Volume 1
Capítulo 24: Meu Último Sorriso
(Presente. 2 Anos depois)
— Arranca logo a cabeça! — berrou Ducare ao perceber o olhar de Kant em sua direção.
“Tem coisa errada, não é para mim que ele está olhando…”
Ele então se virou e notou Tyler que avançava lentamente em seu rumo.
— O que está fazendo!? Os demônios vão alcançar a garota!
Sem pensar muito, disparou em direção a ela.
Mas Tyler, ao cruzar com o esqueleto, girou o corpo e preparou o braço. No instante em que ficaram lado a lado, acertou um golpe brutal que explodiu Ducare, espalhando fragmentos de costelas e estilhaços de ossos pelo ar.
Ducare começou a tatear suas costelas, ainda com a atenção fixa na jovem.
— O que… por que você… — murmurou enquanto alguns de seus ossos caiam em pedaços na terra.
Zane, ao ouvir o estrondo, virou-se. Viu o velho amigo com o braço enterrado no peito do esqueleto e congelou. Sua sombra retornou ao corpo, devolvendo à pele a cor normal.
Ficou parado, incapaz de entender o que presenciava.
Severin não hesitou. Agarrou os dois braços do rapaz e encostou as lâminas na base de sua nuca.
Tyler retirou seu braço do corpo do ceifeiro, deixando-o cair em seco no chão.
— DUCARE! — rugiu Kant, arrancando a foice das mãos de Severin e correndo em direção a Tyler. — O que fez, seu maldito!?
Draevoth no mesmo momento passou a mão na lâmina em seu abdômen e conseguiu pegar a arma, logo percebeu, o que quer que havia acontecido com ele, o efeito havia terminado.
O demônio investiu sem dar espaço. As garras alcançaram o pescoço do Cavaleiro, distraído, derrubando-o com força. Prendeu-lhe as mãos contra o chão com múltiplos braços.
— Melhor ficar quieto agora! Isso já está demorando mais do que eu pretendia.
Inúmeros demônios alcançaram Marie. Agarraram-na com força, os dentes enormes e apodrecidos roçando perto de seu rosto. Ela chorava, gritos presos na garganta. Não havia ninguém ali — nada entre ela e aquelas criaturas.
Tyler caminhou em silêncio até Zane que apenas o encarava, incapaz de formar palavras. Pararam frente a frente, a tensão se acumulando no ar.
Zane respirou fundo, a voz trêmula ao romper o silêncio:
— Que merda você está fazendo?
Fitou-o por alguns segundos, procurando qualquer traço de remorso, raiva ou desprezo. Não encontrou nada. Nem mesmo emoção.
— Do que está falando? Fiz algo errado? — a voz de Tyler soou calma demais.
— Eles pegaram a mulher! — rosnou. — Vou perguntar de novo: o que está fazendo?
— Não lembra dos nossos ideais? Da nossa tão sonhada liberdade?
— Que liberdade? De que porra você tá falando!? — o tom de Zane se tornou mais grave.
— Aquela que sempre sonhamos, parceiro. Este é o nosso lugar... ao lado deles.
O monge cuspiu no chão, o olhar afiado.
— Ao lado… deles? Espero que não seja o que estou pensando.
Tyler desviou a atenção, o rosto endurecido, mas a sombra de desapontamento ainda era visível.
— Como consegue… depois de tudo. Tanta merda que precisei engolir pra trazer você de volta. E continua o mesmo. Não muda.
— “Precisei engolir”? — Zane repetiu, quase num sussurro, mas com veneno na voz. — O que acha que os anjos que lhe entregaram essa magia pensam agora?
Um sorriso breve, quase cínico, atravessou o rosto de Tyler.
— Ah… os anjos… Acho que quem nos deu essas habilidades não joga no mesmo time.
A resposta fez Zane estreitar os olhos, tentando decifrar o que aquilo significava.
— Os anjos que te deram essas habilidades queriam você como cachorrinho deles, Zane… obedecendo ordens. Os que me visitaram queriam me dar poder, respeito, dignidade. Vê a diferença? — Passou a mão pelo rosto, afastando o cansaço, antes de continuar. — A humanidade é um tumor. Pobreza, destruição... Sem poder, não há respeito, nem dignidade. Mas nós conseguimos. Respeito, força. E você jogou tudo fora… por aquela mulher.
Tyler deu um passo à frente, a voz carregando frustração.
— Mal aparecia no clube. Quando aparecia, queria mudar regras. Eu tive que agir.
Os olhos dele escureceram.
— Eu sinto, de verdade, por ter tirado ela de você… mas você estava amolecendo. Entende?
O monge o encarou fixamente, analisando cada sílaba. O mundo pareceu silenciar.
— O que você disse?
— Eu sei que parece ruim, mas você tem que—
Zane explodiu, avançando contra ele. Severin o segurou, os braços se fechando ao redor como correntes vivas.
— É bom estar blefando, seu desgraçado!
Tyler respondeu no mesmo tom, o rosto agora distorcido por raiva genuína.
— Não entende o porquê de eu ter feito isso!? Você mudou! Jogou tudo que criamos no lixo! Você sempre teve tudo — família rica, poder, respeito. E nem isso te satisfez! Criamos um lugar livre para todos. E adivinha? Você quis mudar! Você não sabe o que quer da merda da sua vida!
Zane forçava contra os braços de Severin, o corpo tremendo de fúria.
— Cala a boca! Eu vou te matar, Tyler! Filho da puta mentiroso! Vou te mostrar exatamente o que pretendo com a minha vida—
Severin fechou outra mão sobre a boca do prisioneiro, abafando o rugido que se debatia para sair.
— Te chamam de monge, não é? — o quarto braço demoníaco se ergueu, puxando-lhe o cabelo para trás. — Vamos oficializar isso.
As lâminas cruzaram no ar num golpe seco, cortando as mechas que caíram aos pés do monge..
Tyler se inclinou num sussurro frio.
— Sinto muito, irmão. Mas você não me deixou escolha… vai aprender na marra.
Virou-se para Draevoth e acenou levemente. O demônio abriu um sorriso largo, erguendo o rosto de Kant levemente pelo pescoço. Voltou-se para os demônios que arrastavam Marie, mas parou ao notar outra coisa:
— Espera… — forçou a cabeça do rapaz a virar novamente. — Lá no fundo, entre as casas. Está vendo? — apontou com um dos braços, soltando uma risada estridente. Entre as frestas, policiais se escondiam, os olhos arregalados. — E eu me perguntando onde estavam… se borrando de medo. Ah, humanos patéticos. Basta enfrentar algo que não entendem, e já se contorcem feito vermes. — inspirou devagar, como saboreando o ar. — O medo tem um cheiro delicioso. Ninguém pode salvá-los…
Voltou o rosto para Marie, que chegava aos gritos, presa nos braços ásperos das criaturas.
Kant, ainda sim, percebeu pelo canto da sua visão um detalhe no chão.
A mão esquelética de Ducare parecia ter… se mexido? Juntamente a uma moeda que descansava em sua mão.
Isso o fez arquear a sobrancelha.
Os olhos dele estreitaram tentando entender, até que a moeda rapidamente girou no sentido anti-horário entre os dedos.
Em um instante, todos os ossos espalhados do ceifeiro começaram a se recompor, deslizando e se encaixando de volta como se o tempo recuasse até antes da explosão.
Ducare ficou inteiro de novo, rangendo os dentes. Sem hesitar, lançou uma moeda contra os demônios que carregavam a jovem. Um único impacto — e todos caíram mortos no mesmo segundo.
A garota caiu em seco no chão.
— O quê!? — Draevoth rugiu, erguendo os braços para atacar.
— Não se espanta não, o dos bracinhos! — retrucou Ducare, preparando outra moeda. — Eu disse que era osso duro de roer. E agora eu voltei meio puto.
O demônio congelou o ataque. Em resposta seu oponente também baixou a mão ao ouvir gritos atrás de si. Ao virar, viu as freiras e o padre sendo usados de refém com lâminas em seus pescoços por vários lacaios demoníacos.
— Por favor, Ceifeiro — disse Draevoth com um sorriso frio — vamos minimizar as perdas por hoje. Abaixe a moeda.
Ducare baixou a cabeça, os olhos vazios presos no chão. Levantou o olhar apenas para encontrar o de Kant, que balançava a cabeça em negação.
O ceifeiro soltou um suspiro seco, baixando lentamente a moeda. Apenas observou o caos se espalhar — gritos, choro, o som de passos e corpos correndo em todas as direções. Tudo ecoava na sua cabeça oca como um tambor abafado enquanto ele levantava as mãos em rendição.
— Filhos da puta… — murmurou.
— Isso… — sussurou Draevoth em resposta, saboreando o momento.
Um de seus braços se alongou, rápido como chicote, agarrando Marie e puxando-a para si. Ele a segurou firme, o olhar percorrendo-a de cima a baixo como um predador que examina a presa.
— Você não faz ideia do poder que carrega, humana… — a voz grave arranhava o ar. — O sangue de uma virgem de trinta anos… — tremeu, estremecendo como quem sente prazer, e soltou uma risada baixa e suja. — Olha isso… me dá calafrios.
Virou-se para o gigante caído logo atrás.
— Você condenou os irmãos dele a milênios no Hades, Kant. Nada mais justo ele te condenar à culpa pela morte dessa mulher. Além do mais, é só mais uma culpa para sua conta, não é?
O gigante arfava de dor, cada respiração profunda e áspera, mas ao ver a jovem sendo levada até si, um sorriso largo abriu-se em seu rosto desfigurado. Seu focinho farejando loucamente o cheiro da presa.
— Jovem mestre… é uma honra. Agradeço pelo presente.
— Não me agradeça, meu amigo. — Draevoth abaixou-se, encostando a testa à do gigante num gesto quase ritualístico.
Kant tentava se desvencilhar ao ver Marie tão próxima, os olhos dela vermelhos, marejados pelo pânico.
— Kant! — a voz dela quebrou entre soluços. — Não tente nada!
Ele travou, confuso, sem entender.
— Se você continuar… — lágrimas desciam em rios pelo rosto dela. — Eles vão matar as pessoas que eu amo. Por favor… não deixe isso acontecer.
O Cavaleiro virou-se.
Louis e as freiras estavam de joelhos, implorando pela vida de Marie.
Quando olhou de volta, ela já era erguida sobre a boca monstruosa da criatura, pendurada como um animal prestes a ser abatido.
Os olhos de Marie buscaram o padre. Lágrimas quentes se acumularam, sua respiração falhando.
Mas um leve sorriso no rosto.
— Obrigada… por tudo… por me amarem… por cuidarem de mim… Eu… amo vocês!
“Anna… me perdoa… mas acho que nunca mais vamos nos reencontrar, minha irmã.”
O monstro ergueu o braço, fechando a garra ao redor dela. Num movimento lento, quase deliberado, as lâminas ósseas rasgaram a carne de seu pescoço. O som úmido e abafado ecoou. O sangue jorrou em fios grossos, pingando sobre a boca aberta da criatura.
Marie ofegou, tentando respirar, mas o líquido vermelho encheu sua garganta, queimando cada vez mais.
Tentou gritar, mas apenas um ruído sufocado escapou.
Sua visão tornou a Kant uma última vez, implorando sem voz.
O corpo começou a tremer, as mãos se abriram, e o brilho nos olhos se apagou lentamente, levando junto qualquer resquício de esperança.
— Nããão! — o grito de Kant partiu como uma lâmina pelo ar.
Ele estendeu a mão em desespero, como se, por um milagre, pudesse alcançá-la. Mas o único toque que restou foi o peso de seu cargo logo à sua frente.
Ao longe, o padre e as freiras romperam em gritos, tentando se soltar, mas os demônios os calaram encostando as lâminas frias no pescoço de cada um. Os punhos tremeram, não por esforço, mas pelo prazer sádico da ameaça.
Risos ecoaram por toda parte. Gargalhadas agudas, roucas, algumas quase animalescas. Demônios batiam palmas, outros apontavam para o Cavaleiro caído, imitando seu gesto desesperado, estendendo as mãos num deboche cruel. Um deles simulou um choro, outro fingiu tropeçar e cair, arrancando risos ainda mais altos.
Kant fechou os olhos com força, umedecendo sua vista, segurando o grito dentro de si.
— Seu… desgraçado… — sussurrou, tentando se erguer.
Draevoth o empurrou de volta, prendendo-o no chão.
— O último pedido dela foi para que você não fizesse nada. Respeite a morte dela. — A voz carregava desprezo. — Patético… todos vocês humanos. Você principalmente. Total desonra ao poder que lhe foi concedido.
A palma dele afundou mais no crânio de Kant, e um frio pútrido começou a rastejar pela cabeça do Cavaleiro, como se o necrosasse por dentro.
Atrás, o gigante se ergueu. O olho perdido e a perna mutilada se recompunham em carne borbulhante, pulsando como se fossem gestadas naquele instante.
Ele começou a crescer.
Cada centímetro novo rasgava sua pele, abrindo fendas de onde o sangue fervente escorria. Os pés rachavam o solo, as mãos apertavam o corpo sem vida de Marie como um troféu.
— Eu… estou… sentindo… — a voz do monstro tremia de êxtase. — TANTO poder!
Os olhos acenderam em vermelho vivo, a respiração tornou-se ofegante, insana.
— Eu sou invencível! — rugiu para a multidão da feira, onde pessoas corriam aos prantos, tropeçando umas nas outras, implorando por abrigo.
Draevoth ergueu o queixo de Kant, forçando-o a encarar.
— Agora, assista mais essas almas sendo despedaçadas. — Com um gesto simples, ergueu a mão.
O gigante investiu com passos que faziam a terra tremer, seguido por uma horda demoníaca que se lançava faminta contra os vivos, seus gritos ecoando como prenúncio da carnificina.
Mas antes que pudessem alcançar qualquer pessoa.
O céu se abriu.
Um clarão branco e amarelado desceu como um raio, atingindo o gigante no peito; o impacto o lançou contra o chão, abrindo uma cratera que rachou o solo ao redor.
O ar incendiou-se no mesmo instante, e o calor atingiu os que estavam em terra como um soco de fogo no rosto, queimando apenas a pele exposta dos demônios. O som veio logo depois: um estrondo limpo, cortante, como um laser disparado perto demais.
O feixe se dissipou lentamente, deixando no ar um calor sufocante.
Da fumaça espessa, uma silhueta emergiu. Ao seu redor, dois leques incandescentes se abriram, espalhando faíscas como brasas vivas. Cada passo tornava o ar mais pesado, como se o mundo se curvasse diante da presença que chegava.
Assim que o manto de fumaça e calor se dissipou, revelou-se um homem de pele morena, cabelos em longos dreads que mesclavam tons de vermelho e amarelo, como fios arrancados do próprio sol.
Ao redor de seu corpo, uma espada flamejante girava sozinha, desenhando círculos de luz.
Os leques se revelaram asas, não eram de penas, mas de fogo, abertas como véus solares, soltando ejeções de massa coronal.
Símbolos em brasa serpenteavam por seus braços, movendo-se como se respirassem. A cada giro de cabeça, os brincos dourados tilintavam com um som leve, quase abafado pelo rugir das chamas.
Seu olho esquerdo permanecia fechado sob uma cicatriz profunda; o direito, continha um brilho carmesim, fixou-se diretamente em Kant.
O chão ardia sob seus pés, e cada marca deixada queimava como ferro recém-saído da forja.
— M-meu… mestre… — arfou o gigante, ainda no fundo da cratera, agarrando-se a um resquício de vida.
Nenhuma resposta.
Onde Draevoth, Severin, Tyler e os demais demônios haviam estado, restava apenas poeira suspensa no ar, rodopiando como se fugisse de algo.
A luz que caíra havia levado com ela não só o som, mas também qualquer sinal deles. O silêncio deixado para trás dizia mais que palavras: reconheciam quem havia chegado.
A espada que orbitava o ser avançou num corte rápido, mergulhando no buraco. Um estalo seco ecoou, restando apenas silêncio no fundo.
Paladinos surgiram de todos os lados, armaduras reluzindo sob o calor. Entre eles, o Templário Aleric.
A presença flamejante se aproximou do Cavaleiro, ajoelhou-se sobre um joelho. O olhar dele alternava entre Kant e Zane, pesado como julgamento.
— Eu sabia que ia terminar assim. — A voz soou firme, carregada de reprovação. — Deus confiou em vocês… e agora eu preciso intervir. — Soltou um clique de língua, em puro desdém. — Provaram que eu estava certo o tempo todo!
Sua espada retornou à órbita trazendo o corpo de Marie e deixando-a sobre seus braços.
— Esta pobre alma pagou o preço do fracasso de vocês…
Kant ergueu o olhar, a respiração presa pela dor.
— Quem… é você? — a voz saiu como um sopro.
Um canto de sorriso ergueu-se no rosto do ser, mas seus olhos não suavizaram.
— A pronúncia do meu nome verdadeiro queimaria sua língua, humano. — inclinou a cabeça, e os brincos balançaram no reflexo das chamas. — Mas pode me chamar… de Migael.
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