Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 44: Vale da Estranheza
— ... Ah, que se dane!
A súbita exclamação mandou um sinal para cada músculo de suas pernas, urgindo-o a escapar o mais depressa possível. Sem perceber, envolveu o corpo da jovem traumatizada em seus braços, tomado por uma súbita onda de pura força.
Foi no exato instante em que a fraca luz se apagou, graças ao pânico de lidar com sua forma tão simplista e ao mesmo tempo terrível, o verdadeiro mistério por trás do fato dos mitos e lendas urbanas contadas pelo povo da cidade a respeito dessa maldita casa.
A criatura não fez barulho, mesmo em seus movimentos tão rápidos. Seus gestos eram quase imperceptíveis, como uma verdadeira sombra deveria ser, no meio da profunda escuridão.
Estendeu um de seus longos braços, contudo, falhou em pegar sua presa, que desviou, o ameaçando com o estranho brilho roxo de seus olhos.
Viu-o sair do cômodo mesmo que não tivesse olhos, sua existência dotada do mero propósito de perseguir. Não iria fazer mal, já que sempre poderia pegar um atalho para chegar no mesmo lugar.
E saltou, caindo em uma sombra, dissolvendo-se nela como uma gota d’água se mistura ao lago.
… … …
— Essa casa…! Mas o que diabos é aquela coisa?!
A mente de Ryan corria a mil por segundo, tentando encontrar uma explicação lógica para o arranjo tão anormal de circunstâncias.
Sua energia dividia-se entre os braços que carregavam a forma miserável de Emily, as pernas que corriam em imensurável desespero, e a mente que se esforçava tanto quanto podia para fazer sentido de tudo.
— A gente tem que sair dessa casa… A gente tem que dar o fora agora…!
Sabia que falava sozinho. Em seu peito, a garota amante de livros e suas aventuras se estragava em lágrimas e soluços, agarrando-se a ele com tanta firmeza que chegava a causar dor. Suas unhas fincavam na pele por baixo do casaco preto, caçando a tão frágil sensação de segurança.
“Eu tenho que tirar nós dois daqui…!”
Ele não sabia o que pensar, e honestamente, preferia não perder energia preciosa elaborando qualquer tipo de teoria para o que fosse a coisa no andar de cima.
Seu foco máximo era chegar às escadas e descer em rumo à salvação, mesmo que seus pulmões queimem ou pernas se rasguem; mesmo que…
“Você só pode estar brincando com a minha cara…!”
As escadas. Logo ali estavam elas, e bem ao lado, a coisa também. Havia chegado ali bem mais depressa do que qualquer chance sua de correr garantiria. Olhando para a criatura, notou já ter esperado ali por um tempo.
Travou no lugar, posto frente à visão da coisa que não deveria ter outro lugar senão os seus mais profundos pesadelos.
— Isso se comporta… Como uma sombra viva… — murmurou, ainda agarrando a menina tão forte quanto seus braços suportavam.
O instante revelou suas características, e se deu o tempo de apreciar a forma completa da criatura abandonada por Deus.
Um corpo magro e esguio, alto o bastante para superar um jogador de basquete mediano por cerca de uma cabeça, e embora tanto lembrasse um humano, isso era prontamente ignorado pelo cérebro.
Sua composição, contudo, representava a parte mais perturbadora de seu construto. O Savoia via nada mais que uma forma totalmente escura, desprovida de qualquer característica descritiva.
Era como olhar para um boneco de palito distorcido, totalmente colorido de preto.
— Ah, caramba…
Seus pés tremeram, prontos para dar a meia-volta rumo ao lugar que sabia não ser mais do que outra armadilha.
Pequenos buracos no teto deixavam pequenos feixes de luz externa entrarem. Abaixo deles, algumas poças d’água rasas reinavam, soberanas, sob seus pequenos holofotes. Esse brilho quase insignificante foi a razão de ainda se poder ver alguma coisa ali dentro.
Nada disso passava a importar quando não existia chance de escapar.
Lento. A coisa vinha sempre tão devagar, os provocando. Assistir seu comportamento zombador revelava saber se tratar do dono da situação, assim como mostrava seu desejo sádico, um princípio quase humano demais para se acreditar tratar de um ser irracional.
Queria mostrar estar no comando, brincar com suas presas. Suas grandes garras faziam lascas de madeira voar ao colidirem com a parede em alta velocidade, em esforço para se exibir.
“Essa coisa… Isso não tem como ser um fantasma ou um espírito…”
Ryan nunca acreditou em coisas como espíritos ou demônios, mesmo incapaz de se chamar de “pessoa normal”.
“O jeito como se comporta… É quase como se…”
E de repente, sumiu nas trevas abaixo de si com a facilidade de um mergulhador a cair de corpo inteiro na água. Sorvido imediatamente sem qualquer barulho, passou exatos dois segundos…
— NÃO! NÃO! EU NÃO QUERO MORRER…! EU NÃO QUERO MORRER!
Surgiu por trás deles, vindo de suas próprias sombras, dotado de um alvo claro.
— Emily…!
Quando sentiu sua presença por trás, mostrou-se tarde demais para fazer qualquer coisa. Sua forma fria e desalmada já os tinha justo onde queria.
— RYAN…!
A monstruosidade o ignorou completamente, entrelaçando seus membros sombrios em torno de seu verdadeiro alvo e o puxando para longe.
Dessa vez, porém, houve tempo o suficiente para reagir.
— Morra…!
Puxou sua faca e preparou um golpe certeiro contra o rosto da coisa. A ponta do metal pálido o tocou, em um contato final.
“Mas o quê?!”
O Savoia entrou em pânico quando a sensação que seu punho recebeu foi a mesma de ter tentado furar uma louça de porcelana. A “pele” da criatura de sombra repeliu o ataque, e a faca deslizou.
Não quis perder tempo com ele, e antes de sumir, deixou-o saber seu julgamento: inútil.
A criatura pisou na sombra mais próxima, decompondo-se para levá-la consigo.
— Emily…! Eu tô indo…!
Sem pensar, passou a perseguir a coisa pelo andar de cima. Seja lá o que fosse, a entidade escura não queria se envolver com ele.
“Droga, eu tenho que pensar em um jeito de nos tirar dessa maluquice toda…!”
O ser de sombras se prendeu a um canto no teto, entre o telhado e o guarda-roupas de um dos quartos. Dali, o assistia ao mesmo tempo que abafava o rosto de Emily, atento como uma coruja, preso tal qual um punhado de chiclete, misto na escuridão.
— Você vai largar ela…!
Em sua primeira chance, pegou uma velha cadeira nas proximidades de uma mesa e jogou contra a criatura com o uso de toda a sua força.
Sem resultados.
“Por que isso não me ataca de volta?!”
O olhava, prendendo o corpo da menina no interior do seu, como um inseto na geleia. Emily havia caído inconsciente, imóvel na grande massa escura que compreendia a besta.
Foi então que ficou claro para ele.
“Espera… Essa coisa…”
O comportamento estranho e intimidador do monstro na casa parecia se clarear a cada segundo. Desde o primeiro momento, várias incógnitas o tomaram, todas sem a menor perspectiva de solução.
Porém, bastou que visse um curso de ação tão absurdo para que entendesse do que verdadeiramente se tratava a presença da criatura..
— Espera… Isso nunca tentou me atacar…
Apontou para a criatura e não teve resposta. Em seu canto escuro na parede, o estado de imobilismo perdurava.
— Mesmo comigo aqui… Mesmo com uma possível presa… Isso não fez absolutamente nada. Não faz nada porque eu não sou o que você busca…!
Falava alto de propósito, na intenção de tentar irritar a entidade sombria. Ryan saltou, pisoteou o chão, moveu os objetos no quarto, mas nada gerou reação.
— As latas de feijão lá embaixo… Sinais de habitação nessa casa… Ah, eu sei o que você é… Devia ser claro para mim esse tempo todo… Agora eu entendi o motivo de você não ter me atacado imediatamente ali nas escadas…
Logo no início, metade de si mesmo gritou para fugir. Quando captou a criatura conduzindo Emily o desejo de suas pernas foi deixá-la aqui e ir embora sem sofrer qualquer consequência.
Mas, foi nesse mesmo instante quando ligou os pontos sobre toda a estranheza desse ser.
— O seu alvo é ela…
Foi absurdo para ele olhar para trás e perceber que em nenhum momento a sua vida esteve em perigo, e que poderia, se assim desejasse, ter saído da casa em passos lentos, abandonando Emily ao próprio destino.
— … Porque foi ela quem pisou na sua sombra… E você odeia a luz…!
Tirou o celular do bolso.
— SSSSSSSHHHHHHIIIIIEEEEEKKKK…!
O brilho da lanterna arrancou da criatura um barulho infernal. De repente, todo o quarto soou como um pedaço de carne submetido à fritura.
A escuridão em forma demoníaca se debateu, seu corpo ganhando buracos e perdendo partes, feitas em vapor escuro. Em aparente agonia, cobria seu rosto sem características com as mãos, gritando.
Com isso, não hesitou em desaparecer no espaço entre o grande guarda roupa e a parede, sobrenaturalmente buscando como sobreviver.
— Oh, droga…! Ela vai cair…!
Ainda tomado pela adrenalina, seu corpo demorou mais do que seria ótimo para reagir, e com isso, Emily caiu no chão antes de ser capturada. Felizmente, a estrutura não cedeu.
Contudo, não significava que eles estavam livres.
“Aquela coisa ainda conseguiu escapar… Pelo menos agora eu sei qual o ponto fraco…!”
A estrutura do segundo piso não tinha como fazer mais sentido, afinal, por qual outro motivo todas as janelas estariam bloqueadas, para impedir a luz?
“O ambiente foi claramente manipulado por mãos humanas. Seja quem fez isso, estava esperando receber visitas… Mas talvez, não tantas.”
O que quer que fosse o construto, não estava vivo ou morto, e era, senão, apenas uma ferramenta para capturar qualquer louco o suficiente para tentar explorar o segundo andar da casa.
“Aquilo nem mesmo me via… Agia como um robô, programado para seguir uma única linha de comando.”
Por enquanto, eles estavam seguros, mas sabia que não seria a luz de uma lanterna de celular que os salvaria.
“Fantasmas e demônios não existem. Não passam de histórias contadas pelas pessoas para trazer algum tipo de lição de moral ou conscientização. Eu pessoalmente nunca gostei disso.”
Seus olhos espiavam cada canto um pouco menos iluminado pela lanterna, em busca do primeiro sinal de um braço ou rosto escuros.
“Isso é trabalho de alguém… Tem mais uma pessoa com poderes vivendo nessa cidade e eu com certeza estou em um conflito direto com ela nesse exato momento…”
E saber disso apenas tornava as coisas ironicamente piores. Humanos sempre foram o único verdadeiro mal a andar sobre a terra.
“Pessoas com compasso moral questionável estão ganhando poderes e fazendo coisas absurdas com essas capacidades..."
Abraçou o corpo desfalecido de Emily. Ela respirava com dificuldades, lutando internamente contra seu mais novo trauma.
“Isso, com toda certeza, é obra de uma dessas pessoas."