Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 49: Poente
“Quanta dor… Cada pedacinho do meu corpo tá na mais pura agonia… Nunca na vida eu pensei que, um dia, ia ouvir o meu bíceps direito gritar…”
A pequena expedição exploratória até uma casa velha no final da cidade se traduziu na intensidade de uma viagem inteira até o Canadá, para suas exaustas pernas.
“Isso me mostra que continuar sendo basicamente um sedentário não vai me levar muito longe.”
Seu corpo, atirado no banco da praça, permanecia imóvel. Qualquer pequeno movimento, por mais sutil, traria a maior quantidade de sofrimento de sua existência.
“O corte daquelas garras nas minhas costas nem dói mais… É como se a minha mente não tivesse mais condições de se preocupar, eu acho…”
Eram apenas suposições, mas qualquer coisa serviria para manter sua cabeça longe dos detalhes mais sofríveis do dia.
Porém, mesmo nesse ritmo, não se esquecia do elefante na sala.
“Esses criminosos que escaparam do presídio… E isso sem falar na tal de Samantha, que eu não tenho um pedaço de informação sobre… Quem será que foi o responsável?”
Mark se preparava ativamente para uma possível investida da tal sujeita. Até o momento não haviam discutido muito sobre ela, com o rapaz de olhos roxos sabendo pouco mais que o essencial.
Não havia como negar a agitação presente nos rostos do casal super poderoso quando tocaram no tópico, porém.
“Espero que segunda seja um bom dia para começarmos a pensar em alguma coisa…”
Acima, as nuvens acinzentadas corriam lentamente, formando padrões indistintos e que não podia associar com nada em especial. O sol já quase sumia no horizonte, um pouco mais que 16h.
“Ainda bem que não demoramos mais nem um minuto lá dentro… Um pouco mais e não teríamos luz solar suficiente. Não quero nem imaginar ficar lá de noite…”
— Toma.
O contato da súbita sensação gélida em sua bochecha esquerda enviou confusos sinais múltiplos. Os músculos entraram em conflito, debatendo entre contraírem ou não, moverem-se ou permanecerem.
O resultado disso foi óbvio: mais dor.
— Arrgh…! — Ryan se contorceu por inteiro, sequer ciente de onde tocar ou onde doía mais. — Por favor, pode não fazer isso?! Eu tô quebrado aqui…!
— Heheheheh! — Uma risada entretida foi tudo o que teve como resposta. — Mas que super-herói fraco! Não aguenta um pouquinho de frio e veio morar em Montana!
— Você sabe que esse não é o problema…! — rebateu em alarme, sentado em postura. — E pode não falar nisso em voz tão alta? Mesmo que não tenham muitos, ainda tem pessoas por aqui…!
Emily não parava de rir, cobrindo a boca com a palma de um jeito pobre. Ele não entendia o quão engraçado era fazer outra pessoa sofrer, principalmente após tudo o que viveram naquela velha casa.
Era quase impressionante vê-la agindo tão normalmente, depois de um evento que abalou toda a sua realidade.
— Desculpa! Desculpa…! É só que…! — foi interrompida pela própria gargalhada. — … É só que não dá para não rir da sua cara…!
— Grrr… — mostrou os dentes em frustração. — Enfim… Faz o que eu tô dizendo, tá bom? Não sai por aí espalhando para ninguém… Isso é coisa importante. E… Eu acho que tô confiando em você, beleza?
— Own! Olha só como ele fica fofinho…! Confiando em mim! Quase me faz querer chorar! — Se aproximou dele.
— Se continuar com isso… Eu vou ter que apagar as suas memórias de novo… — encabulado, não a conseguia encarar de frente.
— Você tem noção de que não tá soando nada convicente, né? Primeiro vai ter que me alcançar, e pelo jeito que você tá quebrado…
Levantou a latinha de refrigerante a poucos centímetros do nariz de seu mais novo amigo superpoderoso. O impacto do forte tom de púrpura foi quase doloroso ao cérebro, trazendo-lhe terríveis memórias do sabor da coisa.
— Uh… Obrigado, mas eu não vou querer… Esse negócio tem gosto de veneno…
— Ah, mas você vai beber sim! Eu não me dei o trabalho de buscar isso para você por nada! Veio do meu dinheiro, então seja um pouco grato, tá bom?!
Olhar para a sua direita o revelou Emily visivelmente aborrecida. Graças à demora, ela mesma tratou de empurrar a lata contra sua bochecha em um gesto meio brincalhão, meio bravo.
— Toma! Toma!
— Tá bom…! Tá bom! Eu tomo isso…! Só para com isso de uma vez! Isso dói para caramba!
— Hmph! — cruzou os braços em aparente frustração. — Você deveria mesmo tentar aprender como ser um pouquinho mais amigável com as garotas, sabia?! Principalmente se for uma fofa que nem eu! Desse jeito, não vai arranjar nenhuma namorada!
“Como se eu tivesse o tempo ou a cabeça para arranjar uma…”
Abriu a lata, que estourou em “pizzzz…”, para então se deparar com o malvado sabor artificial de uvas que, por alguma razão, não era tão ruim quanto se lembrava.
Olhos para frente, refletiu ao tomar mais goles.
“‘Ser um pouquinho mais amigável com as garotas’, né?”
“Não toca em mim, seu nojento…! E nunca… Nunca fala comigo de novo…!”
“Ashley, onde quer que você esteja… Eu sinto muito.”
Não custava ter sido um pouco menos insensível naquele dia. Bastou só um momento de seu orgulho frágil à mostra, para arruinar tudo o que ela tentou construir com tanto carinho.
Ela o queria introduzir aos seus demais amigos e foi notável o quão empolgada estava pela oportunidade.
Tudo teve a chance de correr bem, mas ele teve que ser o engomadinho que ainda achava estar acima de tudo graças aos seus poderes.
“Ela ficou tão brava comigo naquele dia e eu entendi o porquê… Eu só não não me importei. Ou melhor, eu escolhi não me importar.”
Tomou outro gole.
— Uh… Ei, cara… Olha, eu sei que eu disse aquilo, mas… Olha, eu não quis dizer literalmente, tá bom? Quer dizer… Olhando para ti… Sei lá, pode ser até que dê certo…!
O que ela não tinha ciência era do exato local em que a mente do rapaz superpoderoso estava.
— Então… Não fica triste não, tá bom? Foi… Foi só uma brincadeira…! — Diante do silêncio, cada frase vinha com mais pânico — Ryan…? Você tá me assustando…! Ryan?!
— Heh.
— Woah…! Mas o que… O que é que você tá fazendo assim… Assim do nada…?!
A Attwood quase saltou do banco, em surpresa diante do gesto tão repentino e fora de lugar. De repente veio essa pressão estranha no topo de sua cabeça e…
— Obrigado, Emily. — Ryan sorriu. — Por confiar em mim, por guardar o meu segredo e por esse refrigerante não tão horrível assim. Obrigado de verdade.
“Ele sabe sorrir?! Waaah…!”
Não era qualquer sorriso grande, sequer de dentes à mostra, e mesmo assim, se fazia tão grande em seu semblante.
Podia sentir sua cabeça cozinhar com o embaraço do contexto inteiro combinado. Geralmente, esse tipo de coisa seria feito por ela mesma e na forma de uma brincadeira para tirá-lo do sério, porém lidar com uma demonstração legítima de tanto afeto e confiança…
“Eu tô sentindo vergonha?! Eu, Emily Attwood?!”
— Oooh! Eu sabia que deveria ter feito isso antes! — disse. — O seu cabelo é muito macio e sedoso, Emily.
— Tá… Tá bom…! Eu já… Já entendi, tá bom?! — se recolheu, enrubescida. — E… É claro que sim…! Eu… Eu sempre cuido do meu cabelo, entendeu?!
— Certo, certo! Embora… — descabido, tomou uma fungada de sua mão. — Cheira muito bem também! Morangos, certo?
“Eu não acredito que esse cara tá virando o meu placar no meu próprio jogo…! Só eu deveria ganhar nisso! Só euzinha…!”
— Não vai tomar o seu refri? Já deve estar perdendo o gás… Só dizendo!
— Eu vou, tá?! Eu vou tomar…!
Tomou a lata vermelha com conteúdo sabor groselha e sem pensar, virou todo o restante de em poucos goles.
— Me surpreende você ter escolhido uma lata vermelha para si mesma, sendo que é uma cor que não tem nada haver… E no meu caso só foi no óbvio de pegar a primeira coisa roxa que viu. Acho que precisamos falar um pouquinho sobre preconceitos, senhorita Attwood!
— Não enche, cara…! — Ainda fora de balanço, rebateu. — Eu só fui no óbvio mesmo…! E fique agradecido por eu me preocupar tanto contigo…!
— Ora, ora, o que foi isso que eu ouvi? Emily Attwood, preocupada comigo?
— Não… Não foi nesse… Sentido…!
— Entendi…! Entendi! Vou fingir que acredito!
— Ora, seu…!
[...]
— … E isso meio que completa a história inteira. Eu venho parar aqui depois de cinco anos de ter acordado de um coma que me levou todas as lembranças e… Uh… Acho que foi o que me deu poderes, também…? Mas isso não é revelante agora… E como eu dizia, me deparo com esse tipo de situação acontecendo por aqui…
Tendo escutado a história inteira, Emily se surpreendia com o volume de informação que, de alguma forma, conseguia fazer sentido quando agrupado do jeito correto.
— Então o Perfurador de Elderlog também era uma dessas pessoas super poderosas, só que agora ele tá morto por causa de você e outros dentro da escola, jovens que nem a gente?
— Isso. Infelizmente eu não posso te falar muito e pelo seu bem, recomendo não procurar saber quem eles são. Esse pessoal é bem mais perigoso e capaz do que pode parecer e sei que não ficariam muito satisfeitos se soubessem que eu falei deles assim para alguém “normal”. Acredita em mim quando eu digo que vão tomar medidas drásticas se souberem… Coisa pior do que só apagar a sua memória.
O tempo de 16h39 trouxe o poente. Ao longe, o céu perdia suas cores, engolido pelo arroxeado da noite. Na rua e nos arredores do parque, as luzes se acendiam, algumas já com alguns poucos insetos a circundarem.
— Caramba…
A garota pressionou os lábios, focando na pequena trilha de formigas cortadeiras a levarem folhas das árvores próximas. Por mais curiosa que estivesse, julgava válidos os motivos dele por não querer sua intrusão excessiva no assunto.
— Olhando agora, é até meio estranho pensar que quem criou a hipótese tão fantasiosa de serem superpoderes estaria correto… É até meio… Engraçado…
— Engraçado? O que teria de engraçado em um monte de tragédia acontecendo?!
— Não, não é dessa parte que eu tô falando — abanou a mão frente ao rosto. — É que, tipo, é conveniente demais, não acha? O jeito como as peças se encaixam…
— Huh?
— O fato disso tudo ter começado a ficar sério justo quando você veio para cá… Sem falar na sua mãe estar sempre sumindo. Não acha que é meio que garantido que ela tenha algum envolvimento nisso?
— Olha, se eu tiver que ser honesto… Eu não descarto a possibilidade.
Pensar em Joanne sempre foi muito enigmático para Ryan. A mulher que deveria chamar de “mãe” nunca passou de uma incógnita, dado que por passar períodos estendidos longe de casa, jamais deteve de qualquer proximidade com a mesma.
— Eu já tentei encontrar respostas usando o meu poder, e nunca deu certo… E não fiz isso apenas uma vez. Nem mesmo que se trate de um detalhe indireto, não encontro nada sobre isso, seja nela ou na minha irmã.
— Isso é bizarro… — pausou, descontinuando o tópico. — E na questão dessa pessoa que você tá procurando, ainda acha mesmo que é ela?
— É cedo para dizer… — respondeu hesitante. — Ela foi presa naquele mesmo lugar, e pelo que eu sei, não morreu… Minha intuição diz que ela, com certeza, tem todo o envolvimento nesse esquema todo, de algum modo.
— Oooh? É mulher agora para ter intuição? — brincou. — Heh! Metade de mim quer que você esteja certo, enquanto a outra reza pelo erro.
— É… Seria melhor se fosse só mais um fantasma mesmo…
A conversa veio e foi, e a noite enfim bateu na porta. O ar, já antes gélido, se revelava ainda mais frio, os evocando para o conforto de suas casas aquecidas, embora talvez não tão seguras assim.
— Cara, eu te garanto… Hoje eu não durmo de luz apagada! — tentou trazer humor a toda a situação. — Mas pode ficar tranquilo. Eu mantenho as minhas promessas. Vou guardar o seu segredo, amiguinho super poderoso!
Os dois trocaram uma breve risada seca, Ryan já um pouco mais confortável.
— Espero que sim, porque no momento em que eu ligar a TV ou acessar a internet e encontrar que uma pessoa anônima dos EUA revelou que superpoderes existem…
— Eu sei, eu sei…! Você vai me capturar e me entregar para os seus outros amigos superpoderosos! Eu já entendi! Fico frio, cara. Eu não sou dessas!
Dada a hora de se despedir, havia uma última emoção preparada para o coração da amante de literatura.
— Emily.
— Hmm? Mais alguma coisa para me contar? Talvez… Dizer o quanto eu sou uma gracinha?
— Não, não é isso… — Ryan riu um pouco. — Eu só queria te perguntar… Tá pronta para uma última aventura hoje?
O puro silêncio se fez pesado no grande banco de madeira, a devorar o espaço entre eles por longos cinco segundos.
— Ryan, olha para esse céu… — apontou para cima. — Tá de noite…! E eu acho que nenhum de nós dois tá com condição de mais nada hoje…! A não ser que…
O alargar de seus olhos e tampar da boca com a mão destra foram tudo que o mostrou a interpretação tomada.
— Ryan, seu safa…!
— Não é isso! — A interrompeu antes que pudesse falar tudo em voz alta. — Olha… Toca na minha mão. Você não vai se arrepender disso.
Mais silêncio, junto de encarada suspeita de seus olhos verdes.
— É mais um plano para apagar as minhas memórias?
— Não, não é. Só confia em mim e toca na minha mão. Vai ser interessante.
Com muita hesitação, deslizou aos poucos os seus dedos pela madeira, até que sua pequena mão fosse envolta pela dele.
— Agora, só me dá um momento…
O Savoia fechou os olhos, tomando ar gelado e úmido. Em foco, seus lábios se partiram para dizer algumas últimas palavras antes do que tinha pensado para o fim da tarde.
— Meu cérebro não deve ter virado gelatina ainda, então eu tenho uma reserva final de energia para isso — citou, calmamente. — Ah, aqui… Consegui firmar a conexão.
E antes mesmo que ela pudesse reagir de qualquer forma, sentiu-se escapar de si mesma, para um canto muito mais profundo.
[...]
“Hmmm…? Onde… Onde é que eu tô…?”
Os pássaros a cantarem, o calor confortável de um sol de meio-dia, a sensação do que parecia ser a mais macia grama embaixo de suas mãos.
Sentiu o cheiro de madeira e relva, além da notável diferença na carga sobre sua pele. Foi como se suas roupas houvessem ficado muito mais leves.
“Esse lugar…”
Abriu os olhos; deparou-se com um sonho.
— E aí.
“Uh?!”
— Gostou do cenário? Acho que vai reconhecer de algum lugar.
No topo da colina verde, estava ele, sentado à sua direita, com as primeiras notáveis diferenças a serem vistas no primeiro bater de olhos. Ao invés de seu casaco e vestes habituais, o rapaz trajava algo que muito mais lembrava um camponês da época medieval.
Calças de pano alaranjadas e uma camisa de manga longa preta, somadas a um par de botas de couro, todas em grande detalhe.
— Ryan?! Onde… Onde é que a gente tá? Que lugar é esse?! É…
Tudo era muito diferente da paisagem de Elderlog. Ao longe, no fim do grande campo de grama, via montanhas azuladas escalando ao topo, sólidas e confiantes, quase confusas entre o céu sem o menor traço de nuvens, onde o sol reinava triunfante.
Pássaros esvoaçavam, fazendo acrobacias entre as árvores ao longe. Não eram pinheiros como os de Elderlog, de um verde tão escuro e morto, mas sim plantas repletas de brilho, contagiantes de empolgação.
Estavam os dois no topo de uma colina, tendo vista privilegiada de cada pequena coisinha. Ali, quase perto das montanhas, seus olhos capturaram uma torre de tijolos claros, erguida alta, como se a fim de desafiar os picos antigos.
— Esse lugar… Eu… Reconheço… Isso é…
Olhou para baixo, em direção a si mesma, para notar que a mudança de visual não foi apenas dele.
No lugar de seu casaco verde, usava um leve vestido branco e azul, seus tênis rosados substituídos por sapatinhos pretos estilosos, com direito a meias fofas e brancas.
Ela reconhecia essa cena.
— É de um livro! “O Último Reino Mágico”, de Johanna Montreal! Essa é a planície de Astraigh! Ryan… Isso significa que…
— É isso aí. A gente tá dentro da sua imaginação. É exatamente assim que você imagina a paisagem do primeiro capítulo, né?
As sensações eram reais, desde o conforto das roupas até o clima confortável, com direito à mais gostosa ventania. Era tudo do exato modo como imaginou, ao ler as palavras no papel.
— O tempo dentro da mente passa diferente. Vem, vamos dar uma explorada por aqui.
Emily assentiu e, em um estalar de dedos, a terra no caminho se dividiu, e do próprio chão surgiu uma escadaria rústica de pedras brancas, pronta para levar-lhes até a parte mais baixa da planície.
— E então, vamos para uma última aventura por hoje?
A resposta veio sem hesitação.
— Claro…!