Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 45: "Fantasma"
— Ugh… Onde é que eu tô…? E… Por que essa luz tão forte…? É… O sol…? Mas tava chovendo…
A consciência aos poucos voltava ao corpo antes desfalecido, para mostrar que não — ali não era o lado de fora.
Debaixo de seus dedos, sentiu a mesma madeira que tocava sua bochecha esquerda de modo tão desconfortavelmente molhado, então percebendo estar deitada sobre uma superfície imunda.
O lugar fedia, exalando uma acidez terrível que lhe queimava o nariz.
Cobriu os olhos, ainda desorientada. A luz tão forte os ofuscava, gerando vários pulsos de dor pela sensibilidade aumentada.
— Ah… Emily? Você acordou?
A estranha voz conhecida cavou fundo em sua mente, em busca de seu dono. Ela sabia de quem se tratava, mas não conseguia apontar um nome para essa pessoa conhecida.
— Onde… Eu estou…? O que aconteceu…?
— Vai ficar tudo bem. Eu só preciso que você confie em mim o suficiente para isso.
E foi quando sentiu o toque estranho ao redor de seu pulso esquerdo. Não era algo gentil, mas sim firme o bastante para ter a intenção de prendê-la no lugar, tal como faziam as correntes e grilhões das prisões na idade média.
A combinação da voz com o contato tão esquisito forçou o restante de sua psique ainda dormente a ser expulsada para fora de seu sono.
— Uh…? Eh?! Eu… Esse lugar…!
Levantou em um solavanco de seu corpo inteiro, enfim tomando as proporções e qualidades reais do ambiente em que se encontrava. Ainda estava na velha casa, por algum motivo.
Tentou se mover e escapar, contudo, o braço tão firme a manter seu pulso fixo a impediu de fazer qualquer movimento para longe do foco de luz branca, vinda do celular na parede justo à frente.
— Ryan…! Me larga…! A gente precisa fugir! O fantasma da casa, ele…!
— Calma, Emily. — Ele a cortou, olhando fixamente o fundo de sua alma. — Eu preciso que você fique calma ou pode acabar estragando tudo. Acredite em mim, você não vai querer sair dessa luz.
O modo como o alto rapaz negro pronunciou cada letra soou estranhamente sombrio. Sua fala era provida da mesma entonação de sempre, porém algo sobre o tom mais lento e sutilmente mais grave gerou uma sensação terrível no topo de seu estômago.
E foi então que, misteriosamente, se lembrou de tudo.
— Vejo que já recobrou as memórias do que aconteceu.
Sentiu sua própria face se moldar em puro horror, quando os momentos de mais absoluto horror que viveu nas mãos da criatura no segundo piso passaram como um filme diante de seus olhos.
Seu corpo de espremeu, de costas contra a parede, vivenciando de novo cada segundo da tortura aterrorizante.
— NÃO…! EU NÃO QUERO FICAR AQUI…! EU NÃO QUERO MORRER NAS MÃOS DAQUELA COISA…! RYAN… RYAN…! ME SOLTA…! ME LARGA…!
— Calma, Emily. Eu preciso que você respire com calma. Vai ficar tudo bem.
— TUDO BEM?! COMO ASSIM VAI FICAR TUDO BEM?! A GENTE VAI MORRER AQUI…!
— Não, a gente não vai! Me escuta!
O puro desespero choroso se encontrou, frente a frente, com a impassível e inabalada calmaria. Ryan, ainda com firmeza o bastante, embora não o suficiente para causar mais dor, pressionou ambos os punhos de sua companhia contra a parede iluminada.
— Eu sei que você está assustada. Acredita em mim, eu também estou, embora por um motivo diferente. Se você me prometer que em hipótese alguma vai sair desse feixe de luz, eu te conto tudo do que tá acontecendo com a gente aqui, tá bom?
O choque do brilho roxo das ametistas e o esverdeado das esmeraldas era inquebrável, cada uma de suas palavras soando final, como ordens, embora simultaneamente não tentassem ser grandes.
Foi claro ver que ele não queria aumentar seu pânico.
— Pode gritar, chorar, espernear, fazer o que diabos você quiser, Emily… Mas de jeito nenhum, e eu digo de jeito nenhum eu quero que coloque um dedo sequer para fora da luz da lanterna do celular. Você me entendeu?
Enfim, sua visão desviou, focando por um tempo no limite entre luz e sombra, ao lado esquerdo.
O contraste da iluminação esbranquiçada trazia ao corredor apodrecido um visual inteiramente novo, dado que enfim podiam ver bem a sua estrutura.
— Ryan… O que tá acontecendo…? Por que você tá tão estranho do nada…? Me explica… Me fala, por favor…!
Sua voz falhava graças ao choro que se intensificava a cada novo segundo. Mesmo já tendo parado de se debater, ainda tinha seus pulsos firmemente mantidos no lugar pelas mãos tão mais fortes do que as suas.
— Por favor… Me fala… O que foi aquilo…? Por que você tá agindo assim…? Eu não gosto… Eu não gosto disso…! Não fica tão sério assim…
Ela não o via graças aos olhos fechados, mas se pudesse, seria agraciada com o semblante de alguém repleto de arrependimentos.
— Você tá bravo comigo por causa… Do que eu disse…? Do que eu fiz…? Por que eu te… Incomodei tanto e… Te trouxe aqui…? Por favor… Me desculpa… Me desculpa…! Eu só… Eu só…!
Foi interrompida quando a sensação de ser envolta subitamente se alterou. Não eram mais os seus pulsos, mas sim o corpo inteiro.
— Tá tudo bem. — disse, caloroso. — Não fala mais nada. Eu vou tirar nós dois daqui. Eu tenho um plano para isso.
Não foi algo que ele faria. Olhando para trás, não se veria Ryan Savoia abraçar alguém desse jeito.
“Eu sei bem o que eu faria, e agora, isso só… Me enoja.”
Sua boca se enchia de amargura ao pensar que, se isso tivesse acontecido duas semanas atrás, ele não teria pensado duas vezes antes de sacrificar Emily para escapar da casa em segurança.
Veio a voz que ele nunca quis escutar, cada vez mais falando tão alto. A voz que achava boba demais para se seguir, e que por isso suprimiu tão profundamente durante aqueles anos todos.
“Talvez seja por isso que eu sempre odiei filmes de super-heróis…”
Pressionava Emily contra seu peito com cuidado, porém os olhos estavam em outro lugar: nas sombras, onde algo se movia, incapaz de se aproximar o suficiente.
“Dizer que me importar com os outros não é problema meu sempre foi tão fácil…”
Seus pensamentos voaram longe, focados em dois indivíduos em particular.
“E foi por isso que eu detestei eles… Ao contrário de mim, aqueles dois estavam dispostos a fazer alguma coisa pelos outros. Eles me fizeram sentir mais desconfortável do que nunca antes.”
A frequência e intensidade do choro diminuíram, e com isso, chegou o momento de se fazer alguma coisa.
— Emily, o fantasma dessa casa… Ele tem uma peculiaridade.
Sua explicação tão simples e súbita a fez congelar. Depressa e ainda aos prantos, afastou seu corpo dele e o encarou em puro questionamento.
— Uma… Peculiaridade?! Mas do que você tá falando?! A gente tem que sair daqui…! Nós vamos morrer! Aquilo vai nos pegar e…!
— Ah, tá falando daquilo ali? — apontou para a direita, no fim do corredor.
— NÃO…!
Ela tentou fugir, mas teve seu braço esquerdo segurado antes que pudesse deixar a luz.
— Emily! — chamou com firmeza. — Lembra do que eu disse sobre ficar na luz! Se quiser tanto assim que aquela coisa te pegue, pode sair dela!
— Eu não entendo do que você tá falando…! Me deixa ir embora…! Aquilo vai nos pegar…! Vai nos matar…!
Pelos próximos oito segundos, Emily continuou se debatendo, incapaz de deixar a faixa iluminada graças à força superior de Ryan, que ao prender o pé direito firmemente contra a parede, não a deixava ir.
— RYAN…! ELE VAI NOS…
— Nos matar? Olha… Honestamente, eu não acho que isso consiga. — Calmo até demais, apontou. — Olha ali. Olha a cara daquele idiota, tentando se formar… Ou melhor, a falta dela, eu acho…
Ela não entendia a razão de ele permanecer tão calmo, e subitamente ter até ficado brincalhão, como se isso fosse coisa para se rir sobre.
— A gente tá esperando, senhor fantasma! Não vai querer atacar e nos pegar? Ah, acho que você não consegue, né? Olha só para você… Todo idiota, incapaz de passar pela luz!
As brincadeiras fora de lugar atiçaram sua curiosidade. Talvez, se só olhasse um pouco…
— Pode confiar em mim, Emily. Temos um fantasma meio estúpido aqui.
Confiante, ele indicou a massa móvel de sombras ao fim do corredor.
A criatura marchava entre os dois quartos, sem rumo ou foco, como se não soubesse o que fazer, mesmo com os dois bem diante de si.
— Consegue perceber? — perguntou, diante de sua expressão estarrecida. — Ele nem sabe para onde ir agora. Não pode nos pegar.
A maneira como andava de um lado ao outro era idiota para dizer o mínimo, sempre evitando ficar próximo demais da luz gerada pelo aparelho, e logo a criatura, tão medonha e ameaçadora, quase não inspirava mais medo.
— Só pode andar na escuridão, porque é disso que é feito. Não é à toa que se confunde tão bem com uma sombra. Entrar na luz simplesmente o faria se desfazer.
Ryan puxou de um bolso do casaco um objeto que não fez muito sentido para ela a princípio, mas que logo revelaria seu uso. Ele se levantou, largando de seu braço, e entregou a coisa tão brilhante aos olhos.
— Um pedaço de… Espelho…?
— Isso. — A resposta veio depressa. — Quebrei um espelho velho que tinha naquele quarto lá no final… Usa ele para redirecionar a luz na direção desse fantasma.
Emily hesitou, ainda trêmula de medo da cabeça aos pés.
— Vai, tenta. O resultado vai ser… Interessante! — Ryan a incentivou. — Vai te mostrar como esse fantasma não é de nada.
Mesmo sem saber muito, acenou de um jeito fraco, notando o quanto ele soava seguro de cada coisa que dizia.
Com cuidado em excesso, ela apontou a face refletora do espelho para frente, bombardeando a zona adiante com um baixo quociente luminoso.
— SHIIIIIEEEEEEEKKKK….!
— KYAA! — A reação a assustou, o que a fez soltar o fragmento, amparada por Ryan antes que pudesse potencialmente fugir.
— Calma… Respira — pediu. — Viu? Esse fantasma tem medo de luz. Não sei, mas acho que o modo como morreu deve ter haver com iluminação… Ou quem sabe essa é uma característica de todos os fantasmas?
Fugiu para o quarto à esquerda ao entrar em contato com a luz, a fim de recuperar-se do dano causado.
— A luz do celular é forte o suficiente para espantá-lo, mas só vai durar enquanto eu estiver apontando, e é por isso que eu preciso da sua ajuda, Emily. Aquela coisa não vai deixar você sair daqui se não a neutralizarmos logo, e é por isso que eu preciso que você seja corajosa agora.
— Uh…?! — Sem entender coisa alguma, desconforto a inundou por dentro. — Não, eu não vou! Eu...!
— Não, não é você que vai. — A interrompeu. — Sou eu quem vou.
Os belos olhos verdes da Attwood se preencheram de horror ao escutar aquilo, embora não fosse o detalhe mais assombroso por qualquer margem.
A coisa que mais a tirava de qualquer possibilidade de se sentir confortável era o humor estranhamente positivo do Savoia, diante de uma situação tão perigosa.
— Olha para lá. Tem uma janela no final do corredor. Eu vou quebrar as madeiras que a prendem. Quero que fique escuro o suficiente para conseguir atrair ele para a escuridão.
— O quê?! Você ficou maluco?! A gente só tem uma luz… E… Não vai dar certo…! Ele vai te pegar quando ficar escuro o bastante…!
O adolescente superpoderoso sorriu um pouco, notando que, aos poucos, os dois convergiam rumo à mesma sintonia.
— Eis a questão, Emily… Ele não vai.
A proclamação só serviu para deixá-la mais confusa.
— Aquela coisa… Acho que não gostou de você por um motivo.
O progresso feito se viu arruinado mais uma vez, conforme a mente da Attwood cada vez menos entendia a nova série de conceitos.
— Ryan… Como assim isso me perseguiu por um motivo?! Eu… Eu não tô entendendo…! Não tá fazendo sentido nenhum…!
— Emily, liga os pontos. — respondeu, quase soando impaciente. — O segundo piso é privado de qualquer luz, embora o primeiro não seja, e se somarmos isso com o fato de que aquela coisa não suporta a luz, acaba ficando estranho demais, não acha? Ele não consegue se manifestar no primeiro andar por causa da luz!
— Então você tá me dizendo que…
— Foi no momento em que você tentou sair. Perto das escadas é bem mais escuro do que no restante da casa, e você pisou naquela área quando o fantasma apareceu… O que eu quero dizer é que, provavelmente, aquela coisa não gostou disso.
A solidez em sua fala subitamente encontrou uma queda nos últimos momentos, e um calafrio cortou todo o corpo da presidente do clube de literatura como resposta.
— Você vai usar a lanterna do meu celular nos seus pés e entrar no primeiro quarto à esquerda. Depois disso, vai fechar a porta e em hipótese alguma apagar a luz, certo? Lembre-se… Continue mirando a luz sempre nos seus pés, e fique de costas para a parede. Ele não vai me atacar, porque quer você.
— Eu…?
— Eu já tentei antes, quando você ainda estava desacordada. Eu saí da luz e andei do lado dele, e não aconteceu nada. Já que eu não pisei na sua sombra, não me vê como alvo.
— Não pisou na sombra…? Alvo…? — levou as mãos à cabeça. — Eu… Eu tô entendo cada vez menos… Eu só quero sair… Só quero ir embora… Por que você não me explica nada?!
— A gente não tem tempo. Vamos tentar pensar nisso quando sairmos, mas, acho que é sorte termos encontrado um fantasma com essa condição
A forma de sombras não estava ali. Potencialmente, se encontrava pregada em algum canto mais escuro da estrutura do segundo andar, esperando para cumprir com suas ordens de capturar a jovem e bela moça que a “ativou”.
— Eu… Não entendo…
Fantasmas deveriam ser um mito e até mesmo alguém tão imaginativo e aberto quanto ela tinha noção disso.
— Eu não entendo essa casa… Não entendo aquela coisa… Eu não entendo mais uma palavra do que você tá falando…! — Seu tom progressivamente se tornava mais elevado. — E eu não entendo… Você.
— É, eu também não! — levantou as sobrancelhas. — “Quem é Ryan Savoia?” Uma pergunta ótima!
— Uma hora horrível para ficar engraçadinho do nada…!
— Foi mal. Agora faz o que eu pedi e fica lá no quarto, eu vou ficar bem.
Emily observou o celular recostado na parede por um tempo, se questionando por quanto tempo ficou desacordada. Logo, contudo, viu que não haveria proveito em se debruçar sobre isso.
— Ryan… Me promete que a gente vai conversar direito e você vai me explicar tudo?
— Eu prometo.
O sorriso de asseguramento foi a última coisa que viu antes de tomar o celular do chão, apontando o foco luminoso produzido para seus pés.
[...]
“Perfeito. Ela comprou a minha historinha meia-boca sobre isso ser um fantasma que tem medo de luz… Eu não vou explicar nada. Assim que sairmos dessa casa, vou fazer uma limpeza completa nas memórias dela e mantê-la bem longe de casas abandonadas ou situações de perigo.”
O gesto de fechar a porta levou embora quase toda a luz do corredor, contendo-a no interior do quarto.
“Espalhei os cacos do espelho pelo chão do quarto, para refletir a luz de um jeito melhor… É, ela vai ficar bem lá dentro.”
Olhou para o final do corredor, sem qualquer sinal da coisa na escuridão.
“Se eu conseguir iluminar…”
Duas grandes tábuas de madeira bloqueavam o caminho para a abertura da janela, o que já era um bom avanço, considerando que as demais tinham três ou mais. Iria dar um pouco de trabalho, porém partir não era impossível.
Livrar essa janela iluminaria boa parte dos corredores com um nível suficiente de intensidade para que a criação vinda de um pesadelo sequer tivesse a chance de se materializar.
Apoiou seu pé direito na parede e com as duas mãos tocou a tábua. Alguns poucos solavancos de força talvez fossem o suficiente.
Recrutou a força de cada músculo, e puxou.
— Ah, cacete…!
— Ryan?! Aconteceu alguma coisa?!
Uma garra se materializou da sombra e agarrou sua perna esquerda, tentando puxá-la para baixo.
A porta se abriu subitamente, trazendo a luz que frustrou a tentativa de ataque.
— Me atacou…! Eu tentei tocar na janela, e… EMILY, ACIMA DE VOCÊ!
— AAAAAH…!
No último segundo, saltou para impedir o ataque vindo de cima, na forma de um arranhão que visava dilacerar o ombro dela.
— Droga…! Emily, tá tudo bem?!
Sequer tiveram tempo de se recuperar do susto, quando grandes barulhos foram ouvidos pela casa inteira.
Escutaram o som de madeira quebrando, móveis sendo arrastados e até mesmo vindos dos objetos metálicos na cozinha.
— RYAN…! O QUE TÁ ACONTECENDO?!
Tentar expor a casa à iluminação externa foi a pior escolha que poderia ter tomado.
— Porcaria…
Engoliu o seco, liberando ar entre os dentes. Bastou-lhe esse único momento de descuido para que tudo fosse perdido.
— Esse poder… Eu subestimei a capacidade do usuário…
Foi um suspiro, infelizmente ouvido em integridade por sua companhia.