiente.
No exterior, via nada além de formas indistintas entre o breu molhado, sombras das grandes e mal-cuidadas árvores da Rowan Street.
Na cama, abraçava os próprios joelhos, trêmula. Nunca gostou de estar rodeada pelo escuro.
— Vai ficar tudo bem… Vai ficar tudo bem… Eu vou ficar bem…
Seu celular, ao lado, não funcionaria por muito mais tempo, crente de que a bateria em estado crítico falharia na metade do caminho até as velas no andar de baixo.
— Lá embaixo… Não… Eu não quero ir lá embaixo…
O canto do quarto se perdia em trevas, tornando a porta ainda mais distante do que deveria ser, onde qualquer chance de luz existia fora de seu alcance.
— Eu… Eu tenho medo… Não consigo…!
Se sentia podre e fraca, pequena por se acovardar diante de algo tão comum, por se render a um medo tão infantil e infundado.
— Por favor… Para de gritar comigo… — agarrou seu peito. — Eu… Eu não… Eu não tenho culpa…!
No ritmo da próxima batida de seu desesperado coração, veio o relâmpago.
— Por favor… Não fala isso… Para de falar… Para…
Talvez tenha sido apenas sua imaginação? Seu dia foi difícil, e talvez estivesse preocupada que os reparos feitos às pressas por seu vizinho na janela da cozinha não fossem suficientes.
— Me deixa em paz…!
Teve de mentir e falar que crianças arruaceiras arruinaram o vidro. Dizer de quem foi a culpa só daria a mesma resposta e, com isso, qualquer coisa culminaria em nada.
— Vai embora… Vai embora… Vai embora…
Seu bom vizinho a disse que as tábuas de madeira eram velhas, e que por isso, não iriam durar.
— Para de falar… Isso é mentira… Mentira…!
Ou talvez, o ataque de pânico, misto das lágrimas a borrarem sua vista a deram essa impressão. A mente tende a criar coisas onde não existem e disso ela sabia.
— CALA A BOCA!
O eco de sua exclamação foi abafado pelo próximo relâmpago. Mais próxima, a falha brilhante na continuidade do ar explodiu em luz, preenchendo o lugar com seu fulgor.
Nunca houve mais alguém ali.