Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 41: Pegadinha
“Eu absolutamente preciso fazer ela desistir dessa ideia idiota.”
Ryan andava de um lado para o outro no pequeno corredor entre a porta de entrada e a sala de estar. Em sua mente, não existia outra coisa, além de imaginar o quanto isso tudo era absurdo.
“Sério…? Descobrir a verdade sobre a cidade? Sério mesmo que eu tive que me encontrar logo com alguém assim?”
De forma alguma era uma reclamação — muito pelo contrário. Se tivesse de dizer em voz alta, encontrar Emily foi o ponto alto do seu dia.
“Isso porque já me dá a garantia de que ela provavelmente não vá fazer alguma estupidez sem me contar antes. Contanto que acredite que estou aqui para ajudá-la com sua causa, ela vai colaborar comigo também.”
Seria terrível descobrir dias ou semanas depois que mais alguém morreu por causas que poderiam ter sido evitadas.
“Agora, eu tenho que pensar em algum jeito de dissuadi-la… Eu preciso fazer ela desistir dessa ideia o quanto antes, e isso envolve as amigas dela também.”
Ainda conversaram bastante no resto da manhã e Emily o contou muito encarecidamente sobre suas amizades. Juntas, o grupo de quatro meninas formava o famigerado Clube de Literatura.
“Parece que elas andam lendo romances policiais demais se acreditam que vão conseguir desvendar uma série de crimes, sozinhas…”
Seus passos enfim encontraram calmaria quando a notificação do celular em seu bolso da calça vibrou. Apressado, pegou o aparelho, imaginando se tratar de uma mensagem de Emily.
— Ah, é só o Mark… — falou alto, mesmo que apenas para si mesmo. — Ele me marcou em alguma coisa.
Ao abrir o aplicativo de mensagens, a primeira coisa com a qual se deparou foi um amontoado de links, todos agrupados em um único texto.
— O que é isso tudo?
Pela aparência, não pareciam enviar para qualquer tipo de site de notícias. Eram códigos estranhos demais, além de muito grandes, misturando todo tipo de caractere.
Logo abaixo, uma segunda marcação, desta vez de Lira, o mandava um pequeno texto.
Suzu_Lira — 13:37: “Leia esses artigos até segunda-feira."
Curioso para saber do que se tratava, Ryan tocou o primeiro dos oito links que vieram na mensagem acima.
— Isso é um artigo científico…?
A surpresa tomou seus olhos quando uma pesquisa completa do American Journal of Neuroscience apareceu em sua tela.
— Vejamos… "Efeitos da memória muscular no desempenho de tarefas em lutadores de kickboxing - um ensaio clínico aleatorizado"...
A realização de que esse seria um fim de semana difícil o atingiu no instante em que começou a deslizar pela tela. Agora, o que prometia ser uma leitura interessante se transformou em algo horrendo.
— Não acredito que ela espera que eu leia oito artigos tão grandes e complexos quanto esse…
Gráficos, curvas em parábolas, variáveis em porcentagens, uma coisa estranha chamada “metanálise”... E isso sem falar em todos os textos enormes.
Cada parágrafo continha mais linguajar científico do que jamais escutou em sua vida inteira e a leitura prometia ser nada menos do que absolutamente maçante.
— Caramba, se a Lira me mandou ler isso…
Não precisou sequer terminar sua própria linha para que outra notificação aparecesse em sua tela.
MarkDaBest — 13:41: “É melhor tu ler isso aí, viu! Só avisando. Ela vai te fazer perguntas sobre cada um! (•‿•)"
Foi naquele momento em que ele soube…
… Que estava ferrado.
— Ah, droga…!
Lira esmagaria seu coração sem o menor traço de piedade caso soubesse que ele não leu os artigos… Mas o problema sequer começava aí.
— Ela com certeza vai tratar "não leu" e "leu, mas errou a pergunta" da exata mesma maneira…!
A opinião dela a seu respeito não havia se alterado sequer um pouco e isso era horrível. Ao contrário do ocorrido com Mark, ainda havia a necessidade de se provar para a mesma.
— E é assim que ela vai querer me testar… Mas que porcaria…
Infelizmente, Ryan não tinha muito mais tempo para perder. Seu novo encontro com Emily seria em menos de quinze minutos e ele já deveria estar fora de casa àquela hora.
— Eu não posso deixar ela fazer nenhuma besteira…
Se levantou, pegou o casaco e o vestiu tão depressa quanto pôde. Hannah apenas voltaria mais tarde graças a um turno estendido e por isso ele só podia rezar que algum assassino não chegasse na hora errada.
— Eu volto o mais depressa possível, Hannah… Tente não chegar muito antes de mim! — falou para ninguém.
Visou guardar o celular de volta no bolso, mas logo antes de fazê-lo…
MarkDaBest — 13:47: “Não se esquece da nossa reunião na quadra da escola! Segunda, hora do intervalo. Se não aparecer vai levar uma mão na cara! (◠‿◕)"
Seria o dia do primeiro grande treino de parkour.
— Huh… — suspirou, ao mesmo tempo que procurava algo nas gavetas da cozinha. — Parece que ele vai mesmo manter a promessa de me ensinar a saltar uma parede…
Não seria uma mentira dizer que ficou bastante ansioso por essas aulas.
— Ah, perfeito.
Depois de enfim ter pego o que precisava, puxou as chaves do bolso para trancar todas as portas. Era hora de mais uma viagem.
— Centro de Elderlog, aqui vamos nós mais uma vez.
[…]
“Okay, isso é preocupante…”
O ponto de encontro marcado foi a mesma praça onde tiveram a conversa que revelou o plano do dia. Sentado no mesmo banco, ele olhava de um lado para o outro, tentando encontrar o balanço entre estar meramente procurando alguém e parecer um maníaco pronto para cometer seu próximo assassinato.
Simplesmente, porque ela não estava lá.
“Eu cheguei no horário marcado… Onde será que ela tá?”
O instante do dia deveria ser às 14h, mas já se passaram quase dez minutos de tal tempo e sequer houve sinal daquele ser barulhento como um megafone.
“Agora que eu começo a pensar… E se isso só tiver sido uma pegadinha muito bem elaborada?”
Não via isso como algo longe dela e não precisava conhecer muito de Emily para saber que isso era algo bem além do possível ao se tratar daquela garota.
Ryan podia perfeitamente imaginá-la, rindo com suas amigas no chat em grupo, ao contá-las que enganou mais um idiota com sucesso.
— Eu vou esperar mais uns cinco minutos… Em qualquer caso, vou de volta para casa ou… Sei lá, só dar uma explorada a mais por essa cidade.
Ao menos não chovia mais e o sol até ameaçava tentar aparecer por um minuto ou dois entre a cobertura mais fina de nuvens. A fraca ventania, contudo, ainda não ajudava muito.
— Talvez eu deva começar a usar luvas ou alguma coisa assi…
— BOO!
Custou-lhe exatamente 0,374 segundo depois do salto exagerado além dos limites do banco para entender que, de fato, havia caído com sucesso em uma pegadinha.
— …! — Sua reação foi olhar, bravo, para trás. — Emily…! Ora, sua…!
— Hehehe! Olha para ele! Todo assombrado com um sustinho…! Ah, cara…! Essa é uma cena que eu nunca vou me esquecer…!
Ele não tinha como conter sua reação mista de embaraço e raiva, enquanto Emily ria como se não houvesse amanhã.
A garota segurava seu estômago, suplicando a si mesma para se deixar ter um pouco de ar. Isso atraía a atenção dos poucos transeuntes que por ali passavam no momento, o que não melhorava a situação para ele.
— Emily…! — Ryan falou entre os dentes. — Já deu…!
— Ah… Não deu não…! Ah, mas não deu mesmo…!
E ao passo que ela ria incontrolavelmente, restava uma única opção.
— Ah, já que vai ser assim, então…
Mas quando ele estendeu a mão para tocar sua cabeça e apagar as memórias da brincadeira, ela subitamente parou.
— Ai, ai…! Tá bom, agora já deu…! Parei!
Tomou uma baforada profunda de ar por tempo que se passou como os mais longos cinco segundos de sua vida, levando tudo entre os dois a mudar da água para o vinho.
— Pensou que eu estava te enganando? Sério? Olha, eu tenho sentimentos, sabia? Saber que é isso que você pensa de mim feriu eles…!
O jeito como seu semblante se moldou em raiva foi um pouco real demais para algo tão súbito.
— Uh, Emily… Não foi isso que eu…
— Eu sei, eu sei…! — Ela pinçou a bochecha direita dele. — Relaxa, eu só tô brincando! Você devia levar as coisas menos a sério…!
Entender que foi pego não em uma, mas sim duas pegadinhas idiotas lavou qualquer traço de preocupação para bastante longe dali.
— Uh-oh! É esse rosto de novo…! Minha nossa… Com certeza vai espantar todos os fantasmas da casa com essa cara…!
Resolveu que já era hora de começar a ignorar algumas coisas. Se tinha algo que não suportava por muito tempo, isso é ser feito de bobo.
— Por que você não me contou logo o endereço pelo telefone? Poderíamos ter nos encontrado lá.
— Ora, ora, para quê essa pressa toda? — Ela bailou, girando sobre a ponta de seu sapato. — Além de que, sejamos sinceros…
Ler a mente dessa garota era complicado — algo fácil de se ver por sua personalidade. Caçar um único pedaço de informação nunca tinha sido tão difícil para o Savoia.
Emily era um exemplo do que ele costumava chamar de "mente multiversal". Basicamente, era um jeito de chamá-la de alguém hipercriativo.
Pessoas hipercriativas tinham algumas das mentes mais complicadas de se ler, já que a cada quatro ou cinco segundos, algo a mais surgia no vão entre as memórias, indo desde uma parede de tijolos até um dragão que cospe fogo.
E todos esses eram obstáculos que ele tinha a missão de superar em prol do objetivo.
"E é claro que eu não posso esquecer dela ter transformado isso em um jogo de pega-pega mais cedo", pensou ele, vendo-a dançar.
A adolescente com olhos de esmeralda girou uma última vez, e…
— Nós dois sabemos que você iria sem mim se eu tivesse revelado o endereço, e isso não ia ser nada legal.
— … — Ryan encarou, neutro.
Seria ele tão fácil de ler?
— Okay, acho melhor a gente ir logo. Vai acabar ficando tarde — disse ela, um passo à frente. — E então, onde está a carruagem real?
Os segundos de silêncio com o passar da pergunta foram assombrosos.
— Você… Não espera que eu te leve na minha bicicleta até o final da cidade, certo?
Mais silêncio, algo nem um pouco confortável para o leitor de mentes.
— Oh, entendo… Parece que esperei demais do meu príncipe encantado… Oh, Deus, mas que erro o meu…! Mas que escolha péssima!
Àquela altura, Ryan já se sentia incomodado o suficiente, ao ponto de até as brincadeiras de péssimo gosto feitas por Mark parecerem menos dolorosas a se submeter.
— Oh, céus… Quem vai me proteger dos fantasmas, demônios e vampiros senão o meu príncipe encantado?! Estarei eu, uma bela e pura dama, completamente indefesa diante dos perigos que me aguardam em minha jornada, sem a companhia de um bravo e poderoso homem…?
… … …
— Quer saber? Eu vou para casa… Tenho oito artigos gigantes de neurociência para aprender…!
Pegou sua bicicleta, recostada em uma árvore próxima. Talvez, não valesse mais a pena ficar ali.
Não era mais uma questão de estar incomodado. O rapaz se sentia zangado de verdade com todas essas brincadeiras.
"Será que ela não consegue ser séria sobre isso? Me dá nos nervos…!"
Ele se tornou a graça da piada de alguém, e isso não tinha graça nenhuma.
"Eu não preciso me submeter a isso, especialmente com uma ordinária qualquer…"
E logo quando estava prestes a sumir nas ruas…
— Você é bem incapaz com interações sociais mesmo, né? Até parece que nunca teve amigos!
Ele tremeu da cabeça aos pés e a Attwood viu isso.
— Dá para ver isso quando você fica prestes a chorar por causa de umas brincadeirinhas.
— O que você tá dizendo? Eu não tô prestes a chorar. — Não se aguentou e rebateu.
— Eu não quis dizer literalmente — apontou. — Para mim, você tem cara de ser aquele tipo de pessoa que não tá acostumada a não ter as coisas acontecendo do seu jeito. Se as pessoas não agem de um jeito que te agrada, você fica logo irritado com elas.
Ryan queria rebater isso — e como queria —, mas não importava como olhasse, não ouviu menos que a verdade.
Emily cortou a distância aumentada entre eles até se colocar justo ao lado.
— Não é assim que as coisas funcionam, cara. Continue se comportando desse jeito e ninguém vai gostar de você.
Surpreendia o modo como seus humores se alternavam de maneira tão fluida. Em um segundo, era séria como uma rocha e no outro…
— E nunca vai arranjar uma namorada também…! — apontou para ele, a rir. — Cara, que pena de ti…!
"Por que eu tenho que ser torturado desse jeito…?"
A presidente do Clube de Literatura tomou seu tempo com todo o prazer, porém, logo apontou para uma árvore distante, onde se encontrava algo peculiar.
— Vem, eu trouxe a minha bicicleta. Claro que eu não ia te fazer me levar até lá, até porque é meio longe. Vamos lá!
[...]
Rota da Serragem — nos primeiros metros, passou a entender o motivo de ser chamada assim.
"Eu já não sei se tem mais terra ou madeira nessa estrada…"
— Aguenta aí mais um pouquinho! A gente já tá chegando lá!
Emily, à esquerda dele, pedalava depressa, sua língua posta para fora da boca em um sinal de empenho na busca pela aventura.
— O lugar é assim por causa das carretas que passam com troncos! — falou alto. — Perto daqui fica a Blue Lagoon Loggings, uma empresa madeireira! É dela que sai a mobília e o material para construção das casas!
Até mesmo pedalar era difícil, dado que já não bastava o lugar ser uma subida longa e gradual nesse sentido, ali ainda existia, por cima do chão, uma grande e espessa camada de pó de madeira.
A madeira molhada e parcialmente decomposta dos pinheiros tinha um cheiro terrivelmente ácido, se prendendo nas rodas da bicicleta e interrompendo o movimento como areia movediça.
— Olha lá, Ryan! A gente tá chegando! Dá para ver as últimas casas da cidade!
Foi um caminho longo até ali — cerca de vinte minutos — e nesse tempo aprendeu que Elderlog não era tão pequena quanto poderia parecer.
"Essa cidade é muito dividida… É um conjunto de casas rodeado por quilômetros de bosque, até que se chegue em outro… São como bolhas."
No caminho, passaram por três outras zonas residenciais similares à Oak Street e suas adjacências. Certamente, aqueles eram menores, mas o ar geral se mantinha, com todos os estabelecimentos comerciais e afins.
Uma ou duas estradas menores uniam as várias "bolhas" em uma espécie de rede, para enfim criar a cidade inteira.
— … E aqui estamos!
Os dois cessaram as pedaladas, pondo-se enfim de frente à intimidadora estrutura que aparentava crescer como um forte da morte diante de seus olhos.