Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 23: Passado de Zane. Parte 6: Senhor? Já Ouviu a Palavra de Deus Hoje?

Um dos seres avançou devagar, assumindo a dianteira. 

À medida que se aproximava, a água sob seus pés ondulava a cada passo, como se respondesse à sua presença. 

Sua silhueta surgiu primeiro, recortada pela penumbra, até que a luz prateada da lua começou a revelar seu rosto. Olhos azuis refletiam o luar como água calma, com pupilas ligeiramente dilatadas que transmitiam um ar selvagem e sedutor.

Cabelos brancos como neve caíam em mechas soltas, destacando as duas orelhas pontiagudas no topo da cabeça. Passou a língua entre os dentes, revelando caninos discretos que cintilaram sob a luz. 

Em cada pulso, repousava um chakram em forma de lua, enquanto uma pequena nuvem pairava imóvel entre o pescoço e os ombros.

Garras negras se destacavam contra a vestimenta áspera, feita de couro e pelagem, reforçada nos ombros e punhos como a de um caçador. Um rabo longo e felpudo balançava com movimentos quase imperceptíveis.

Ao seu lado, o outro avançou. Mais humano na aparência, ele se aproximou e levantou a mão num gesto pacífico, quase em rendição, ao ver Zane assumir postura de combate.

— Não temas, humano — sua voz era serena. — Deus quer conversar contigo.

O jovem pigarreou, desconfiado, e respondeu com um meio sorriso:

— Então é melhor falar daí, chefe. Assim que vi duas criaturas vindo em minha direção, andando sobre as águas, já fiquei temido.

O ser deu de ombros, lançando um olhar breve para a companheira.

— Compreensível.

No instante em que completou a frase, Zane piscou — e o ser já estava à sua frente, segurando firmemente a faca em sua mão.

— Como é que… — murmurou, surpreso.

Com calma, o homem puxou a lâmina.

— Não vai precisar disso. Me chamo Gabriel. Sou um de muitos anjos do Senhor. — apontou com o polegar por cima do ombro. — Aquela ali atrás é Rafraela. Não viemos brigar. Só conversar.

Zane inclinou o rosto, estreitando a visão.

— Anjos… me engana que eu gosto. Estão em dois, não é? Conversem entre si. — virou as costas, marchando em direção à cabana.

— Jesus disse que você reagiria assim, Zane.

Os passos do jovem travaram no chão de areia.

— O que disse?

Gabriel ergueu o queixo, apontando para a porta de madeira.

— Podemos entrar?

O rapaz encarou a entrada por um instante, depois virou-se para Gabriel, e por fim Rafraela, que observava em silêncio. Um leve assentir com a cabeça bastou. Seguiu até a porta e entrou.

Os anjos vieram logo atrás. Percorreram o ambiente com os olhos, curiosos. Sentaram-se nas cadeiras que Zane empurrou com o pé, ainda sem dizer uma palavra.

Gabriel se ajeitou no assento, recostou, e soltou com um sorriso enviesado:

— E aí, vai oferecer alguma coisa pra beliscar ou a casa é só decoração?

As expressões fechadas do rapaz e da parceira bastaram para desfazer seu tom descontraído.

— Brincadeira… eu não… deixa quieto. Zariel teria rido — murmurou, lançando um olhar à companheira, que ainda mantinha o semblante duro sobre o humano.

— Seu discípulo tem o mesmo senso infantil que você — respondeu ela, cruzando os braços sem desviar a atenção do rapaz.

— É, mas meu discípulo infantil é seu líder. — provocou de maneira amigável.

— Eu sei. Não precisa lembrar.

— Não fica assim, estou só—

— Já terminou? Era isso o que vieram dizer? — cortou Zane, a voz seca — Deus arranca de mim a mulher da minha vida e manda um “anjo” palhaço para papear?

Gabriel baixou o olhar. O peso das palavras caiu como pedra. Ele respirou fundo antes de falar:

— Tem razão… me desculpe.

— Me poupe das desculpas. Se Jesus mandou vocês, por que ele mesmo não apareceu!? — explodiu, o punho batendo com força na mesa, fazendo os copos tremerem.

O som ainda ecoava quando Rafraela se levantou rapidamente em resposta.

A nuvem pairando sobre seus ombros escureceu, e uma chuva fina começou a pingar sobre a mesa.

— É melhor tomar mais cuidado com as palavras! — sua voz saiu baixa, mas cortante. Seus olhos brilharam por um instante, frios como a noite. — Não porque Ele precise ser defendido... mas porque nós lembramos. — um de seus chakrams deslizou silencioso do punho até sua mão. Ela o fincou no centro da mesa. — Estávamos lá. Quando o sangue escorreu no carvalho. E mesmo com as asas abertas, assistimos quietos. Você entende o que é isso? Carregar quase dois milênios de silêncio na garganta?

Relâmpagos lampejaram em sua nuvem. O lago lá fora começou a se mover, como se estivesse vivo.

— Então, da próxima vez que pensar em gritar, pergunte a si mesmo: você está preparado para ser ouvido por quem escuta há muito mais tempo do que você consegue contar? 

Ela se inclinou levemente, os olhos fixos nos dele, e completou, num tom seco:

— Somos pacientes. Mas não pense que somos inofensivos.

Gabriel levantou-se devagar, segurando a companheira com firmeza, devolvendo-a à cadeira.

— Acho que ele já entendeu do que você é capaz, né? Não sei quem tem o pavio mais curto: você ou Migael...

Ela lançou um olhar pesado para ele, olhos queimando de raiva.

— Não tá mais aqui quem falou. — completou o anjo levantando as mãos 

Gabriel soltou um suspiro ao ver Zane se sentar. Observou-o por um instante, em silêncio. O semblante, mais sério agora, carregava algo além de autoridade — havia dor ali.

— Você está ferido, é visível. Não só no corpo. Não é fácil perder quem se ama. Nós também perdemos. Mais do que você imagina.

Ele fez uma pausa. Respirou fundo.

— Mas... não é hora de luto. Viemos fazer um pedido a você, uma oferta.

Zane soltou uma risada fria, sem humor.

— Um pedido? E onde vocês estão quando somos nós quem pedimos? Quando as pessoas são acorrentadas pela cor da pele? Quando crianças morrem de fome? Quando um pai mata o próprio filho?

Gabriel não reagiu de imediato. Olhou para ele como quem carrega peso nos ombros:

— Todos os dias… lutamos contra aqueles que um dia chamamos de irmãos, só para proteger vocês de mais maldade… ainda sim, sinto muito por decepcionarmos vocês. 

Um silêncio pesado caiu entre eles até ser quebrado por Gabriel:

— Se apagássemos tudo que é ruim… também sumiria o que nasce disso. As resistências. Os recomeços. O perdão. Mas apagar a dor… seria apagar o que ela ensinou.

— E as crianças que morrem? — retrucou — Não é lição. É crueldade.

— Sabemos disso… mas se mudarmos tudo à força… o pouco que ainda é belo perderia o valor. — ele olhou pela janela. — A dor vista lá de cima… não é só dor. É coragem. Gente comum... sofrendo, e mesmo assim, escolhendo amar.

Zane franziu a testa.

— Isso é fé?

— Isso é humanidade, e é por isso que são tão especiais. É por isso que ainda lutamos.

— E Deus? — insistiu. — Ele só assiste?

Gabriel se virou de volta.

— Ele sente. Chora com vocês. Mas amor forçado… não é amor. Justiça imposta… não é justiça.

Houve um silêncio. Zane não respondeu, mas o olhar dizia tudo. Gabriel adiantou:

— A árvore no jardim, porque Deus a permitiu como tentação? Sem escolha... não existe liberdade. Só obediência cega.  E onde não há confiança… o amor vira prisão. Deus permitiu a escolha. Não por crueldade. Mas porque confiou em vocês. E amar... é correr o risco de ser rejeitado.

O jovem soltou um riso amargo.

— E se rejeitarmos... Ele manda pro inferno, né?

O anjo suspirou.

— O inferno não é punição. É ausência. Se alguém passa a vida dizendo que não quer Deus... por que Ele forçaria Sua presença depois da morte? Não é vingança. É consequência.

Ele se inclinou um pouco em direção ao rapaz:

— E sabe o que mais? Tem gente que rejeita Deus... mas ama. Perdoa. Divide o pouco que tem. Esses estão mais perto do coração Dele… do que muitos que vivem com a Bíblia debaixo do braço.

Gabriel olhou para cima, como se pudesse ver através daquele telhado de madeira:

— Cristo nunca pediu religião. Pediu amor, compaixão… — baixou o olhar para o jovem. — E você... é reflexo disso. Abandonou a riqueza de sua família. Fez um lar pra quem não tinha. Não é perfeito. É violento. — fez uma pausa longa, a voz mais baixa. — Talvez não seja o mundo que Deus sonhou. Mas nasceu de um desejo justo: Liberdade. Igualdade.

Rafraela o interrompeu antes que ele continuasse.

— Já chega, mensageiro! — Seu olhar se voltou ao humano, firme. — Escute garoto! Nosso tempo é escasso, está interessado no que temos a lhe oferecer, ou não!?

Zane manteve os olhos no chão por alguns segundos. O silêncio parecia pesar mais que qualquer resposta. Quando levantou o rosto, sua voz saiu contida:

— Então... realmente existe uma batalha entre anjos e demônios?

— Todos os dias. — respondeu Gabriel, sem hesitar.

— E o que querem de mim?

— Por acaso você acredita em magia?

— Depois do que vi hoje, se me disser que o coelho da páscoa existe eu vou acreditar.

Gabriel sorriu, como se esperasse por essa resposta.

— Há séculos, alguns humanos foram escolhidos para agir por nós em terra. Operam nas sombras, sem reconhecimento, sem glória. Protetores. Alguns, com pouca ou nenhuma magia, são chamados de paladinos. Outros, que despertaram dons maiores, são conhecidos como templários. Todos escolhidos a dedo pelo próprio Jesus.

O rapaz estreitou os olhos, cético.

— E isso ainda existe?

— Até hoje. Essas linhagens foram mantidas em segredo, geração após geração. Mas os tempos mudaram. Demônios têm selado pactos com vocês humanos num ritmo crescente, concedendo magia também. Estão se infiltrando, preparando algo maior. Muitos têm escapado do inferno. Por isso decidimos: chega de anonimato. Templários e paladinos serão revelados. Queremos que o mundo tema fazer pactos. Que sintam o peso da escolha.

— Como... uma força policial?

— Em essência, sim. Cada um operando em seu território, protegendo os seus. Mas, mesmo juntos, não serão suficientes. Houve uma reunião no céu recentemente e… — encarou Rafraela, que retribuía com um olhar de quem não gostaria de entrar neste assunto — bom… enfim, concordamos que precisamos de algo novo, alguém fora dos moldes. E é por isso que estamos aqui.

— E o que exatamente os demônios estão tramando?

O anjo desviou o olhar por um instante. Quando voltou a falar, sua voz carregava frustração.

— A pedido de Deus, não posso te dizer. E acredite, eu queria. Mas Ele nos assegurou que somente assim você terá êxito. Descobrindo por si mesmo. Mas lhe garanto que muito breve isso lhe será revelado.

— Isso só complica tudo... — murmurou Zane. — E mesmo que eu aceite... como um humano comum vai enfrentar demônios?

Gabriel se aproximou um passo.

— Antes de responder isso, preciso saber: está disposto? Ninguém vai forçar nada. É sua escolha. Podemos ir embora e você finge que nada disso aconteceu. Ou... pode aceitar esse destino. Proteger os inocentes, enfrentar o que está nas sombras, garantir que pessoas vivam em paz... mesmo que jamais saibam o que você fez por elas. Sem reconhecimento. Sem recompensa.

Zane se levantou devagar. Cruzou a sala em silêncio e parou diante da janela onde Gabriel estivera momentos antes. O reflexo no vidro lhe devolveu um rosto confuso, cansado. Baixou os olhos. A mão inconscientemente foi até a corrente em seu pescoço, tocando a aliança pendurada ali.

— Eu... Posso mesmo fazer alguma diferença?

— Você será a diferença. — afirmou Gabriel.

O rapaz assentiu, quase como um sussurro.

— Então pode contar comigo.

Sem dizer uma palavra, Rafraela se levantou e foi até ele. Parou diante do jovem, seus olhos cintilando com algo entre solenidade e poder.

— Estenda as mãos.

Zane obedeceu, sem questionar.

Ela pegou cada mão com cuidado, mas firmeza. Começou pelos polegares inexistentes. Puxou suavemente, e dali brotou um dedo de um vermelho intenso, pulsante como brasa viva.

— Você carregará as chamas que ardem em nossos corações.

Seguiu para os indicadores. À medida que puxava, dedos violetas se formavam, irradiando uma leve aura mística.

— Terá o espírito do guerreiro que busca justiça, mesmo em meio à escuridão.

Pulou os dedos do meio e foi direto aos anelares. Dedos cinzentos surgiram, sólidos como aço.

— Será forte o bastante para suportar fardos e proteger os inocentes.

Dirigiu-se então aos mínimos. Ao puxá-los, dedos brancos se revelaram, suaves, quase etéreos.

— Trará paz aos que o cercam, como uma brisa depois da tempestade.

Por fim, voltou aos médios. Puxou devagar, revelando dedos da cor de sua pele, normais, humanos.

— Mas acima de tudo... nunca se esqueça de quem você é.

Zane olhava para as próprias mãos, pasmo, o peito apertado. Passava os dedos úmidos uns nos outros, sentindo cada movimento com espanto — como se sempre estivessem ali, apenas esperando para serem despertados.

— É estranho… fiquei tanto tempo sem dedos. — Seu olhar caiu sobre a corrente e a aliança em seu pescoço, agora tingidas por uma coloração escura. — O que você fez?

— Obsidiana. — ela respondeu. — Vai ser útil nas situações que estão por vir... e pelos dons que você recebeu.

— Dons? No plural?

Mas antes que pudesse insistir, os dois já se afastavam, caminhando em direção à porta com passos decididos.

— Opa, espera aí! Pra onde vocês vão? Me jogam a responsabilidade e vão embora?

— Sinto muito, mas ainda temos outros nomes na lista, garoto. Nosso prazo está bem apertado. — respondeu Gabriel, sem nem olhar para trás.

— E eu? Vou fazer o quê? Por onde começo?

O anjo parou com a mão sobre a maçaneta. Ficou em silêncio por alguns instantes, como escolhendo bem as palavras.

— Acho que não fará mal lhe contar… há outra forma de se conseguir magia — disse por fim. — Artefatos sagrados. Eles despertam o que há no coração de quem os encontra. Se houver egoísmo, raiva, ambição… tornam-se instrumentos de destruição. Chamamos de magia do caos. Mas se houver fé, esperança, justiça… são luz em forma de poder, como é o seu caso agora. Soubemos que na Europa os demônios estão atrás de alguns desses artefatos. Pode ser um bom começo.

Zane pigarrerou.

— Europa? Isso fica do outro lado do mundo! Como espera que eu chegue lá?

Gabriel lançou um olhar discreto para Rafraela que já estava do lado de fora.

Ela soltou um suspiro longo, já entendendo tudo, e revirou os olhos:

— Você e Zariel são iguaizinhos. — Fez uma pausa curta e em seguida estalou os dedos. — É melhor lembrar disso da próxima vez que disser que nunca te ajudei.

Naquele instante, no fundo do lago, a água começou a borbulhar intensamente, formando redemoinhos e bolhas que subiam à superfície. Um brilho esverdeado surgia nas profundezas, iluminando uma forma indefinida que lentamente se movia para cima.

Enquanto isso, Gabriel a seguiu até o lado de fora, mas parou antes de cruzar a linha entre a areia e a água. Virou-se para o jovem, que estava à porta, uma última vez, com a expressão grave.

— Ah, e uma coisa. Jesus pediu que eu lhe dissesse... tome cuidado com quem te chama de amigo.

Zane tentou responder, mas antes que a voz saísse, um par de asas se abriu nas costas dos dois. Com um bater firme, sumiram pelos céus, cortando o ar sobre o lago com um rastro de luz e água.

O silêncio que ficou parecia pesar mais do que a conversa inteira. Ele o rastro por longos segundos… depois, olhou novamente para as mãos. A água entre os dedos secando aos poucos.

Levantou a cabeça e viu, diante de si, uma criatura colossal rompendo a superfície.

— Caramba...

A água escorria do corpo imenso, que lançava sombras sobre o lago, enquanto o silêncio pesava no ar, carregado de expectativa.










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