Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 43: Nictofobia
— Shhhhhhhhh… — O ar escapou desconcertante por entre seus lábios. — Iremos ficar bem quietos agora, Emily… Bem silenciosos.
A visão do rapaz a empunhar a grande lâmina brilhante em prateado imaculado a fez tremer da cabeça aos pés. De repente, a exploração que prometia ser tão divertida se transformava na cena de um verdadeiro filme de terror.
— Ryan… Do que você tá falando…? E para quê essa faca?!
Suas mãos incessantemente trêmulas derrubaram a lata de feijão tão suspeita, o estopim de tudo. Não podia ver a si mesma, mas se pudesse, enxergaria o puro horror estampado em sua face.
— Nós invadimos um espaço que não é para a gente — revelou, ainda enigmático. — E isso… Não é coisa que um bando de garotinhas de um clube de literatura deveriam investigar.
Eram palavras grandes… E ele sabia disso. Em sua mente, se repetiam continuamente os minutos infernais que viveu na Elderlog High durante a fuga de Keith Webb da polícia.
Naquele dia, saíram de sua boca palavras tão grandes quanto.
“Mas agora, eu vou fazer questão de fazer elas valerem. Eu tenho que fazer.”
O lado mais racional de sua mente o dizia para agarrar Emily pelo braço e fugir da casa, apagar as memórias dela e criar um monte de lembranças falsas sobre uma aventura que deu em nada, e ele sabia se tratar da melhor escolha.
Mas, ao mesmo tempo, não o caminho que ele queria tomar.
Alguma coisa — não sabia dizer o que era e, para ser sincero, não tinha o luxo de se importar — o chamava para o andar de cima, como se a própria escuridão das escadas ao lado da sala de estar chamasse continuamente.
E tal noção o atraía de uma maneira bem mais estranha do que jamais se preocuparia em tentar logicamente explicar.
“Isso quer que eu suba… Quer que eu vá atrás e descubra…”
Focou no corredor vazio e empoeirado que conectava a cozinha à sala de estar. A luz acinzentada entrava fracamente pelas janelas empoeiradas, iluminando o suficiente para que visse os formatos das mobílias, contrastantes com a escuridão do caminho.
— Ryan… Ryan, o que tá acontecendo…? Me diz alguma coisa… Ryan… Ryan…!
As trevas o chamavam, letra por letra do seu nome, instigando-o a segui-las.
— Ryan…!
O agarrar firme em seu punho o tirou de seu transe. Por um segundo, sentiu-se como um peixe, puxado para fora d’água em extremas velocidades, sua consciência estabilizada de novo de um jeito frágil, mantida no lugar apenas por esse contato.
— Ryan, você tá me assustando…! Me explica o que tá acontecendo… Me fala…! Me diz alguma coisa, por favor…! Não me faz sentir sozinha aqui dentro!
Emily, dona dos belos olhos verdes, cintilantes como as mais puras gemas de esmeralda… Assombrada, como nunca antes.
Suor escorria de sua testa, mesmo nesse clima tão frio. Sua respiração, afiada e curta, era a coisa mais barulhenta nos arredores inteiros e suas palmas estavam cobertas do grude criado pelo próprio corpo.
Caso Ryan se concentrasse o suficiente, seria perfeitamente capaz de ouvir o ritmo de seu coração acelerado, no meio do peito, onde se via claro movimento nas roupas, como se um verme caminhasse por baixo delas.
— Não fica calado, Ryan… Diz alguma coisa…
O pedido saiu com um tom choroso, dirigido ao rapaz que mais parecia um possesso por algum tipo de demônio. Ela se jogava sobre ele, buscando a sensação de segurança de sua carne, mais e mais perto, o rosto afundado em seu peito.
— Eu… Eu não teria vindo aqui… Eu… Foi uma ideia ruim…
Foi uma ideia terrível, e uma da qual não havia mais volta, para toda a infelicidade da Attwood.
— Ryan…
Urgia por sua voz, suplicando para que dissesse algo, porém, como resposta houve apenas o silêncio, e tal ausência foi a última coisa que esperou ouvir.
Ela não se importaria se ele gritasse, dissesse que foi tudo culpa dela e a abandonasse ali dentro, sozinha, pois tudo o que mais queria era poder ouvir ao menos um som que não fosse o de seu próprio desespero.
— Eu não tô entendendo… — Ela murmurou. — Eu não entendo porque você tá sendo tão estranho do nada…!
Claro. Assim pareceria para alguém que não conhecia as verdades cujas garras cresciam em torno da cidade. Era apenas natural que ela pensasse de tal maneira.
— Fala alguma coisa…!
Antes que pudesse gritar mais, teve sua respiração interrompida pela grande mão dele, fechando sua boca, e enfim, veio o que tanto esperou.
— Emily, eu prometo que vou te explicar tudo, mas agora, a gente precisa tomar o máximo de cuidado…
Ryan a abraçou com certa firmeza, gesto esse que surpreendeu a própria garota por demais, pelo simples fato de não ser característico dele.
— Julgando pelo modo como as coisas correram até agora, nós já estamos sendo observados há algum tempo.
Uma frase que a chocou da cabeça aos pés.
— NÃO…! Eu quero ir embora…! EU VOU SAIR DAQUI…!
Em um momento de distração, Emily empurrou Ryan com toda a força recém-adquirida por sua crise de ansiedade. Em velocidade, passou a bater em disparada na direção da porta de entrada.
Ryan sabia a verdade, e essa foi a pior escolha que sua companhia poderia ter feito.
— EMILY, NÃO SE APROXIMA DA ESCADA…!
Ele tentou acompanhá-la, mas foi tarde demais.
— UH?! KYAAAA!
O fenômeno desenrolado foi de congelar o sangue.
Os gritos de Emily perduraram, mais e mais distantes na grande estrutura da residência antiga. Sua voz ainda o chamava, gritando seu nome, a cada segundo um pouco mais longe do que antes, em junção aos terríveis barulhos de algo a se retorcer em meio à madeira apodrecida.
— O que foi… Isso…?
Sentiu fraqueza em seus joelhos, nunca antes tendo imaginado isso como possível.
Algo a puxou para o andar de cima, no instante exato em que seus pés se encontraram com a zona mais escura do corredor rumo à saída.
Não… Explicação incorreta. Foi senão a própria escuridão das escadas que a arrastou, envolvendo seu corpo nas trevas densas e vivas em forma de tentáculos anômalos e sumindo com ele tão depressa quanto.
Um passo para trás e derrubou a faca, seu eco metálico ao colidir com o chão a despertá-lo outra vez de uma série tão desnecessária de pensamentos. Foi então que se deu conta que não tinha mais tempo para pensar.
— EMILY…!
Pegou sua arma do chão. O impulso de força em suas pernas não era sentido pelo espírito. Na corrida mais acelerada de sua vida, a mente ainda insistia em se prender a outro lugar. Por mais que se esforçasse, a presença de Ryan Savoia não existia no “aqui e agora”.
Seus dentes se trancaram, mas ele não sentiu isso. Sua respiração acelerou e se aqueceu, tomando para si o ar putrefato e corrosivo do andar de cima, contudo, não fazia diferença.
Sua mente não queria saber se o odor ali era tão ruim e invasivo que deixava seu nariz a um passo de sangrar.
Pela primeira vez, sentiu na pele o significado de não se importar com sua própria segurança.
— EMILY, EU TÔ CHEGANDO…!
O andar de baixo era posto para chorar em comparação a esse, em termos do puro terror que gerava. Em primeiro lugar, havia quase nenhuma iluminação natural, dadas as janelas fechadas e repletas de parafusos a fixar as grossas tábuas de madeira.
Eram placas fortes, de aparência rígida demais para pertencerem em uma casa abandonada há anos.
— EMILY…!
Os passos descuidados levavam o chão a ranger, ameaçando cair sob seus pés sempre no próximo passo que desse. Do teto, as goteiras encheram vários pontos com água nojenta.
E foi então que viu uma porta aberta.
— EMILY!
Lá estava ela, viva, mas nada bem.
— EMILY…!
Não houve qualquer resposta, além do derramar de lágrimas mais doloroso de se ver que Ryan experienciou em sua curta vida.
Algo a traumatizou. Sem qualquer reação que não fosse chorar e tremer, permanecia sentada em um canto do quarto, com a tela de seu celular ligada, pressionada contra o peito.
Seu olhar, antes tão alegre e aventuresco, muito mais passava a lembrar algo destruído e arruinado de tantos modos diferentes, em questão de meros segundos.
Ele se ajoelhou com cuidado e tentou tocá-la no ombro.
— NÃO…! NÃO! VAI VOLTAR! ELE VAI VOLTAR…! RYAN…! RYAN! AAAAH…!
O imensurável desespero em sua voz gritante o fez considerar desistir da ideia. A Attwood esperneava como uma criança pequena, se pressionando com mais força, perante a tentativa do rapaz de estabelecer contato.
— ME AJUDA…! ME AJUDA! EU QUERO SAIR DAQUI! ME AJUDA…!
A veemência com a qual negava com a cabeça era tamanha que poderia acabar se machucando.
— Tá tudo bem, Emily… Eu vou tirar nós dois daqui…
Sabia estar falando demais outra vez, mas era o que ela precisava no momento. Se conseguissem sair dali vivos, iria apagar cada uma das lembranças dela a respeito de qualquer ideia que tivesse sobre entrar em casas abandonadas.
“… E eu tenho que procurar as amigas dela também, para fazer o mesmo…”
Mas antes, teriam de vencer o macabro desafiante a se construir logo ali, na frente da porta de entrada do quarto.
— RYAN…! RYAN…! NÃO! NÃO! NÃO! RYAN! NÃO…! — Emily gritou tão alto quanto pôde, esperneando enquanto presa no abraço firme dele.
Ryan, por outro lado, só tinha a pergunta óbvia a se fazer.
“Mas o que diabos é essa coisa…?”
A adrenalina invadiu seu corpo em uma nova dose ao se deparar com o desenvolvimento diante deles. De fato, nunca estiveram sozinhos nesse lugar amaldiçoado.
A luz fraca do celular de Emily incidia sobre o grande espelho do guarda-roupa no quarto, mesmo que parcialmente. Os poucos fótons eram redirecionados para cada canto da sala, dando-lhes uma noção mínima de que nunca foi parte original do cômodo.
Surgia, lentamente, atrás da porta, vindo de uma porção de sombra cuja qual teoricamente não teria como caber dentro.
Primeiro, mostrou uma mão. Tinha forma humanóide, cheia de garras afiadas em seus cinco dedos, que usou, delicadamente, para arranhar a madeira apodrecida, esculpindo-a.
Sua movimentação não fazia qualquer barulho, segundo a segundo, um pouco mais perto de se mostrar, espalhando mais pedaços de si para fora da pura treva que vinha do canto do quarto.
Forma alta e esguia além de qualquer limite humano. Era senão uma representação distorcida do que deveria ser a humanidade. Seus braços longos alcançavam o chão, deslizando sobre a madeira, desproporcionalmente grandes.
Uma sombra a mais na parede, tão escura, vil e fria quanto qualquer outra.
Tinha o comportamento de um caçador oportunista, espreitando pelas beiradas, movendo-se nos vãos entre os feixes de luz tão fracos, indo em baile, de mobília em mobília, pisando nas sombras que o sorviam.
Não tinha olhos, mas enxergava, os inspecionando, curioso, apenas espreitando em deleite, ansioso pelo momento no qual algo tão enormemente especial ocorreria, a ocasião que selaria a brincadeirinha de investigação.
Não tinha boca, porém sorria para ele e sua companhia, ciente de que ao menos um deles sabia do que isso tudo se tratava. Existia medo, e o sentia no ar.
Essas crianças descobriram muito mais do que deviam. Deixá-las ir seria um desperdício.
E se tinha uma coisa que isso sabia sobre crianças como aquelas duas…
— AAAH…! AAAAAAAAH! — Incapaz de se conter, Emily entrou em pânico, atirando seu celular para o alto. O objeto colidiu com o chão de forma a desligar sua tela.
… Era que todas elas tinham medo do escuro.