Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 40: Maldição
A notícia absurda que Emily encontrou não podia ter sido descoberta em um momento diferente, e quase como se a própria realidade desejasse firmar a atmosfera para o que os dois estariam prestes a ler, do lado de fora notou-se a mudança.
— Começou a chover... — Emily tremeu, deslizando as mãos pelos braços. — Uuuuh! Que medo...!
A jovem de cabelos castanhos e olhos verdes se encolheu, tomada pela estranhamente adorável ansiedade de descobrir o que as páginas aguardavam. Não queria perder mais tempo, então logo se juntou ao rapaz, que já avidamente buscava por qualquer coisa.
— “Na última sexta-feira, dia 10, foram declaradas as mortes de 49, entre funcionários e detentos, na Montana State Prison. As vítimas do presumido massacre foram encontradas brutalizadas pela manhã do dia 11, sábado. Todos os corpos apresentavam sinais de brutal execução causada por meios desconhecidos”.
Ryan foi quem leu a notícia, muito mais para si mesmo, embora o pesado silêncio quase imperturbado pela tempestade do lado de fora houvesse permitido que ela também o escutasse adequadamente.
Mas não terminava por ali.
— “O desaparecimento de 5 detentos foi confirmado pelas ações das forças policiais do condado de Deer Lodge, que realiza buscas para a recaptura, mobilizando o corpo policial da cidade como um todo. Há suspeitas de que os cinco tenham causado as mortes.”
— Não para de ler... — Emily pediu, tão atenta quanto ele às palavras no papel. — O que diz o resto? O que fala sobre o Richard...?
Ele podia notar a ansiedade a consumir a voz de sua companhia. Mesmo no pouco tempo que se conheciam, era categórico afirmar que tal tom tão obscuro e focado não era o natural para a garota diante de si.
Silenciosamente, ele assentiu e prosseguiu com a leitura.
— “É investigada a possibilidade de existir um esquema para a liberdade dos detentos. ‘Mais questionamentos e coleta de depoimentos serão avaliados nos dias seguintes’, diz a força policial de Deer Lodge. O sistema de câmeras e os computadores da edificação foram encontrados destruídos e em estado irrecuperável na manhã seguinte, o que dificulta as investigações”.
Restava alguns parágrafos na página impressa e, ao lado destes, fotos de vários criminosos, em perfis frontal, e lateral direito.
Cada um tinha sua descrição e ao lado, um pequeno texto a respeito de sua vida criminosa. Para ser veloz, Ryan escolheu o primeiro.
— “Richard Charles Davis, acusado de dezessete assassinatos entre 2016 e 2022, preso na Montana State Prison desde sua captura em janeiro de 2023. O assassino em série foi conhecido por sua atuação nos estados ao norte dos EUA, em especial Montana e Dakota do Norte. Outros crimes são ligados ao sujeito, embora não confirmados, incluindo estupros de um total de doze mulheres em Whitefish entre 2018 e 2019”.
Richard era apresentado como um jovem homem de cabelos pretos levemente ondulados. Tinha um físico magro, de bochechas fundas, barba por fazer e pele tão pálida quanto à de um vampiro. Seus olhos azuis eram a característica mais marcante, tão penetrantes quanto o mais profundo oceano, em aparente deboche para a câmera.
Um sorriso quase imperceptível se fez em seus lábios no momento do registro, seu braço direito a segurar a típica placa com uma numeração qualquer — 217731. Ao lado, sua altura indicada era de 1,76 metros.
Além dele, outros quatro criminosos tinham suas faces, nomes e descrições, tão completas quanto; tão macabras quanto.
Timothy Peterson, 31, outro assassino em série.
April Maggie James, 28, condenada por abuso de crianças.
Zachary Alvins Clark, 19, preso pela tortura e morte de sua namorada de 5 meses.
Matthew Clifford, 29, um piromaníaco. Matou 21 pessoas em um posto de combustível.
"Mas nada sobre essa Samantha..."
E isso era, no mínimo, estranho.
— Okay, deixa eu adivinhar...
Surpreendentemente, quem quebrou o terrível silêncio não foi a mais barulhenta da dupla. Olhos à frente, um semblante de absoluta seriedade e ponderação cedia sobre as feições do Savoia.
— Esse cara ainda não foi pego ainda, certo? Ele ainda continua foragido até hoje, mesmo depois de quase dois anos… E isso vale para os outros quatro também, né?
Uma afirmação mascarada na forma de pergunta. Não foi preciso pensar muito para saber o rumo que a história tomou, fato esse confirmado por Emily, que dolorosamente assentiu.
— É... Eu me lembro de ter visto isso na televisão uma vez... Me lembro que achei estranho... Quer dizer, todo mundo achou... Afinal, como que cinco detentos conseguiram fazer… Aquilo com tantas pessoas…
O coração do adolescente recém-chegado na cidade saltou um pouco mais ao perceber a súbita e tão intensa mudança de humor na Attwood. A menina que antes falava alto e se fazia tão enérgica passou a lembrar muito mais uma lâmpada apagada.
Na cadeira, ela abraçou os joelhos e parcialmente afundou o rosto entre eles. Apenas seus olhos eram visíveis entre os cabelos, cuja sombra que formavam os cobria.
— Todo mundo pensou que não fosse ser nada de mais, por mais bizarro que soasse... Quer dizer, eles já tinham encontrado e prendido todos esses caras antes, né...? Eles podiam fazer de novo...
Um tom de pura tristeza, tão terrível quanto à escuridão a engolir os céus acima. Não havia luz ou vida em tais palavras, nada diferentes do vazio nos corações de toda a cidade nesse fim de semana.
— Foi isso o que a gente pensou... A gente teve esperança... Até que começou a acontecer...
A explosão do trovão cortou todo o espaço interno, como se houvesse ocorrido ali mesmo, ao invés de no lado de fora.
— Foi assim que esse lugar ficou tão amaldiçoado.
Elderlog não tinha dias de sol radiante e céu azul. O tempo estava sempre nublado de alguma maneira, fosse chover mais tarde ou não. Era uma vida de cinza e frio, sem ânimo e consumida por pesar e medo.
— Ryan... Você acabou de se mudar para cá, né? Acho que explica eu nunca ter te visto por aí antes, mesmo você sendo... Uh... Como será que eu digo isso sem fazer pegar mal...?
— Preto? — ergueu a sobrancelha ao falar. — Enfim, continue.
Ele tinha clara ciência de que seu tom de pele o fazia se destacar. Por onde olhasse, era quase como se a família Savoia fossem verdadeiramente os únicos pretos do lugar inteiro e, com adição de Lira, tinha-se toda a fração "não-branca" da população.
— Ah, claro... — Ela coçou a garganta em desconcerto. — Enfim... Como eu vinha dizendo... Eu acho que não podia ter sido uma escolha pior.
“Ah, mas eu não duvido disso”, pensou, voltando aos maus bocados que já viveu em sua primeira semana no lugar.
— Esse é um canto onde pessoas somem e nunca são vistas de novo... Onde mulheres como eu, jovens, bonitas e cheias de vida, saem de casa para resolver qualquer problema e não sabem se vão conseguir voltar...
Ouviu algo similar nessa mesma manhã, coisa essa que não tinha mais como esquecer. Cada novo pedaço de informação que adquiriu em um dia único gerava uma ideia nas profundezas de sua mente, que emergia aos poucos.
— ... E eu tô com medo, Ryan... Eu não sei quando eu posso ser a próxima... Eu não quero ser...
Os sons de seus soluços se misturavam com a queda d’água.
— Eu não quero acabar igual elas... Não quero que ninguém mais acabe... Não quero mais viver essa maldição...
Essa ideia. Tudo apontava naquela mesma direção, apenas na espera para que ele a tomasse enfim.
— Eu não quero desaparecer para sempre e acabar sendo esquecida também...!
Aos poucos, a tempestade perdeu força. Mesmo que ainda não fosse ideal, o mundo era agora mais claro — tanto quanto sua mente, diante da nova realização.
Se houvesse de verdade algo como o “destino” — o mesmo que lhe tomou cada lembrança e cada emoção, que lhe deu um poder tão ironicamente poderoso e ao mesmo tempo limitado o bastante para que não pudesse descobrir nada sozinho —, se tal entidade ou força da natureza existia...
... Essa foi a missão que colocou em seu caminho. Não era algo do qual podia continuar fugindo.
Mark, Lira, os alunos assassinados, Ashley, Keith… Se houvesse mesmo um significado mais profundo por trás das participações de cada um em sua vida...
— Emily.
Ryan se levantou da cadeira em um sobressalto e tirou seu grosso casaco escuro. Com cuidado, o deixou cair suavemente sobre os ombros desse outro pedaço de destino que entrou em seu caminho.
— A chuva já passou. Vamos falar um pouco mais sobre isso lá fora.
[...]
“Mas que frio... Esse vento... E tão perto do verão…”
Sair da biblioteca sem o casaco foi uma decisão detestável e não bastaram mais de dois minutos do lado de fora para se arrepender amargamente disso.
A rua continuava a mesma, e embora não chovesse mais, algumas bicas e telhados ainda derramavam finos filetes da água cristalina que logo se sujava ao encontrar o asfalto.
“Caramba, e pensar que isso foi parar aqui…”
De longe, viu a corrente d’água ao lado da calçada arrastar violentamente um folheto de pessoa desaparecida.
— Sabe, você até que consegue ser um cavalheiro quando quer...!
A paz da pequena viagem sobre duas rodas pela Oak Street não iria durar muito e ele sabia disso. Logo à frente dele, sentada no quadro da bicicleta, Emily secava os remanescentes de suas lágrimas, carregando um semblante muito mais pacífico.
— Me emprestando o casaco... Me levando para dar uma volta no seu nobre corcel...
A resistência do ar e o arrasto da corrente evocavam o barulho da sacola de plástico em sua esquerda, que se amassava um pouco mais a cada vez que ocasionalmente colidia com seu joelho.
Ao topo de tudo, era ela quem usava, um tanto desajeitadamente, o casaco preto tão acima de seu tamanho.
— Eu me senti mal por você… Só isso.
Ryan virou para o caminho à direita, e a resposta dada por ele a encheu de falsa amargura. Com seu braço livre, a Attwood desferiu uma leve cotovelada contra seu peito.
— Será que é mesmo tão difícil assim admitir que você fez tudo aquilo porque me acha gentil e legal? Ou será que você, não sei, teve alguma outra razão mais perverti...
— Não vá forçando a sua sorte. — Ele a cortou, mais sério do que nunca. — Eu queria uma atmosfera melhor do que aquela para discutir sobre isso. A arquitetura da biblioteca é meio deprimente...
Os dois seguiam rumo à pequena praça um pouco mais abaixo. O ritmo acelerado do giro das rodas faziam as poças menores acumuladas nas dobras do asfalto espalharem seus respingos.
— Hmmm... Okay, eu vou fingir fielmente que acredito totalmente em você, Ryan Savoia. Sim, eu absolutamente acredito, até porque indubitavelmente qualquer cara por aí te compraria uma sacola cheia de cupcakes e bolinhos só porque quer ter uma conversa em um “lugar mais agradável”...!
Essa era a Cypress Street, a mesma rua em que Mark morava. As primeiras impressões passadas pelo lugar eram o de um recanto com estilo mais rústico e confortável, bem menos movimentado do que sua perpendicular.
— Eu acho que você devia só admitir que essa é uma desculpa para me levar a um encontro... Porque isso aqui tá com uma baita cara de um!
Argumentar não o levaria a lugar nenhum, então o Savoia agarrou avidamente a primeira oportunidade que teve de mudar o assunto.
— A gente chegou. Como eu imaginava, o lugar não tá tão molhado assim.
Bastou um pequeno espanar de sua mão para tirar a água acumulada nos bancos. As grandes árvores desconhecidas, espalhadas por todo lado, serviram como cobertura quase perfeita para impedir grande parte da chuva.
Os dois se sentaram no banco que lhes pareceu mais seco e a conversa não demorou em fluir.
— Sabe, você ainda não me disse de verdade a razão de estar querendo saber mais sobre a cidade. Fugiu do assunto direitinho, mas não vai fugir de mim! — enfatizou ela, escolhendo um dos bolinhos cobertos de chocolate.
Parte dele queria pegar um para si também, mas a outra metade se sentia enojada pela possibilidade disso ser doce ao ponto de fazer seu estômago entrar em agonia.
— Falando por mim, eu quero descobrir mais por causa do meu sonho.
— Sonho?
— É! O meu sonho é virar uma escritora famosa! É por isso que eu quero desvendar a verdade por trás da maldição de Elderlog... Quero expor isso para o mundo!
“Expor para o mundo...? Isso é má notícia para mim...”
Ryan não pôde evitar senão tremer da cabeça aos pés. As coisas que aconteciam em Elderlog não eram nada com que alguém normal deveria se envolver.
— Seja quem for o responsável... Esse tal de Richard ou sei lá... Eu quero encontrar ele — mordeu um pedaço da cobertura. — E eu vou fazer o que puder para achar.
Uma determinação perigosa demais, movida pela ignorância. Já não era mais uma história sobre um mero assassino em série envolvido em raptos de mulheres cujo sequer o branco dos ossos foi visto.
— Vou levar esse cara para o tribunal... Não, para a cadeira elétrica, e Elderlog, para os olhos do mundo. Todos vão saber o que aconteceu aqui e o drama que essas pessoas viveram. Esse é o meu sonho.
E, especialmente, não era sobre algo tão humano e simples quanto a crença em uma mera maldição.
— Agora me fala um pouco mais sobre você. Dizer que é motivo pessoal não vale! Eu acabei de te contar os meus, então é justo!
Ele não podia contar a verdade.
— Eu... Quero descobrir o que aconteceu com a minha prima.
Esteve o caminho inteiro pensando na justificativa que daria para uma pergunta tão inescapável. Não seria a melhor das narrativas e urgia de polimento, então tudo o que lhe restou foi rezar para que funcionasse.
— Eu tive uma prima que morou aqui na cidade por um tempo e ela desapareceu também. Eu não sei o motivo, mas o caso dela não foi noticiado e nem é contado como parte dos desaparecimentos... Ou seja, a nossa família veio morar aqui para começar a pressionar as autoridades. Foi uma surpresa descobrir que eles não servem para nada.
Não precisaria mentir ao afirmar o quão ineficiente era o corpo policial da pequena cidade. Segundo as notícias, as cinco viaturas mandadas para a escola no dia da Chacina da Perfuração trouxeram também os únicos 19 policiais em operação.
— Nossa família ficou inconformada com a perda e, principalmente, com a falta de ação, então decidimos tomar as rédeas disso em nossas próprias mãos... Esse é o motivo de eu estar aqui. Satisfeita?
Por dois segundos, apenas silêncio.
— Wow... — Emily suspirou, em gesto de negação. — Meu Deus, Ryan... Olha... Me desculpa...
Alívio o consumiu por dentro. Ela acreditava na história.
— Não precisa se desculpar. Você só queria ajudar. Eu não devia ter descontado em você.
— Não...! — exclamou. — Não tenta me impedir de me sentir mal pelo que eu disse...!
Olhando para trás, talvez houvesse sido uma história um pouco forte demais. Na opinião dele, não foi nada tão pesado assim, porém a coisa mudava ao se perceber o quanto Emily foi afetada pelo relato.
“Ela tá emocionada de verdade...?!”
Apressadamente deu sua última mordida no cupcake antes de tomar o gesto mais intenso do dia inteiro quando, com os dedos sujos de chocolate e olhos em princípio de lacrimejo, agarrou a mão direita dele e a pressionou contra seu peito.
— Ryan... Eu vou te ajudar a encontrar a verdade sobre o paradeiro da sua prima... Pode contar comigo para isso.
A pura determinação fez brilharem as esmeraldas, que cintilavam cheias de vontade e palavra.
— A gente vai descobrir o que tem por trás. Vou te apresentar a umas pessoas depois, mas por enquanto, eu vou precisar da sua ajuda para uma coisa, Ryan.
A atitude firme e um tanto invasiva o tomou de supetão e, por um tempo, sentiu-se incapaz de reagir de qualquer outro modo que não fosse encarar em espanto.
— Recentemente, eu descobri uma pista que pode nos aproximar de encontrar algo. É uma casa abandonada que fica quase no final da cidade. Falam que quem entra nela nunca mais é encontrado vivo. Eu e minhas amigas estávamos planejando ir para lá hoje à tarde, mas aconteceram coisas...
Só havia um rumo para onde isso se encaminharia.
— Então, eu quero te perguntar... Você quer ir comigo lá, hoje à tarde?