Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 35: Pessoa Desaparecida
Maio, início das chuvas em Montana.
Mesmo sendo verão, o clima não aquecia de verdade, e se as nuvens preexistentes já fossem o suficiente para assustar os ânimos, agora, a verdadeira faceta das tempestades escuras se revelava com tudo o que tinha.
Chuvas podiam ser amedrontadoras, e faziam lembrar alguns anos no passado, quando uma torrente tão forte estraçalhou uma casa inteira no final da Rota da Serragem.
Foram tempos difíceis, de uma queda d’água que fez a cidade inteira ficar três dias sem energia, com as ruas mais baixas inundadas até o pescoço.
Nunca se iria imaginar que choveria tanto quanto naquele dia, embora o céu acima dissesse que poderia chegar uma segunda vez logo.
Não que importasse. Depois daquele evento, nada mais importava.
E não era sobre a morte dos estudantes na Chacina da Perfuração, por mais que o evento tenha sido horrível, também.
A dor desse simples pai era um pouco mais particular.
Tomava cuidado para que não começasse a chuviscar de repente e seus cartazes acabassem molhados. Parte dele sabia que isso aconteceria eventualmente, contudo teimosamente pedia que pudesse ao menos colá-los antes.
Ainda era muito cedo, por isso, não muitas pessoas passavam pelas ruas. Eles demorariam como sempre fizeram para prestar atenção nas coisas importantes, a grande maioria escolheria seguir com suas próprias vidas... Disso, tinha certeza.
Sobravam ele e o vento, sua única companhia arredia, talvez um pouco brincalhona demais para o seu gosto.
— Ah...! Ah, mas que droga...! Eu não acredito nisso!
Não o deixaria sozinho nesse dia tão deprimente, obrigado a pregar uma peça maligna que o tirasse do sério. Era quase como se fosse uma necessidade, e não se tinha como fazer uma única coisa com a mente em um lugar de paz.
Era quase irônico, pelo fato de Elderlog ser um dos lugares conhecidos por sua natureza tão pacata.
Talvez, fosse bom demais para ser verdade.
— Porcaria...!
Em seu desespero, começou a catar os folhetos espalhados pela grande lufada. O serviço era uma humilhação, uma dor de cabeça que não desejaria para o seu pior inimigo.
— Merda... Merda...! Merda!
A mesma foto sempre se repetia, estragada pela água empoçada, e se, na opinião dele, a tinta das impressoras sempre foi fraca demais perante uma mísera gota, quanto mais se estivesse falando de tantas.
“Porcaria!”
No fim, optou por desistir, derrotado pelas forças da natureza, existindo para tornar esse momento tão terrível em algo tão pior quanto poderia ficar.
— Hmm... Desaparecida...?
Um murmurar ao lado o chamou a atenção.
Do chão, um rapaz montado em sua bicicleta pegou um dos cartazes. Aquele estava seco, em condições perfeitas mesmo após ter rolado e voado tanto por cima de tanta poeira e areia molhada.
— Ei, garoto! Me devolve isso aí!
Seu tom carrasco se manifestou em passos velozes. Não houve qualquer resistência por parte dele em lhe deixar tomar o informativo com tanta violência.
No fim, seria mais simples afirmar que ele sequer se importou, dada a sua expressão.
— Ah... Um ficou seco...! — comemorou, quase como se quisesse abraçar a coisa. — O que tá olhando, moleque? Dá o fora daqui! Já me estressei o suficiente!
A expressão vazia do adolescente não se alterou. Ele colocou as mãos de volta no guidão, começando a pedalar de novo.
— Tudo bem.
Foi tudo o que ele disse, todo o necessário para fazer ligar em sua mente o gatilho tão estranho.
— Ei...! Rapaz...! Espere, por favor...!
Arrependimento... Desespero... Curiosidade, talvez? O homem na casa de seus quarenta sabia que existia e foi o que o motivou a chamá-lo de última hora.
Para seu alívio, ele não havia ido longe… Quando ouviu o chamado, de imediato parou para olhar para trás, mais uma vez.
— Sim? — Seu tom era direto, felizmente não aparentando conter qualquer traço de ressentimento.
Isso o aliviou imensamente. Não conhecia o rapaz ou sequer o tinha visto antes na cidade, mas sentia que precisava falar sobre algo que tanto o incomodava para mais alguém.
— Olha, garoto... Me desculpe... É que eu ando um pouco estressado demais...
A mudança de sua atitude da água para o vinho trouxe de volta a vida aos passos, mais contidos e até tímidos. Aos poucos, chegou mais perto do dono de olhos roxos, tão chamativos.
— Estava interessado nesses, não é? Mil perdões por ter agido daquele jeito... Aqui, pode ficar com um deles.
— Ah... — Com sua voz grave, o rapaz com idade de ser um mero estudante o respondeu. — Obrigado.
Recebeu um simples folheto branco. Por quase todos os cantos naquela rua, se via alguns deles pregados em postes, árvores, ou até em paredes. As grandes letras vermelhas em caixa alta e bem destacadas liam “PESSOA DESAPARECIDA”.
Logo abaixo, a fotografia impressa de uma garota. Seus cabelos eram loiros, em um corte curto, um pouco acima da altura dos ombros. A testa tinha uma franja regular em estilo reto, de fios perfeitamente alinhados. No registro, sua maior marca registrada era o grande sorriso largo, enfatizado pelo batom vermelho ao redor dos lábios finos.
Um pouco mais embaixo, os dizeres: “Lillian Sparks, 21 anos — Desaparecida em 12/04/2025”.
Bastou uma breve encarada comparativa para saber a verdade, pois entre cabelos da mesma cor e estrutura facial...
— É a minha filha — admitiu, em pesar. — Já faz quase um mês desde que ela desapareceu...
O homem à sua frente parecia desgastado, moído por noites longas e dolorosas, sem poder fechar os olhos, cheios de melancolia e escassos de qualquer esperança.
— Eu sei que isso pode soar meio esquisito, mas... Você meio que parece bastante com uma paquera que ela arranjou nos dois anos que viveu na Flórida com os tios dela… Eu não pude deixar de notar isso.
Ele balançou sua cabeça baixa em leve negação, para forçar um sorriso frágil.
— Ah, esqueça isso. É só... Um devaneio meu — continuou, um pouco mais intenso. — Você... Não é ele... Ou é?
— Sinto muito, mas eu não acho que conheci nenhuma Lilian, senhor.
— Ah, como eu queria que tivesse conhecido...!
A morte de seu sorriso precedeu o balanço de cabeça. Amargo, engoliu sua frustração e estendeu-lhe a mão.
— Alex Sparks. — Se apresentou. — Por acaso você é novo na cidade ou alguma coisa assim?
— Ryan Savoia. — aceitou o cumprimento. — Acabei de chegar há quase duas semanas... Mas…
Uma pequena risada da parte de Alex quebrou um pouco do clima pesado naquele início de manhã.
— Como eu sabia? Todo mundo aqui meio que se conhece, garoto. Eu já vivo aqui há vinte e cinco anos e sei de todos por aqui. Você não era um deles!
Mesmo que por um momento, se divertiu, mas não sem depois voltar atrás.
— Não sabe sobre a série sem solução de desaparecimentos que acontecem aqui na cidade, não é?
— Disse “desaparecimentos em série”?
Não podia dizer que a história era nova em seus ouvidos, mas as notícias mandadas por Mark nunca se aprofundaram no assunto.
Logo, ouvir isso de um cidadão, especialmente com a conotação de tamanha intensificação, tornava as coisas intrigantes.
— Não posso dizer que ouvi falar dessa história antes… O que aconteceu na cidade?
— Imaginei que não… O pessoal daqui já começou a tratar isso que nem um tabu faz um tempo... Ninguém parece gostar muito de falar sobre... Bem, até que dá para entender, né...!
Alex bateu palmas uma única vez, cansado.
— Já fazem uns dois anos... Uma trilha de crimes envolvidos uns nos outros, juntos que nem a porcaria de um nó... Mulheres jovens e bonitas sumindo da cidade da noite para o dia, como se tivessem virado poeira... Ninguém faz nem ideia de onde estejam agora, ou sequer se uma delas continua viva.
A curiosidade de Ryan não tinha como estar mais aguçada, a começar pela data tão específica dos acontecimentos: dois anos, mesmo período em que os “crimes sem explicação” entraram em alta ao redor do mundo inteiro.
— Começou com a filha dos Jones, uma menina chamada Jessica... Ela sumiu em outubro de 2023. De início, todos pensaram que daria tudo certo por essa ser uma cidade pequena... Eu me lembro que a cidade inteira, incluindo eu mesmo, nos mobilizamos para sair procurando por ela... Bem, um esforço sem sucesso nenhum, já que até hoje não encontramos nada, e olhe que reviramos cada canto desse lugar como se estivéssemos fazendo uma faxina na porcaria do território inteiro!
Porém, nada era tão ruim que não pudesse piorar.
— ... A questão é que ninguém imaginou que isso continuaria... Ao menos não desse jeito...! Fazem dois anos desde que começou e até agora já sumiram mais de quarenta e cinco garotas e mulheres!
Os números alarmantes fizeram cada canto de seu corpo tremer em pura ansiedade.
— Quarenta e cinco... Em dois anos?!
— Eu sei o quão louco isso soa, rapaz, mas eu vi o sofrimento de cada uma dessas famílias com os meus próprios olhos! Filhas, primas, irmãs... Essa cidade já perdeu brilho demais!
A própria atmosfera local dava seu jeito de servir como o parâmetro que suportava tal alegação. Não viveu por muito tempo em Elderlog e, por isso, não sabia o suficiente para dizer, mas em nenhum dia dessas duas semanas Ryan viu um céu azul.
— Todas desaparecidas do mesmo jeito, com as mesmas características... Seja quem for, esse filho da puta tem um perfil claro de vítimas... O desgraçado que levou a minha princesa...!
Alex já se encontrava alterado demais para responder qualquer pergunta, por isso mesmo que tivesse mais delas do que podia contar, o rapaz recém-chegado decidiu não se atrever a fazer nenhuma.
“Também não me parece que vou conseguir extrair nenhum detalhe mais ao fundo por ler a mente desse cara… Ele não parece mais do que um civil comum, então o nível de conhecimento dele não deve ser mais profundo do que tudo o que já me contou até agora.”
Parte da escolha também veio do medo. Não podia se chamar de paranóico ainda, mas Ryan temia a possibilidade de estar sendo visto por alguém mais que soubesse acerca de seus poderes.
“... Tipo a tal de Samantha…”
— Essa cidade é amaldiçoada, rapaz... Se você tem uma irmã ou uma namorada, certifique-se de sempre andar do lado dela. Pode parecer excesso de cuidado ou até ciúmes, mas aqui, é só o básico... Você nunca sabe quando pode perder.
Isso acertou o rapaz mais perto de seu peito do que Alex possivelmente imaginou.
— Talvez… Eu vá fazer uma pesquisa mais a fundo…
— Interessado em tentar descobrir alguma conexão? Olhe, garoto, não me leve a mal, mas se nem mesmo os policiais souberam encontrar alguma coisa, não é você que vai conseguir e eu tenho a mais pura certeza disso, e além disso, não é como se a internet vá te dizer alguma coisa…
— O que quer dizer com isso…?
Seu semblante se retorceu diante da súbita curiosidade. Alex não desejava falar mais sobre, especialmente diante das circunstâncias, porém, algo o levou a continuar.
— A cobertura dos fatos parou faz algum tempo… Acho que depois da décima segunda garota, eles pararam de noticiar… Agora, não me pergunte o motivo…!
A tentativa de conter sua fúria quase falhou. Em sua opinião, algo desse tamanho jamais se deve permitir ser esquecido pela grande mídia.
Porém, ele sabia que ninguém se importaria com uma cidadezinha de interior.
— A cobertura da mídia não se importa com essa cidade esquecida por Deus, garoto. Você não vai encontrar nada.
Procurar mais a fundo não levaria a lugar nenhum ou solucionaria os casos.
— Mas e quanto ao noticiário local? Não tem nada a respeito?
Para a sua surpresa, Ryan não aceitou a pesada verdade.
— Você disse que a grande mídia não noticia mais os casos, mas… E quanto aos noticiários menores? Existe algum jeito de eu ter acesso a isso? Eu sei que dificilmente vou achar na internet, então…
Ele irradiava uma determinação estranha; não muito confiante, mas real, e isso, por um breve segundo, o contaminou.
— Hunf... Olhe... Tudo bem, garoto...
Batalhou arduamente contra o próprio estresse para andar até mais próximo da estrada e apontar com o braço uma direção, logo mais adiante.
— Aqui é a Maple, então se você descer ali e pegar a Cypress, pode seguir para a direita até cair na Oak Street. Assim que chegar lá, deve ser uns cento e vinte metros até chegar na Biblioteca do Condado de Flathead. Lá você deve achar alguns jornais e registros, mas nada que vá solucionar um crime.
Já era um bom começo. Entender algum fato sobre os eventos recentes na cidade talvez contribuísse para a construção de uma linha do tempo.
— Obrigado, senhor Sparks — entregou o cartaz de volta. — Espero que consiga ter mais sorte do que os casos passados.
Foi algo terrível de se dizer, e por isso não quis ficar para lidar com qualquer resposta ou consequência. Esse homem nunca mais veria sua filha em sua vida.
Então, ele subiu na bicicleta, acelerando entre as ruas repletas de poças de chuva e informativos estragados.