Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 36: Estantes, Fileiras, Sonhos e Aspirações
Isabella — 23:57: “Me desculpa, Emily... Desde que a escola fechou para a inspeção técnica na última semana, meus pais não querem deixar nem eu nem minha irmã sairmos de casa. Eles ainda têm medo do assassino estar por aí... De novo, me desculpa! :’(“
Ava — 00:03: “Casa abandonada? Por que raios eu ia querer sair do conforto da minha casa para ir numa casa abandonada, quando pode ter um assassino que perfura pessoas com canetas morando nela?! Emily, vê se pensa um pouco! Nem ferrando que eu vou sair de casa enquanto não acharem esse maluco!”
Olivia — 00:32: “Sem chance. Não quero sair de casa nessa chuva. : /”
Ler as mensagens do grupo de conversas evocou apenas um desejo: o de se jogar sobre a mesa gigante e bater a cabeça nela repetidas vezes.
— Poxa, mas que droga...! Por que nada acontece de acordo com os planos?!
[Emily Attwood]
Hunf...! Mas que porcaria de semana! Eu não fiz uma coisa interessante desde que aquele maluco entrou na escola e, de alguma maneira, conseguiu matar todo mundo que encontrou pelo caminho de um jeito tão bizarro...!
— Mas eu até que entendo... Eu também deveria estar me cuidando um pouco melhor... E talvez não saindo para a rua desse jeito.
É... Parece que no final eu não consigo culpá-las por não terem mais vontade de saírem depois de tudo o que aconteceu... A cidade em si ficou bem mais triste também, sem falar que ainda não encontraram o cara. A polícia imagina que o assassino só esteja esperando a poeira das investigações baixar um pouco.
Mas... De qualquer forma, é só um tédio sem comparação não ter nada para fazer... Eu não vou mais aguentar ficar presa naquela casa por tanto tempo. Nada contra os meus pais, mas eu não acho que eles entendem os meus interesses tanto quanto as minhas amigas do Clube de Literatura.
— E agora, o meu único lugar para ficar é nessa biblioteca... Esse deveria ser o meu habitat natural, mas... Eu não me sinto mais tão empolgada por estar aqui... Não quando é por necessidade.
Sei que estou falando sozinha, mas não me importo. As outras pessoas estão tão longe que não devem conseguir me ouvir, sem falar que algum funcionário já teria me mandado calar a boca há um tempão se fosse por isso.
— Hmm... Vejamos o que tem aqui... “Sombras e Noites Impiedosas”...? É até interessante, mas eu não tô afim de ler agora... De coisas obscuras e nebulosas, já basta o céu de hoje.
Afogada em meu tédio, devolvo o grosso e robusto livro, um famoso romance cheio de ação, sobre vampiros e uma organização que os caça... Heh, parece que não consigo esconder de mim mesma o fato de que já li isso uma vez...!
É uma história sombria... Duh, o título diz, Emily sua tonta...! Mas o que eu sinto que quero dizer é que nada se compara com o que essa cidade tem, e por isso eu queria visitar a casa abandonada com o pessoal. É uma pena que nenhuma delas vai poder ir agora.
— E a gente já vinha marcando isso faz tanto tempo...
Poxa, a gente já tinha planejado até todo o trajeto que faríamos, e a Ava até se deu o trabalho de conseguir uma câmera que deixasse a gente gravar a coisa toda... A Isabella ia levar uns lanches para a gente comer lá dentro, também...!
Ah, como eu queria poder descobrir mais sobre essa cidade e os segredos macabros que eu sei que ela esconde... Aquela casa seria um ótimo lugar para começar. O lugar nunca mais foi o mesmo desde que aquela coisa terrível aconteceu lá...
Ugh...! Lembrar até faz a minha carne começar a tremer...!
— Uuuuhhh! De repente começou a ficar tão frio...! Minha mãe bem que avisou que eu deveria ter me agasalhado melhor...!
Essa brisa fria só pode ter significado que alguém abriu a porta... O que é uma baita coisa, já que quase ninguém visita essa biblioteca no fim de semana.
Mas, ah, que se dane! Eu posso adorar livros e mergulhar em suas histórias, mas qualquer coisa agora soa mais interessante do que ficar mofando aqui dentro, virando um enfeite de mesa! Eu sei que sou linda, mas não é essa a minha utilidade.
Então, não vai ter problema se eu espiar um pouco para saber quem foi que acabou de entrar!
— Ah... Bom dia...!
Espera aí... Aquele cara na recepção... Eu sinto que conheço ele de algum lugar.
— É… Que eu queria saber onde eu posso encontrar alguma coisa sobre a história da cidade... Sabe, jornais ou alguma coisa assim... Qualquer coisa que ajude.
Esse cara... Não foi ele quem deu aquela surra no Vincent já faz um tempo? Lembro que tinha um vídeo dele circulando por aí... Não... Não tem dúvida nenhuma! É ele mesmo!
— Oh? Interessado em saber mais sobre Elderlog, rapaz? Não é da cidade, certo?
— Eu já escutei isso de algumas pessoas... Não, eu não morava aqui até… Uh, recentemente.
— Hmm! Tudo bem, então! Ali. Basta seguir aquele corredor e você vai encontrar uma pilha de jornais organizados em uma prateleira. Arrumamos eles por ano de lançamento, então não os desarrume, por favor.
— Ah, eu entendi… Obrigado.
— Disponha!
Oh? Então ele também tá interessado em saber sobre a cidade? Ora, ora, vejam só...! Mas que belo momento seria esse para a grandiosíssima eu aparecer! Parece que as coisas realmente vêm na direção de que as deseja o suficiente!
Muito bem, lá vou eu, Emily Attwood, fazer o que sei de melhor nessa vida!
— ... Ser um incômodo profissional...! — exteriorizo meus pensamentos em voz alta, na intenção de chamar a atenção de qualquer um que estiver por perto.
Hora de sumir nesse labirinto de estantes...!
[Ryan Savoia]
Ah, que ótimo… Agora uma biblioteca tá me fazendo ficar nervoso…
Sendo sincero, não imaginava que esse lugar fosse ser tão imenso, ainda menos tendo em mente o tamanho dessa cidade de interior. Aparentemente, Elderlog resolveu que seria perfeito viver em uma logística invertida…
— No fim das contas, essa biblioteca tem todo o acervo do Condado de Flathead...
Isso foi o que tentei contar a mim mesmo várias vezes desde que vi essa estrutura. Ter uma biblioteca que mais se parece uma igreja ortodoxa do século XVIII é… Bizarro.
Mas que pessoa você é para falar sobre bizarro, hein, Ryan?
— Ah, aquela ali deve ser a tal pilha de jornais…
Eu pensei que fosse demorar mais para encontrar, mas já estava bem na minha frente… A sorte que me faltou nesses últimos dias, eu acho.
Hora de começar a revirar isso e bancar o investigador… Mark e Lira não vão me contar nada, então eu vou ter que descobrir sozinho.
— Acho que vou começar por 2023, que foi quando as coisas começaram a ficar intensas…
A razão disso? Guerra.
Depois desses últimos dois anos, o assunto esfriou, mas na época, todo mundo falava sobre como o mundo mudou para pior depois que os Russos começaram a invasão.
Com o fim do conflito, não demorou para começarem esses crimes deliberados, com muitas vítimas e nenhuma testemunha.
— E todo mundo colocou a culpa em uma possível retaliação russa…
Para piorar, o país fechou suas portas para o mundo, e tem estado surpreendentemente quieto em suas declarações.
— Acho que se eu quiser aprender alguma coisa, é melhor começar pelo micro…
A Internet de fato não fala muito sobre Elderlog, além de ressaltar ser um ponto turístico. As notícias mais velhas trazem um caso ou dois de desaparecimentos, mas sem muita visibilidade.
Fica fácil saber a razão da mídia não ter dado seguimento; eles não querem afastar esse dinheiro todo que gente desocupada, lá da França, vem gastar aqui.
— E por falar em turismo... — mantenho minha fala baixa, em murmúrios. — Esse lugar vai ficar repleto de turistas até o pescoço... Como se já não fosse ruim o suficiente lidar só com os moradores...
Tudo culpa do evento chamado “Festival dos Lenhadores”, que acontece em 23 de Agosto, já que esse é o aniversário oficial da cidade. Também é um jeito de comemorar as colheitas e desejar um bom ano, pelo que parece.
Pelo pouco que li, a cidade é chamada de Elderlog por ter começado como uma vila de lenhadores, o que explica também o nome do festival. A questão é que o lugar só foi reconhecido como cidade em 1978.
O primeiro prefeito foi um imigrante italiano que organizava o vilarejo antes mesmo de se tornar uma cidade. O nome dele era Enrico, se eu não me engano...
— Quer saber? A história desse lugar pode esperar… — escolho alguns jornais. — Hora de focar em saber mais… e sobre o que importa.
E quando faço o meu caminho até a mesa mais próxima, levando uma parte da seleção que deve totalizar uns quarenta centímetros de papel impresso, sou tomado de surpresa.
— Yahoo! Aqui! Aqui...!
Tem uma garota sentada lá, e ela acenou na minha direção... Será que é comigo ou...?
— Ei, cara! Vai ficar parado aí com esses jornais até quando? É com você mesmo que eu estou falando! Vem aqui, vamos conversar!
Cabelos castanhos claros, lisos e bastante volumosos, brilhando com a incidência da luz. São curtos, tocando um pouco os ombros, densos o bastante para cobrir completamente as orelhas, como se fosse um capacete.
Uma pequena verruga embaixo do seu olho esquerdo me chamou a atenção… Acho que chamam isso de “sinal de beleza”...? Eu não tenho certeza.
Sempre achei que os meus olhos ficavam fora de lugar, mas ver um verde tão firme quanto esse me fazia perder as palavras.
Ela está usando roupas finas... em um frio desses? A biblioteca parece ter um aquecimento, mas, não acho que alguém seria maluco o suficiente para não usar ao menos um casaco!
E se eu tiver que dizer outra coisa sobre ela…
— Okay, okay, eu já entendi...!
Nem pude perceber e quando ouvi, descubro que ela já está perto de mim, além de já estar me empurrando na direção da mesa de leituras mais próxima.
— Eu saquei tudo! Olha, eu sei que eu sou uma gata, tá bom? E já deu para perceber que você é um cara meio tímido com essas coisas. Mas tá tudo bem... Tá tudo bem! Não faz mal!
— Ah, eu...!
— Eu já disse! Eu entendo! Acredita em mim, vai!
A recepção tão estranhamente animada dessa garota não me deixa sequer passar pelo sentimento de inadequação que aquilo naturalmente deveria gerar.
Fui tão violentamente puxado para fora de meus pensamentos, que sequer me sinto totalmente em mim mesmo, agora.
Enquanto tento processar o que aconteceu comigo, ela toma seu lugar exatamente à minha frente e começa a brincar com a representação de um globo terrestre em um suporte de madeira, girando-o com seu indicador.
— Me fala o seu nome! — Ela começa, olhos vidrados na esfera a girar.
— ... Ryan Savoia...
Espera... Por que raios eu disse o meu nome para essa completa estranha?!
— Ah...! Itália! — Com o mesmo dedo, ela cessa o movimento do globo. — É um sobrenome Italiano! Lembro de um personagem com esse sobrenome... Um mafioso suuuper perigoso!
Ela... Ela parou o globo com o dedo apontando justamente sobre a península italiana...
— Você tem algum parente italiano? — perguntou, me encarando de lado.
— Já me contaram que veio do meu tataravô ou alguma coisa assim... Eu não sei bem, na verdade...
— Entendi, entendi! Então escuta essa aqui...!
Ainda não entendo o que me leva a ser tão aberto com essa garota que acabei de conhecer... Seria isso o efeito de puro carisma...?
— Você sabe que os americanos e os italianos se odiavam na época colonial, não é? Bastou lançarem aquela biografia fajuta daquele pateta do Cristóvão Colombo e da “conquista” dele de “descobrir a América” e todos os americanos passaram a beijar os pés dos italianos!
O brilho dela é intenso como o de Mark, mas, ao mesmo tempo… tão diferente… Me faz querer ouvir essas besteiras sem sentido, e de verdade…
E, além disso, estar perto de alguém que tem tanta liberdade para agir como se conhecesse um estranho há anos é… impressionante.
— Digo, aquele cara era um genocida! Um tirano! Uma máquina de crueldade em cima de um navio! Ele até impulsionou o tráfico de escravos...! Você sabe quantos nativos ele assassinou por esse reconhecimento? Ugh! Aquele italiano cruel... Falar dele faz minha carne de cidadã americana tremer!
E então, ela muda de postura de um segundo para o outro, virando-se para mim com um sorriso pequeno, embora caloroso.
— Meu nome é Emily Attwood. Prazer em conhecer!
Espere um pouco...
— Você disse... Attwood?
Esse sobrenome definitivamente não me soava estranho… Eu já li isso em algum lugar…
— Hehe! Exatamente isso!
Sua atitude cheia de energia se traduz em uma postura orgulhosa, ao apontar o polegar direito para seu próprio peito inflado.
— Eu sou a própria belíssima bisneta do primeiro prefeito da cidade, e estou aqui para te oferecer a minha grande e preciosa ajuda em descobrir mais sobre esse lugar, de descendente para descendente, Signore Savoia!
E, sem esperar, ela pega a primeira edição do jornal local do topo da pilha.
— Vamos começar! Mas, me fala mais sobre o que você tá procurando!
Estar diante de alguém com toda essa energia…
— Vai, não precisa ser tímido perto de mim! Fala!
Isso me faz pensar muito… Mais do que eu gostaria.