Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 42: Paradoxo
"Espero que eu não acabe piorando as coisas ao pensar assim, mas… Eu não acho que tenha como sair nada de bom disso."
A construção imponente os olhava de volta, quase como se possuísse vida própria, a analisar cada passo com seus vários olhos em forma de janelas tão escuras que não permitiam ver o lado de dentro.
— E aí, o que achou? — questionou Emily, um tanto orgulhosa de si mesma. — Não é assombrosa e misteriosa?
Uma grande casa de madeira velha. Superficialmente, ainda viam-se alguns restos da antiga pintura esverdeada que a cobria, entregues ao descuido que tudo consumia.
Mato alto crescia por todo o arredor, o suficiente para quase lhe atingir nos joelhos, um prato cheio para alguma serpente com necessidade de se esconder.
Pedaços de madeira velhos e tão avariados quanto a casa em si se destacavam, separados dos demais constituintes da residência, juntas a algumas barras de ferro sem utilidade nenhuma graças à grossa ferrugem a devora-las.
— É um pouco mais medonha do que eu tinha imaginado…
A confissão de Ryan a fez saltar em comemoração por breves dois segundos. Enérgica e em urgência para dar entrada, a jovem de olhos verdes se colocou prontamente à sua esquerda.
— Dá para ver a Oak Street daqui, sabia? — apontou um ponto ao longe. — Ali, embaixo, no meio daquelas árvores.
O apontamento começado por ela guiou seus olhos roxos até uma das várias "bolhas" visíveis à distância e, especialmente, para a maior delas.
A grande comunidade tinha o aspecto de ser pequena ali de cima. A zona da cidade em que se encontravam no momento existia sobre um pequeno morro, a figurar como o último ponto antes que Elderlog deixasse de ser e desse seu lugar para o grande bosque.
— A biblioteca. Ali, com o teto cinza! Tá vendo?
A Attwood animadamente passou a apontar cada estrutura que se destacava no amontoado de pequenos bloquinhos. Além dali, apenas alguns bons metros de árvores até que se pudesse ver a próxima bolha.
— Não é bonito ver a cidade daqui? Nos dá uma perspectiva diferente das coisas, não?
Ryan tomou o momento para refletir no que acabou de ser dito. De fato, ao se olhar ali de cima, tudo mudava de tom.
E isso se devia ao fato de, até tão pouco tempo, tudo ali lhe parecer tão insignificante e sem valor real.
— É uma vista bonita — admitiu. — Descobrir isso aqui me deu uma visão diferente das coisas.
Cada uma dessas pessoas, tentando viver suas vidas ao mesmo tempo que uma ameaça tão grande deslizava despercebida entre os muros…
— Uh, Ryan… Eu sei que você deve estar em um momento super filosófico aí, mas…
Emily bateu em sua cabeça com sutileza, o suficiente para gerar um eco interno firme a ponto de arrancá-lo de seus pensamentos.
— A gente vai entrar na casa ou não? Porque pelo jeito como as coisas estão aqui fora, eu não me surpreenderia se começasse a chover de novo assim do nada!
Ela tinha razão. Entre a névoa espessa e o gris das nuvens, não se via muito além da zona de Oak Street.
O céu não tinha desistido de seu ataque sem piedade contra a pequena cidade em Montana.
— Certo, mas eu só tenho mais uma pergunta… O que são aquelas chaminés industriais ali do outro lado?
Ele apontou um conjunto de formas quase invisíveis entre a cerração, surgidas na direção oposta à do centro de Elderlog. Longe entre as árvores, um estranho complexo se erguia dos morros.
— Ah, aquela ali é a Aiken Steelworks, uma aciaria que abriu sede aqui na cidade faz uns três anos.
Era dali que vinha a tão frequente linha de fumaça visível pela janela da sala de aula. Muitas vezes, se encontrava olhando naquela direção, em especial quando em busca de escapar da realidade por um instante.
— A cidade cresceu muito economicamente desde que chegaram, e isso foi muito rápido. Parece que a rocha da região é rica em carvão mineral e muitas reservas de ferro e prata.
A adolescente tomou um passo à frente, também trancando olhares no conjunto de edificações à frente, cada uma com sua respectiva função.
— Todo mundo agradece de ter essa empresa aqui, junto com a Blue Lagoon Loggings, até porque se não fosse por esses dois empreendimentos, metade da cidade não teria emprego.
— Entendi…
Tudo ali não passava de um grande marasmo melancólico demais. Nessa zona da cidade não existiam mais de vinte casas, isso sem contar com a ruína em formação.
As residências eram distantes e sequer um ser humano além deles dois cruzou o caminho no tempo inteiro de diálogo. O único barulho que se ouvia era o do vento, movendo as folhas e a grama.
— E então, a gente vai entrar ou não? A gente não veio aqui só para falar sobre a cidade, né?
— É verdade. Mas… Se eu tiver que ser sincero…
Até mesmo a mais fraca ventania fazia a casa tremer da base ao topo. Seu maior medo ali não eram de longe os fantasmas, mas o risco disso cair sobre suas cabeças no primeiro passo.
— Oooh, não me diga que tem medinho de encontrar uma alma penada aí dentro, Ryan? — Ela zombou, a rir. — Caramba, mas que cara mais frouxo, esse que eu fui arranjar para me proteger…!
"Típico", pensou, decidindo ignorar quando esse tipo de brincadeira acontecesse.
O Savoia deu o passo decisivo no primeiro dos três degraus que dividiam a casa e o chão, surpreso pelo contrário do esperado, quando a madeira se provou sólida o bastante.
— Bem, pelo menos aguenta o meu peso… — anunciou em voz alta. — E você? O que vai ficar fazendo aí?
— Ah, não se preocupe comigo…! — abanou a mão em sua direção. — Eu vou ficar aqui, dando apoio moral! Se você cair em uma vala ou coisa do tipo, já sei onde eu não devo pisar!
Por pouco, conteve com sucesso a amargura em sua boca e seguiu seu caminho.
— Agora, a porta… Quebrada, como eu imaginei… — falou mais para si mesmo do que para Emily.
Duas das três velhas dobradiças metálicas que uniam o objeto à parede se encontravam avariadas além de qualquer funcionamento possível. A ferrugem tornava impossível de usá-las, e um simples toque arrancava pedaços inteiros do que antes foi uma firme estrutura metálica.
De qualquer forma, a soma de detalhes apenas tornava todo o trabalho de invadir mais fácil.
"Okay, aqui vai…"
Um soco bastou para levar a apodrecida estrutura ao chão, feita em pedaços. Para tal, tentou imaginar algo que Mark faria em seu lugar.
— Wow, Ryan…! Eu não sabia que você era um vândalo…!
Emily correu tão depressa quanto um trem-bala, admirando o caminho aberto como se fosse a maior coisa que já viu na vida.
— Ei, eu não sou um vândalo — tentou rebater. — Era o só o melhor jeito de…
— Isso te faz ficar 400% mais legal na minha opinião…! — O interrompeu. — Vamos entrar logo!
E com ela o puxando pelo braço, para dentro do ambiente repleto de poeira, a um canto sua mente o levou.
"Essa vai ser uma tarde longa…"
Um passo dentro da velha casa e o som não podia ser descrito de forma diferente — um organismo vivo, agonizante e a gemer sem fim.
"De novo, eu me pergunto o quanto essa madeira ainda vai aguentar…"
O lugar tinha pontos de vazamento provenientes do andar de cima, que no final contribuíam com o odor terrível da madeira a apodrecer.
"Não me parece nada fora do ordiná…"
— BOO!
O leve toque em suas costelas o fez pular tão alto que sentiu seu coração congelar ao entender estar caindo de volta. Foi o impacto mais sofrido de sua vida.
— Hehehe! Ele tá com medinho mesmo! Se espremeu todo…!
O riso inconsequente de Emily existia tão veloz quanto seus batimentos desordenados. Ao pousar com segurança, o Savoia logo buscou se apoiar na parede mais próxima por conta das pernas vacilantes, antes de reclamar.
— Droga, e se eu tivesse caído no porão?!
Sua elevada e bastante justificada frustração significava exatamente nada para sua companhia. Emily continuava a rir, desimpedida, do grande susto sofrido por ele.
— Isso ia ser engraçado…! — Mal se continha. — Ia ser… Muito engraçado…!
Ryan puxou e soltou o ar várias vezes, na máxima tentativa de não cair na armadilha dela.
— Olha… Vamos só olhar a casa, tá bom? Eu tenho que voltar para casa o quanto antes.
E quando ele se virou para inspecionar a sala de estar…
— Ora, o que foi? Não tem tempo para entreter essa bela dama mais um pouco? Hein? Hein?
— Me solta…
— Hmm? Disse alguma coisa? — questionou em provocação.
Se não por culpa do grosso tecido do casaco preto, o braço do rapaz se encontraria quase inteiramente envolto em seios. Ela se abraçava a ele, fazendo toda a questão de repousar a cabeça em seu ombro.
— Vai, admite para mim que você tá gostando do tratamento… É o meu pedido de desculpas por antes! Por agora, eu deixo.
— Eu não sei do que você tá falando…! — embasbacado, puxou-se para longe dela. — E para com isso… A gente devia começar logo… Antes que chova de novo…
Não importava o quanto tentasse, pois não podia esconder o rubor intenso a cortá-lo de orelha a orelha.
Uma brecha para mais uma brincadeirinha.
— Suas reações são todas fofinhas. É por isso que eu gosto de mexer com você…!
Antes de andar para mais longe na casa, pinçou a bochecha dele uma última vez.
— Vamos!
… … …
"Eu tenho que dizer… Isso aqui é bizarro."
A inspeção do andar de baixo corria como o esperado, e isso significava dizer que não encontraram outra coisa diferente de coisas velhas e deixadas ao léu.
No momento, Ryan continuava na sala de estar, enquanto Emily fuçava audivelmente entre várias coisas na cozinha…
… E isso era justo o mais peculiar da situação.
"Como tudo isso continua aqui, mesmo depois da família ter se mudado?"
Nenhum dos componentes da mobília se encontrava em boas condições, porém não era isso o que importava. Bastava o fato de terem permanecido ali para levantar suspeitas.
"O esperado é que alguém já tivesse tentado saquear tudo isso, mas… Não passou perto de acontecer."
Dois sofás, uma poltrona, uma estante e até uma televisão velha, de um modelo relativamente ultrapassado. Tudo estava coberto por uma grossa camada de poeira, embora preservado.
"É como se o canto tivesse sido abandonado às pressas."
Até mesmo um par de pinturas permanecia, intocado por quaisquer mãos.
"Vou dar uma olhada no banheiro aqui embaixo."
Usou a lanterna de seu celular para iluminar o mais escuro dos cômodos, e logo ao entrar, foi surpreendido por uma poça de água suja a inundar o lugar inteiro.
"Não parece uma boa ideia entrar aqui. Não quero molhar os meus sapatos."
De todos até então, esse foi o primeiro cômodo a apresentar qualquer sinal de avaria proposital.
O vaso sanitário havia sido quase partido ao meio, com um de seus pedaços parcialmente submersos na água, mesma coisa a ser dita da banheira, reduzida a fragmentos.
Nem mesmo o chuveiro escapou da destruição, já que não havia mais um, somente um pedaço de cano repleto de pontas afiadas, no lugar.
E, por fim, um espelho manchado e borrado. A última coisa na qual ele prestou atenção.
Ali. No corredor, logo atrás dele. Uma sombra retorcida e familiar, cheia de canetas, lápis, alfinetes, canivetes…
… … …
— Ryan! — A voz de Emily cortou a casa. — Pode vir aqui por um momento? Eu acho que encontrei uma coisa…
Nada. Ele estava sozinho.
Foi apenas mais um pedaço de sua imaginação.
[...]
— O que conseguiu encontrar, Emily?
Deu entrada na cozinha mais depressa do que jamais fez com outro cômodo, a focar imediatamente na imensidão de objetos metálicos sobre uma mesa.
— Nada de muito importante… Só umas panelas enferrujadas... Ah, aqui tem umas conchas de aço inoxidável e alguns pratos de cerâmica e de vidro, que por conveniência parecem ser as únicas coisas que continuam funcionais aqui — falou, usando uma colher de metal como um pequeno apontador.
Ela abaixou-se por um segundo, pegando algo do chão. Surpreendentemente, ali estava uma lata.
— ... E tem algumas dessas aqui, também… E isso é o mais estranho…
Uma lata comum, vermelha e um pouco maior do que uma mão. Na fronte, uma logomarca redonda e com letras brancas, realçadas de preto. Os dizeres na lata liam: “Marvelli’s Spicy Bean Soup”.
— Posso dar uma olhada nisso?
Um detalhe acerca da estrutura da lata o havia chamado atenção.
— Oh, claro. Aqui.
Recebeu a lata de Emily e confirmou estar aberta. Por toda ótica, aquela era apenas uma lata comum.
Ao olhar dentro, no entanto, percebeu algo que o fez questionar pesadamente a realidade presente.
— Emily… Você disse que foi nessa casa em que aconteceu o assassinato do pai da família que deixou a casa, não foi?
A garota assentou diante da história que ela mesma contou a Ryan durante a manhã desse dia.
— Uh, sim… Já fazem sete anos, quase oito, na verdade… Até hoje, não sabem quem foi o responsável.
— Entendi…
Dentro da embalagem de alumínio, viu restos de um líquido escuro e já seco, que possivelmente correspondia à sopa de feijão guardada ali naturalmente.
Não era preciso ser qualquer investigador para saber que isso não deveria estar ali, depois de tanto tempo.
Ryan virou a lata. As datas de fabricação, de validade, e o código do lote ainda eram visíveis na base de metal não tingido. Ali, a data em que foi fabricado correspondia ao dia 17 de setembro de 2024.
— Você vai querer ver isso, Emily.
Exibiu a nova descoberta para sua companhia, que passou a estar tão surpresa e pensativa quanto ele. Com a lata em mãos, se levou a questionar o óbvio.
— Isso não deveria estar aqui na época do assassinato... Por que essa coisa está aqui, Ryan?
— É uma ótima pergunta para se começar...
Olhou para o teto, tomado pelo súbito misto de sentimentos, indo de curiosidade extrema, ao medo paralisante.
— O que você tá fazendo…? — Emily perguntou, ainda com a lata de sopa de feijão. — Isso…
— Vamos ficar de olhos abertos… E ouvidos, mais ainda — suspirou, baixo.
Puxou um objeto de seu casaco, mostrando seu brilho particular, e se deparar com a novidade enviou um tremor gélido por todo o corpo da Attwood.
Afinal, ele puxou uma grande faca de carne.
— Precisamos ir embora. A gente não tá sozinho aqui…