Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 50: Uma Última Aventura
— Por todos os deuses…! Por favor, nos ajudem!
Suas perspectivas do significado de “aventura” certamente não iam tão fundo e mesmo que fruto de superpoderes, nunca em sua vida imaginou estar em um cenário real de conflito em um mundo mágico.
— Isso… Isso acontece no capítulo 12 do livro, quando a aventureira Sophia entra em uma cidade que acaba sendo atacada…!
Seus olhos verdes brilhavam em pânico real conforme via as pessoas da cidade medieval fugirem o mais desesperadamente quanto podiam da enorme ameaça a subir por seus muros, ignorando a imponência da estrutura.
Entre os vários pilares de fumaça à distância, sua forma se fazia visível, rugindo selvagem e perturbado, com nenhum objetivo ou racionalidade, além de trazer a destruição final para o assentamento humano.
— Kzarchnagush… O enorme dragão vermelho das montanhas…
Seus suspiros de espanto se perdiam entre os grunhidos raivosos da fera a queimar tudo com sua cólera, cuspindo chamas infernais sobre cavaleiros e suas espadas, sendo os guerreiros mágicos a última fronte que tinha mínimo sucesso em atrasá-lo.
Tudo era assombrosamente real. Sentia em sua testa o suor, e seu nariz captava a estranha mistura de palha fresca com madeira queimada e especiarias. Até mesmo o calor do fogo se fazia ali, a incidir sobre sua alva pele, vinda das ruínas de uma casa ao lado.
Aquela descrição lhe era particular demais. Logo aconteceria.
— Não temam! Eu, Sophia de Galore, estou aqui para salvar essa cidade…!
Até mesmo a entonação da voz da heroína da história era a mesma de seus pensamentos durante a leitura daquele grande clássico.
— Oh, então essa é a tal Sophia… Ela parece mesmo bem heróica na sua cabeça.
Ryan estava ao lado, assistindo junto dela como todas as coisas se passavam de acordo com os acontecimentos da narrativa. Até o momento, cada pedaço daquela viagem havia corrido da mesma maneira que já se encontrava descrita.
Ambos viram Sophia desembainhar sua espada de prata encantada, repleta de detalhes dourados. A mulher — uma princesa meio-elfa de acordo com a narrativa —, apontou o fio brilhante para a poderosa besta, travando olhares.
— “Seus fios loiros esvoaçavam ao vento, carregados da esperança dos poucos que creram em sua chegada, e a heroína apontou o fio de sua lâmina para a criatura vinda das trevas”...
Escutar Emily repetir em tom baixo as frases do livro ao mesmo tempo que as via acontecer o fez sorrir um pouco. Se qualquer coisa, foi um sinal de que sua imitação tirada das memórias soou ideal.
— “Seu coração se focou com os de todos em um som, e sua alma brilhou, cheia de coragem, ao momento que chamou por seu poder mágico”.
— HAAAAAAAAH…!
Um brilho azulado consumiu a plenitude da espada, vendo-se energia da mesma cor a girar em torno do metal, como em um redemoinho. A visão se assemelhava a várias pequenas estrelas em uma galáxia.
— “Ela então brandiu o encanto final, e exclamou em alto e bom tom…”.
— Padeça, pela glória dos deuses que sorriem sobre esse mundo, ó terrível besta!
Sophia saltou em direção ao enorme dragão vermelho, consumindo os arredores em uma explosão magnífica de azul.
— Incrível… — murmurou a presidente do clube de literatura. — Isso tudo… Isso é…
Não tinha as palavras que descrevessem toda a graça do espetáculo. Mesmo tão imaginativa, nunca imaginou estar tão próxima de todas as suas fantasias, afinal de contas, isso era tudo o que deveriam ser.
Não para ele, e isso apenas ficaria mais claro a partir dali.
— Vai, Sophia…! Eu… Eu sei que você vai conseguir…!
A besta vermelha rugiu, claramente ferida de jeito pesado pelo poderoso golpe mágico da protagonista. Sem esperar mais um segundo em seu ódio, o imenso réptil mítico outra vez acumulou um grande volume de chamas em sua boca.
Emily mal podia se conter, dando leves pulinhos de ansiedade, sem sair de seu próprio lugar. Ele sabia o que esse gesto queria dizer.
— Emily… Quer ajudar a Sophia a vencer o dragão?
A pergunta feita por ele não soou séria de começo. Logo ao ouvir, o encarou com tamanha seriedade que sequer podia calcular, com direito até a uma gota de suor a lhe escorrer pela testa.
Não podia ser real.
— Você… Você tá falando sério, Ryan…? A gente… A gente pode ajudar a derrubar o Kzarchnagush?!
— Uh… Eu ainda não sei pronunciar o nome dessa coisa direto… — coçou a nuca. — Mas a gente pode sim. Lembra do que eu disse mais cedo? A gente tá dentro da sua imaginação, então, embora eu seja o arquiteto desse espaço inteiro…
Ryan estendeu as mãos, tomando ar. Por um breve momento, ambos os seus olhos brilharam em um firme tom de arroxeado.
— Tudo isso aqui ainda é uma recriação de tudo o que você pensou, Emily, e eu sei que todo bom leitor gosta de se imaginar parte da história em algum ponto.
Ele bateu palmas, e outra vez as coisas mudaram. No mundo da imaginação, seus poderes eram plenos e absolutos. Com isso, fez surgir nas mãos dela um grande cajado de madeira decorado com jóias das mais diversas cores, culminando em um formato de espiral ao seu topo.
— Wow… — O ar lhe faltava diante da novidade. — Isso é…
— É um cajado mágico — afirmou, puxando algo para si mesmo a partir do próprio ar. — Vamos! É uma aventura!
Em piscar de olhos, surgiu na destra de Ryan uma espada similar em detalhes à de Sophia, embora com um esquema de cores diferenciado, já que ao invés de ser prateada com detalhes em ouro, tinha um fio de metal cinza-escuro análogo ao chumbo, e linhas pretas similares à obsidiana.
— Isso é tudo parte da diversão, então não precisa ter medo de fazer isso aqui…!
Sem explicações a mais, ele imitou o gesto de Sophia, saltando no ar tão alto quanto ela. De espada empunhada, focou na grande criatura ao longe, cujo foco jazia na protagonista em uma batalha difícil.
— Waaaah…! Ei..! Ryan…! Espera por mim…! Ugh…! Não me deixa aqui assim…! Essa é a minha imaginação, em primeiro lugar…!
Mesmo temerosa, decidiu tentar o mesmo, Seus pulmões se encheram de ar, e em um solavanco único, uniu toda a força de suas pernas.
“Woow…! Eu… Eu tô quase voando…!”
Sentia o fluxo pesado de ar quente a penetrar-lhe nariz e olhos, assim como o terrível frio na barriga, a seguir o pressentimento de que cairia dali de cima a qualquer momento.
— “Almofada de Vento”…! — exclamou ao brandir seu cajado.
O brilho das múltiplas jóias veio ao mundo ao entoar o mais simples feitiço de vento presente no livro, assim como um dos primeiros que Laysha, personagem amiga de Sophia, aprendeu durante a parte da Academia de Magia.
E funcionou justo como devia, gerando uma pequena nuvem flutuante e felpuda como o mais confortável algodão logo abaixo de seus pés, amortecendo qualquer possível queda. Com todo esse conforto, talvez fosse hora de olhar um pouco para baixo.
— Ah, esse Ryan…! — Não podia acreditar na cena que via. — Brincando com a minha imaginação desse jeito…!
O rapaz alto negro entrava em contraste absoluto com a tão alva e feminina Sophia, ambos em uma espécie de baile com suas espadas, lançando ataque após ataque contra as escamas de Kzarchnagush. Mesmo ali de cima, claramente se divertia, talvez até um pouco demais.
— Eu não acredito que ele tá aproveitando dessa oportunidade para flertar com a Sophia…!
Assistir o par lutar tão coordenadamente, um guiando o outro para uma melhor oportunidade de acerto com seus ataques mágicos e criando aberturas que dessem aquele tipo de vantagem a fazia sentir inveja.
Afinal, aquela era a sua imaginação e antes de qualquer outro, ela deveria brilhar ao lado de Sophia.
— Isso não vai ficar assim…! Essa aventura… É minha!
Com ambos os braços levantou o cajado o mais alto possível acima de sua cabeça. Emily travou os dentes, acumulando toda aquela estranha energia em seu interior, preparada para fazê-la cair como um martelo contra a ameaça à humanidade.
— EU SOU QUEM VOU DAR O GOLPE FINAL! VÁ… “CLAMOR DOS ELEMENTOS!”
O brilho pálido no cúmulo do cajado se dividiu em todas as sete cores do arco-íris, cada feixe individual dirigido automaticamente na direção do massivo dragão. Os impactos se fizeram em tempos ligeiramente diferentes, explodindo em brilho por todos os lados.
— GRAAAAAAAAAW….!
E com um rugido final, caiu em um terremoto o gigante corpo de uma das maiores ameaças daquele mundo fantasioso, derrubada com um mero golpe.
— TOMA ESSA…! — lentamente, a nuvem mágica descia Emily do céu, trazendo seu humor triunfante para entre os dois espadachins. — E então, o que achou da verdadeira ajudante da heroína, Ryan?! Você aprende comigo como se abate um crocodilo gigante!
O rapaz fracamente riu, de braços cruzados, antes de ofertar uma mão para que sua companhia pudesse pular da nuvem.
— Eu teria morrido de verdade com aquela explosão se não fosse tudo fantasioso. Me lembre de balancear os seus poderes da próxima vez, senhorita ajudante da protagonista.
— Heh! — riu em zombaria. — Você só tá dizendo isso porque não conhecia nada desse mundo…! Claro que eu seria a mais forte! Eu sei de tudo sobre a saga, do começo ao fim!
— É, eu não duvido disso, mas… — apontou para a direita. — Eu acho que alguém iria querer ter uma palavra com você. Por que não vai lá tentar conversar com ela?
… … …
— Kzarchnagush, a besta que por milênios atormentou o mundo… A criatura que todos os povos julgavam indestrutível… O mal com o qual teríamos que lidar por toda a existência de nosso sangue, até o fim dos dias…
A aventureira Sophia sentia-se fraca nas pernas diante da visão que tinha: a de um dragão vermelho gigantesco, friamente morto por aquela explosão de luz.
— Eu… Ainda tenho muito o que crescer até chegar no nível do poderoso Mago que eliminou tão formidável criatura…
Seus pensamentos tão profundos a faziam ver-se pequena perto do ator de algo tão magnífico. Mesmo com todo o seu treinamento, não criaria algo que se igualasse ao menor ponto com aquilo.
E a pessoa responsável estava logo ali, inspecionando a criatura de frente como uma criança curiosa.
— Caramba… E pensar que até esses finos detalhes ficam realistas assim…!
Deslizava as mãos pelas grossas escamas de aço do falecido Kzarchnagush. Mesmo para um dragão de fogo, o metal brilhante em carmesim conseguia ser tão gelado quanto o livro descreveu, no instante de seu abate.
— Com licença…
A voz a falar diretamente consigo a tirou de seu foco exploratório. Ao ouvir, o coração saltou uma batida, ainda descrente do que estaria para acontecer.
— Algo me diz que foi você quem finalizou tamanha besta… Por favor, permita-me saber o seu nome, ó Grande e Brava. Dê-me a honra de conhecer a responsável pela queda de um dos grandes males deste mundo.
“A… Sophia… Ela tá… Ela tá se ajoelhando diante de mim…!”
— Por favor — repousou sua espada ao chão à direita, em reverência. — Dê à minha alma a felicidade de saber quem és, para que vosso nome seja sempre lembrado em nossa história.
“Waaaah…!”
Em uma tentativa de conter sua histeria interna, olhou ao longe até achar Ryan, que como resposta acenou de leve, antes de sinalizar negativamente com sua mão direita e um balançar horizontal de sua cabeça.
Estavam ficando sem tempo. Deveria ser ali ou nunca.
— Uhh… É… O meu nome… Uh… Por favor… Primeiro… Não precisa, bem… Se ajoelhar, sabe? Ehehehe…
A sensação de se estar diante de um de seus maiores ídolos, por mais que apenas fantasioso, era verdadeiramente esmagadora.
— Não posso me permitir isso. — Sophia entoou, final. — Não devo faltar em respeito com você, ó Grande e Brava. Por favor, permita-me egoisticamente tamanho prazer.
“Isso de não faltar com respeito era uma tradição para o povo dela… É, eu lembro disso, mas não tá ajudando agora…!”
Secou o suor de sua testa, engolindo os remanescentes de saliva acumulados no fundo da garganta. Acumulou, enfim, coragem o suficiente.
— Uh… Já que você pede, o meu nome é…
[...]
— Ugh…!
E antes de poder dizer qualquer coisa a mais, sentiu-se de volta à familiar frieza da cidade pacata. Depois de tudo o que viveram, ter de parar na melhor parte não era apenas decepcionante.
— Aí, por que a gente teve que parar logo na melhor hora?! Poxa, eu tava a um passo de falar com a Sophia e…!
— Foi mal… Foi mal mesmo… — respondeu ele, com ambas as mãos na cabeça. — Eu… Acho que calculei errado a quantidade de energia que tinha… Se bem que você falou demais, também.
— Ryan…
Imediatamente se sentiu culpada ao ver seu estado. Em sua face descansava um visual cansado e dolorido, onde um fio de sangue escapava pela narina esquerda.
— Tomara que eu não passe o domingo todo doente por causa disso…
Bateu de leve em suas bochechas, tentando se despertar. Com ainda um pouco de dificuldade, ergueu-se do banco.
Não haveria de ter se passado muito tempo no mundo real.
— A gente pode tentar continuar isso algum outro dia. Lá dentro da sua mente, a gente passou umas duas horas, mas aqui…
Olhou na tela quebrada de seu celular, felizmente, ainda perfeitamente funcional.
— Só se passaram dois minutos no mundo real.
— Então… É como um sonho…
— Por aí.
A capacidade dele de recriar mundo inteiros a partir de memórias em um nível hiper realista ainda fazia ondas frias a cobrirem da cabeça aos pés, mesmo após ter vivenciado cada segundo.
“Ele… Talvez eu pudesse contar para elas sobre ele…”
Todas as aventuras que poderiam viver, cada universo que teriam a chance de visitar, narrativas infinitas em forma de sonhos mais que lúcidos e…!
— Eu só te mostrei isso porque confio o bastante em você, Emily — cortou sua linha. — E eu realmente espero que não comecem a rolar boatos por aí.
Ele confiava nela. Durante aquele tempo em suas próprias memórias, se sentiu mais vulnerável do que nunca, por estar o tempo inteiro no alcance de seus poderes, à mercê de qualquer coisa.
Ryan poderia, perfeitamente, ter desfeito todo o progresso que fizeram para proteger a si mesmo e à sua identidade.
“E mesmo assim ele escolheu confiar em mim para isso.”
Honrar a promessa era o mínimo que podia fazer
— Relaxa. O teu segredo tá seguro comigo.
Chegava a hora de dividir caminhos.
— Valeu mesmo, Ryan. Valeu por tudo de hoje.
Veio dela um sorriso de gratidão verdadeira, tão sincero e doce.
— Até outro dia!
E ele assistiu sua forma depressa fugir entre as sombras do começo da noite, para tomar sua bicicleta cor-de-rosa e escapar pela primeira rua que visse.
“Isso…”
Tocou seu peito, tentando palpar a estranha sensação.
“Eu nunca senti isso antes.”
Dezessete anos, e só cinco deles em sua memória. Uma existência tão pequena e ao mesmo tempo misteriosa.
“Eu não sei o que é isso.”
Cinco anos, para em somente duas semanas sentir muito mais do nunca sentiu antes.
“Mas eu não quero parar de sentir.”
Verde-esmeralda: uma nova cor adicionada em sua paleta.