Uma Cidade Pacata – Os Mistérios dessa Cidade
Capítulo 34: Quebrado
— Os retículos endoplasmáticos são as organelas responsáveis por sintetizar os nutrientes para o restante dos componentes das células, certo?
— Exato! Parece que alguém vai se dar bem na próxima prova de biologia!
Viam a noite e uma fraca chuva a gotejar do céu choroso, fina ao ponto de seus pingos servirem somente como um barulho ambiente tão confortável.
Fazia frio, por isso os dois se abraçavam aos seus casacos, ainda que dentro da segurança da casa. Mesmo assim, não queriam fechar a janela.
O desconforto gelado tinha a sensação de um estranho prazer.
Foi um convite despretensioso e que, de início, não parecia ser nada, só um chamado para revisar a matéria.
Porém, não tarde o céu revelou suas caras, seu acinzentado ameaçador caindo como uma punição divina.
E os forçou nesse cenário prolongado, em uma casa ausente de quaisquer outras formas, restando apenas os dois entre as quatro paredes.
Os livros e cadernos se espalhavam pela mesa do quarto cheio de enfeites felpudos e animaizinhos de pelúcia. Eram leões, zebras, ursos... Todos organizados em seus respectivos lugares, vigilantes.
E dali, viam a cena se desenrolar, com dois adolescentes tentando, tanto quanto podiam, focar na matéria da próxima prova.
Palavra-chave: tentando.
As imagens e palavras ficavam cada vez mais confusas e borradas, mesmo as ainda vendo, e era uma outra coisa bastante peculiar que os tirava do sério, e os dois sentiam sua pressão invisível.
Ali, queimando no peito e descendo para o estômago — não, um pouco mais embaixo do que isso —, na forma de uma estranha inquietação ansiosa.
As máscaras da decência serviam de única e frágil barreira, e as lascas, aos poucos, caíam.
— Então... Próximo assunto?
A pergunta sem jeito da moça fez a sensação pulsante aumentar, e em seus olhos, ele pôde ver sua hesitação.
Ela deu de ombros e desviou o foco, mas seus olhos castanhos da cor de mel não mentiam para onde de fato queria estar olhando.
Os cabelos ondulados, coloridos como chocolate ao leite, ainda tinham traços do molhado da chuva e, mesmo secos com tanto afinco, ficaram ali poucas gotas, para lembrá-lo de continuar olhando.
A pressão de responder o urgiu a quebrar esse contato.
— Ah, claro...! Próximo assunto!
Tentou soar confiante e focado... Sem sucesso.
A bela garota ao seu lado direito alcançou a página do livro de biologia, pronta para mudar o foco dos estudos. O próximo ponto seria anatomia humana, a respeito do sistema esquelético.
Mas a natureza não queria assistir aos dois discutirem sobre ossos — não com o ímpeto borbulhante a lhes consumir cada vez mais por dentro —, logo, resolveu prestar uma ajuda, na forma de um esplendoroso trovão.
— Ah...! — Ela se assombrou, quando o clarão azulado entrou pela janela. — Foi mal... Eu derrubei o livro...!
— Beleza... Deixa que eu pego!
Uma ação não calculada os levou a tocar a página repleta de textos ao mesmo tempo, em uma jogada tão ardilosa do destino.
— Uhh... — Ela iniciou, um tanto envergonhada. — Não era por aqui que a gente deveria começar, né...?
Ele engoliu o seco, tomando cada um dos termos e demonstrações imagéticas dessa parte tão específica do que compõe um ser humano.
Sem risinhos para quebrar o clima pesado ou piadas imaturas para contar, lhe restou somente o silêncio.
Ambos se entreolharam, sob a leve sombra da pequena escrivaninha, por segundos que correram como horas inteiras.
... ... ...
— Me segura com mais força…
Livros, cadernos e mochilas foram abandonados, deixados de lado em detrimento de algo diferente. Foram todos largados, longe de suas mentes agora.
Nomear a nova atividade de “estudo prático” seria longe de incorreto.
— Um pouco mais... Devagar...
Luzes apagadas e o brilho alaranjado vindo da rua, tão escasso graças à árvore no caminho. Às vezes, o azul dos relâmpagos distantes fazia o favor de iluminar sua pele tão delicada.
Corações acelerados, baforadas quentes e úmidas, formando pequenas nuvens de fumaça que logo desapareciam.
— ... Desculpa... Me empolguei...
As frágeis muralhas da moralidade e da racionalidade foram quebradas, cedendo lugar ao misto de suores e dedos entrelaçados, trocas de toques suaves e palavras ditas no ouvido.
E ao invés da educada distância entre as cadeiras, quente fricção.
Sem casacos. Não fazia mais frio.
Como permitiram ficar assim? Não sabiam.
— Ah… Não para… Continua.
Um sorriso branco, e a bela moça abriu seus braços, fazendo um pedido.
— Não precisa se segurar mais...
Suas mãos o envolveram e puxaram para mais perto, até que encostassem plenamente um no outro. Foi um toque tranquilo, cheio de tanto cuidado, profundo e especial.
Conforto como nenhum outro, presente unicamente no contato que poderia durar para sempre. Era assim que ele queria que fosse.
Era assim que deveria ser.
— Ei... Me diz...
Entregue o calor tão macio, acompanhado do suspiro em seu ouvido.
— Qual deles você gosta mais...?
Mas então, sentiu algo pontudo, lhe tocando na barriga. Nada que um leve reajuste não fosse resolver.
— Qual dos meus buracos você gosta mais...?
Dois, três, quatro... Logo eram dez, quinze, vinte. Vários pequenos incômodos, espalhados por todos os cantos em que tocava. Seja lá o que fossem, queriam rasgar sua pele a cada movimento.
De repente, não era mais algo bom. Cada segundo a mais do abraço o enchia de pânico.
— Digo... Eu tenho tantos deles agora... Em cada canto de mim... Você gosta deles... Não gosta?
Pontas de canetas, tesouras, facas, lápis, palitos de grafite, agulhas, cacos de vidro…
E, um mar de sangue escuro.
— Você me prefere assim, não prefere? Quebrada...
Todo ali, em suas mãos, congelado como ele ficou.
— Por que você me quebrou? Isso dói...
Ela agarrou seu pescoço com dedos gélidos, fincando as lâminas e pontas, impedindo protestos. Ele quis gritar, mas os novos buracos roubavam seu ar.
— Mas você me prefere assim, então, tudo bem.
Um afiado beijo cortou sua língua e agulhas invadiram seus olhos, deixando que sentisse seu próprio sangue quente e pulsante, logo morto e frio.
— Vamos ser quebrados juntos, então.
[...]
Em um sobressalto, levantou-se da cama, sentado, e ao olhar, o relógio apontou 5:18 AM com seus números verdes.
“Um pesadelo.”
Já não era mais tão escuro assim do lado de fora, e o céu tomava um tom azulado um pouco mais aparente, a cada vez que se observava.
“Droga... Eu devo ter dormido por cima do meu ombro…”
Sua reclamação silenciosa encontrou o caminho de seu ombro esquerdo, irradiando uma leve dor pulsante.
Uma semana se passou, porém nada o deixava descansar.
“Eu não vou conseguir voltar a dormir.”
A certeza disso o fez saltar da cama e os dedos cansados alcançaram o celular sobre a mesa de cabeceira.
“Tá muito cedo para levantar em um dia sem aulas.”
Pressionar o botão criou um clarão desconfortável e o mostrou já terem se passado cinco minutos.
“Sem interesse em ver isso.”
Seus dedos foram rápidos em se livrarem das notificações do chat em grupo que Mark havia criado. Desde aquele dia, suas atitudes mudaram de água para o vinho.
“Ao menos, parcialmente.”
Lira continuava a tratá-lo da mesma maneira fria e distante, falando pouco e nada além do essencial.
“Ela tem medo de mim.”
A ideia ainda lhe soava um tanto absurda, mas nada negava os fatos evidentes. Ela nunca se atrevia a ficar a qualquer distância dele que permitisse um toque.
E por mais que o contato e o engajamento grupal houvessem significativamente melhorado, ainda restavam muitos segredos.
Os três nunca conversavam sobre qualquer assunto envolvendo seus poderes, dada a óbvia chance dos dados nas mensagens estarem sendo vistos por alguém, todavia, algumas vezes, Mark compartilhava algumas notícias estranhas.
Prédios inteiros incendiados, suicídios em massa, símbolos ocultistas desenhados em locais de chacina... Todo o tipo de coisa que não se tinha uma explicação lógica para dar.
“Mas a gente sabe.”
Olhos vazios o conduziam para além da vidraça, em direção ao mundo tão vasto de verde e montanhas.
Agora, tinham a resposta de tudo.
“Barulhos de televisão...? Ah, Hannah deve estar lá embaixo... Mas o que ela faz acordada em uma hora dessas?”
Abriu a porta, optando por seguir os ininteligíveis barulhos que um homem qualquer fazia na televisão. Era uma longa fala sobre algo cujo conteúdo era impossível de se distinguir.
Antes de deixar o lugar, fitou de longe seu reflexo semitransparente na porta de vidro que levava à pequena varanda no segundo piso, para os erros que não podia consertar.
... ... ...
— As autoridades do estado de Montana e de cada canto dos EUA continuam intrigadas com o caso “Perfurador de Elderlog”, e após o crime de maior notoriedade do assassino em série, as evidências encontradas na Elderlog High, local escolhido para protagonizar uma chacina estudantil, não dizem coisa alguma.
O repórter na televisão tinha sua fala cortada subitamente pelo agressivo barulho dos dentes de Hannah mordendo torradas frescas, atenta a cada palavra dita.
— Foram encontradas um total de nove vítimas, todas com trejeitos típicos do modus operandi do assassino: perfurar em diversos lugares, com quaisquer objetos disponíveis. O que mais intriga é a teórica impossibilidade dos crimes, dada a clara falta de praticidade de tal método e laudos dos legistas confirmaram, ainda, que os objetos causaram dano perfurante muito similar ao gerado por disparos de armas de fogo.
Por um momento, sentiu o pão crocante querer voltar de onde veio.
“É... Foi mesmo uma cena e tanto.”
Com um pouquinho de planejamento cuidadoso e os vários contatos feitos no hospital, pôde acessar os documentos referentes à autópsia de muitos dos cadáveres, e embora quase todos compartilhassem de um método de execução único, um saltou aos olhos como o mais grotesco e doloroso.
“Aubrey Woods, morta por ingestão de pó de vidro.”
Por fora, a menina chegou intacta, com as primeiras e mais absurdas diferenças se revelando no instante em que seu estômago foi aberto. Mesmo sabendo melhor, Hannah não podia dizer como tanto vidro foi parar dentro de uma pessoa.
Esse não foi de longe o achado mais interessante, todavia.
— Um total de dezessete policiais enviados para lidar com a ameaça foram encontrados em estado de aguda confusão mental. Segundo relatos próprios, os profissionais não faziam a mínima ideia de onde se encontravam ou o que faziam na escola. Suspeitas de um vazamento proposital de monóxido de carbono levaram ao fechamento temporário da escola para inspeção. Além disso, o corpo de mais um adolescente em estranhas condições foi encontrado em uma sessão interditada da instituição.
Era sobre isso que ela queria ouvir.
— O jovem foi encontrado amarrado a uma cadeira, em uma quadra poliesportiva em condições precárias. A autópsia revelou fraturas de duas costelas e lesões no fígado e rim direito, contudo a hipótese para a causa da morte é dada como hipoglicemia aguda.
“Não tinha quase glicose alguma na corrente sanguínea dele.”
Os valores constaram perigosamente próximos de zero, o que levaria a uma morte imediata e de sofrimento relativamente baixo. Ainda assim, não deixava de ser bizarro o suficiente para demandar um olhar mais aprofundado.
— Não existe qualquer gravação do sistema de vigilância eletrônica, dada a destruição dos computadores e o roubo de todos os discos rígidos. As autoridades não sabem como guiar a investigação.
Tal conclusão se mostrava, ironicamente, favorável ao seu ver.
“Eu só consigo esperar que…”
— Ah... Bom dia, Hannah.
Novamente falhou em notar a súbita entrada dele no cômodo ocupado. Presa em seus pensamentos, a Savoia mais velha por pouco não exclamou de susto.
— Ah... Ryan...! Acordado tão cedo? Você não tem aula hoje, né? É sábado e a escola passou a semana fechada!
— Vou sair para dar uma volta na cidade. Não dá mais para ficar tanto tempo preso em casa.
— Huh... Tá bom... — Não quis debater. — Mas… Vai pular o café da manhã mesmo? Não é muito saudável sair assim sem ter comido nada, sabia?
— Não se preocupa — tirou do bolso do casaco sua carteira. — Eu vou acabar pegando alguma coisa no caminho.
Ambos pararam para admirar o noticiário da televisão, mostrando a gravação feita no dia anterior, uma sexta-feira de chuvas intensas, onde os céus foram mais cinzas e raivosos do que nunca.
“Agora vamos falar mais sobre as repercussões da Chacina da Perfuração, como a mídia está chamando... Vou pedir para o cinegrafista me acompanhar até o memorial...”
O repórter andou por alguns metros entre poças molhadas, até chegar a um espaço no pátio da escola. Ali, várias flores de diversas cores repousavam unidas em um desenho circular, onde, ao centro, foram dispostas as fotos das diversas vítimas.
— A mãe de uma das vítimas concordou em conversar um pouco conosco sobre o sentimento de ter que passar por toda a dor dessa perda... Senhora Amanda Brown, nossas condolências por sua perda.
A mulher em prantos estava inconsolável, embora corajosamente forçasse uma postura séria o bastante para conseguir falar uma palavra ou duas. Ela batia seus dentes, por ambos frio e dor, tendo em mãos uma fotografia de uma bela jovem sorridente.
— Eu tenho que ir. Até mais tarde, Hannah.
— Ah, irmão...! Espera!
— Volto em algumas horas.
O bater apressado da porta correu a casa inteira.