Volume 1
Capítulo 22: Passado de Zane. Parte 5: O Dia em que Minha Luz se Foi
(2 anos atrás)
Lucy deu um passo à frente, o olhar firme, quase desafiador.
— O quê? Por que tá mandando meu amigo embora?
O pastor franziu a testa, cruzando os braços. A voz saiu mais baixa, carregada de incredulidade.
— Amigo? Esse garoto é o mesmo que você mencionou como um dos donos daquele clube, não é?
Ela hesitou, coçou o braço com nervosismo, evitando o olhar do pai.
— É... mas...
— Se fosse só isso, ainda dava pra relevar. Mas esse nome... Zane... — os olhos do pastor estreitaram, como se cada sílaba reacendesse algo antigo — você é filho dos Whitmore, não é?
O rapaz baixou a cabeça devagar, o suspiro vindo pesado.
— Sou.
Lucy, sem pensar, se colocou entre os dois. O corpo inteiro pronto pra segurar qualquer palavra que viesse como ataque.
— Já deu, pai! Aqui não é lugar para julgamento!
Seu pai não se mexeu. O olhar permaneceu cravado no jovem, como se procurasse algo escondido atrás dos olhos dele. Até que Zane tocou de leve o ombro de Lucy.
— Relaxa, tá tudo bem.
— Fica quieto! — ela se virou bruscamente para ele, os olhos faiscando. — Não tô falando com você!
O rapaz recuou um passo, surpreso com a reação.
— Que isso... — murmurou, confuso.
— Pai — a voz dela tremeu por um instante, mas não recuou — eu conversei com gente que frequenta o clube. O Zane não é como a família dele. Ele libertou um homem. E a família toda. Da escravidão.
O pastor piscou devagar, desviando o olhar por um breve instante. Depois encarou o rapaz com mais atenção.
— Isso é verdade? Tudo isso?!
— Sim, senhor. Saí de casa ainda jovem Eu não concordo com as atitudes da minha família.
O pastor ficou em silêncio por alguns segundos, observando-o de cima a baixo. O olhar não carregava mais julgamento, apenas uma avaliação silenciosa. Por fim, suspirou, passando a mão pelo rosto.
— E aí, garoto... o que achou do culto?
Zane hesitou por um segundo antes de responder.
— Pra ser sincero, não era o que eu esperava.
O pastor ergue uma sobrancelha, curioso.
— E isso é bom?
— É sim, senhor.
— Entendi. — respondeu apenas, observando os últimos fiéis que deixavam a igreja. — Seu clube fica longe daqui. E, se realmente fez o que minha filha disse, quero que aceite pelo menos um jantar conosco.
— O senhor não me deve nada.
— Não devo mesmo. — retrucou seco. — Mas minha filha tá feliz. E isso já basta. Então não aceito “não” como resposta.
Zane coçou a nuca, sem jeito, mas acabou assentindo.
E assim, os três deixaram o templo em direção à casa da família.
Seguiram por uma rua de paralelepípedos, até pararam diante de uma construção grande, elegante, com um jardim bem cuidado e janelas amplas que refletiam a luz do fim da tarde.
O jovem piscou algumas vezes, surpreso.
Olhou para Lucy com um meio sorriso de canto, a testa levemente franzida.
— Isso tudo é de vocês?
Mas antes que ela respondesse, a porta se abriu. Um homem alto, de roupas simples, desceu os degraus apressado e abraçou o pastor com naturalidade, entregando-lhe uma chave pequena.
Sem muita conversa, o pastor agradeceu com um gesto, e os três voltaram a caminhar, dessa vez, por mais alguns quilômetros.
— Pensei que morassem ali... — Zane cochichou para Lucy, curioso.
— Não. — ela riu baixo. — Aqui mora um amigo de infância do meu pai. Ele deixa a gente morar em outra casa dele sem pagar nada, contanto que a gente cuide do lugar. E a chave... — olhou para frente e aumentou o tom, em provocação — ...é porque meu pai, mais uma vez, perdeu a chave de casa!
À frente, o pastor bufou, mas não pode contar uma risada seca.
Minutos depois, chegaram a uma casa modesta, com uma fachada simples. Havia uma única janela iluminada e uma porta de madeira com pintura gasta.
Assim que se aproximaram, uma mulher negra surgiu na entrada. Ela envolveu o pastor num beijo carinhoso, depois se afastou suavemente para abraçar Lucy com ternura, e em seguida virou-se para Zane, cumprimentando-o com um aperto de mão firme e acolhedor.
O rapaz olhou algumas vezes para a jovem e sua mãe:
“Agora faz mais sentido.”
A partir daquele dia, Zane começou a voltar sempre. E nunca parou. Cada visita se tornava mais frequente, até que ele passou a não perder um culto sequer. Sentava sempre ao lado da amiga, atento às palavras, mesmo quando o cansaço pesava.
Ambos iam juntos ao hospital quase todos os dias, checar como Jeff estava.
E, quando a noite caía e o caminho de volta parecia longo demais, ele dormia na casa da jovem, no sofá da sala, coberto com um lençol emprestado.
Com o tempo, já não parecia mais visita. Já era parte da casa. Parte deles.
Em uma noite de culto, o pastor pregou sobre um versículo que grudou na mente de Zane, feito espinho:
“Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno.”
A frase ecoou por dias dentro de si.
Enquanto isso:
Lucy, como sempre, implicava com o vício que ele relutava em largar. Ele fugia das discussões, ria sem graça, mudava de assunto. Mas por dentro, a palavra do pai dela martelava mais forte do que qualquer bronca.
Então, certo dia, ele apareceu de surpresa na casa da família. Não bateu. Apenas abriu o portão devagar, entrou no quintal com passos silenciosos e ficou ali, parado diante da porta.
— Lucy! — gritou, a voz trêmula entre urgência e algo que parecia... medo.
A jovem surgiu segundos depois, os olhos semicerrados de sono, coçando o rosto com a manga da blusa.
— Amor...? Por que não entrou direto? Sabe que horas são? — bocejou, distraída, pegando um relógio de bolso na mesa da entrada. O objeto escapou entre seus dedos assim que sua atenção voltou para as mãos do rapaz.
— Zane… — a voz saiu falha, sufocada. — Suas mãos... por que estão enfaixadas assim? E isso… isso é sangue?
Ele manteve o olhar fixo nela, os ombros rígidos. Respirou fundo, tentando controlar o tremor que subia pela garganta.
— Lembra quando você me pediu pra parar de beber?
Ela assentiu, ainda em choque, o rosto cada vez mais pálido.
— E daquele culto... um tempo atrás. Seu pai falou sobre Mateus cinco, vinte e nove... — os olhos de Zane brilharam com algo entre dor e ironia. — “Se teu olho te fizer tropeçar...” — repetiu, como se o versículo ecoasse dentro dele. — Pois é.
Lucy levantou o rosto devagar, encarando-o direto. O silêncio entre os dois parecia pesar toneladas.
Zane então mordeu a ponta da atadura da mão direita e puxou com força. A faixa caiu no chão, tingida de vermelho. Onde antes havia dedos, agora restava apenas a palma mutilada, crua, latejante.
A jovem ficou imóvel por um segundo. Os olhos dela se arregalaram, o peito arfando sem som. Tentou dizer algo, mas as palavras não vieram.
Então desabou para trás, caindo com um baque surdo no chão da casa.
O rapaz se lançou à frente, ajoelhando ao lado dela.
— Lucy!? — chamou, sacudindo de leve o ombro dela com a mão ferida, sem se importar com a dor.
O sangue escorria pelo chão, misturando-se à cena silenciosa. Ele olhou ao redor, perdido, como se o mundo estivesse desabando ali mesmo, dentro daquela sala simples, sob a luz amarelada da lamparina.
— Que barulho foi esse!? — a voz do pastor ecoou pelo corredor, apressada, cheia de alarme. Ele surgiu logo depois, os pés descalços batendo no chão de madeira. — Zane? O que está fazendo aqui?
Sua atenção desceu para a filha caída ao chão.
— Lucy?! — correu até ela, ajoelhando-se ao lado com as mãos trêmulas. — O que aconteceu com ela? Por que... por que ela está coberta de sangue?
Zane, ainda ajoelhado, curvou os lábios num sorriso torto, dolorido enquanto estendia o braço em direção ao homem.
— Calma, sogrão... — a voz saiu rouca, entre o humor e o sofrimento. — O sangue é meu. Ela só se assustou um pouco.
O pastor agarrou a mão do rapaz por reflexo, mas o gesto travou no meio. Seus olhos estalaram ao sentir o contato direto com a carne quente e úmida.
— O que... — gaguejou, a boca seca, encarando a mão mutilada. — Sua... sua mão… seus dedos…
Um passo rápido ecoou atrás deles.
— Que gritaria é essa logo cedo? — a mãe de Lucy apareceu no corredor, enrolada num xale, os cabelos soltos caindo nos ombros.
O olhar dela cruzou a cena num instante: a filha caída, o marido ajoelhado no chão, Zane coberto de sangue, a mão ferida exposta.
Ela levou a mão à boca. O corpo vacilou, os olhos viraram, e desabou para trás, inconsciente.
O pastor mal se mexeu, ainda paralisado. O rosto suava, pálido, sem saber se socorria a esposa, a filha ou o próprio genro.
Zane soltou um suspiro profundo, como se o corpo inteiro cansasse de uma vez. O sorriso, até então teimoso no canto da boca, enfim cedeu lugar à exaustão.
— Com licença, sogro... — murmurou, piscando devagar. — Tá latejando mais que pregação em dia quente. Mas, ó... cumpri Mateus cinco, vinte e nove direitinho.
— Mateus...? Você está falando da Bíblia!? Não era literal, garoto! É uma metáfora! Ninguém mandou arrancar os próprios dedos!
O jovem ficou parado por alguns segundos, estudando o rosto do homem.
— Ah... agora que você falou, até faz sentido...
O sangue pingava em silêncio, escorrendo pela ponta do cotovelo, formando pequenas gotas vermelhas no chão de madeira enquanto ele se levantava. Ele piscou mais uma vez, levantando a visão para o teto.
— Tô... indo ali lavar a mão rapidinho... já volto.
Assim que deu um passo tombou para frente com um baque seco, braços abertos como quem se rende ao próprio drama.
O pastor se encolheu num sobressalto, observando a sua volta sem saber onde mirar.
— Meu Deus… — Levantou as mãos devagar, como se estivesse no meio de um ritual que desconhecia. — Porque não me deu um genro normal?
Os meses se passaram, e o acidente de Zane, que antes parecia trágico, virou motivo de risadas e piadas entre a família e amigos — com aquela mistura de afeto e zoação típica de quem realmente ama. A dor deu lugar a histórias que arrancavam sorrisos, transformando cicatrizes em lembranças quase leves.
Então, enfim, chegou o dia mais importante para o jovem casal.
O sorriso de ambos, largo e radiante, iluminavam até os cantos mais empoeirados da igreja.
— Zane Whitmore — anunciou o pastor, voz firme com fundo de emoção contida. — Você aceita Lucy Shepherd como sua esposa?
— Com certeza! — respondeu sem hesitar, peito estufado.
— Lucy Shepherd. Você aceita Zane Whitmore como seu esposo?
Ela segurou as mãos dele entre as suas, olhos brilhando com um sorriso que parecia pintar o mundo.
— Aceito!
Lucy, com as mãos trêmulas, passou a aliança no próprio dedo e depois pegou a de Zane, prendendo-a com cuidado na correntinha que ele carregava no pescoço — um talismã que agora tinha um novo significado.
— Então, diante de Deus, da congregação... e daquela senhora ali que não para de chorar — ele apontou discretamente para a mãe de Lucy, soluçando sob um lenço — eu os declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva.
Zane puxou Lucy pela cintura e a beijou como se o mundo tivesse parado só para eles. Os poucos convidados aplaudiram, entre sorrisos e olhos marejados.
Depois do beijo, Zane se virou para o pastor, agora seu sogro oficialmente. Antes que abrisse a boca, o homem o puxou pelo colarinho, num gesto meio carinhoso, meio intimidador.
— Escuta, garoto — disse com um sorriso que não chegava aos olhos — faz minha filha infeliz e eu termino de decepar o resto da sua mão. Entendido?
Zane engoliu em seco, mas respondeu sem perder o sorriso.
— Pode deixar.
Dois tapinhas no rosto selaram o aviso — firmes demais para serem apenas afeto.
(1 ano depois — 1858)
Um ano passou. Zane e Lucy agora moravam em sua própria casa. A cabana de madeira envelhecida repousava à beira do Lago Pontchartrain, cercada por altos ciprestes pendurados de musgo espanhol que dançavam lentamente na brisa leve do entardecer. Pequenas janelas com cortinas de renda desbotadas filtravam a luz dourada, espalhando sombras suaves pelo interior simples.
Na varanda, o lampião a óleo lançava uma luz trêmula e acolhedora, enquanto uma fogueira fumegava preguiçosa em frente. Galinhas ciscavam tranquilas entre as raízes expostas e a terra úmida, em meio ao aroma sutil de madeira queimada e vegetação. O som calmo do lago misturava-se ao canto distante dos grilos e ao farfalhar das folhas, embalando aquele refúgio singelo e pacífico.
Mas em um dia nublado, tudo mudou. Ao voltar para casa, encontrou Lucy caída, imóvel no chão. O mundo desmoronou. A mulher que transformara sua vida, seu maior amor, silenciada para sempre.
Depois da morte dela, Zane cessou todo contato com o mundo. Fechou-se em si mesmo, desaparecendo por completo.
Nem mesmo seus sogros conseguiam alcançá-lo; quando vinham visitá-lo, encontravam a casa vazia, ou ele, em silêncio absoluto, fingindo não estar ali.
Mas, mesmo assim, o pastor sabia — sentia — que Zane estava presente, ouvindo cada passo, cada palavra dita do lado de fora.
O tempo passou, e ele ficou sozinho naquela cabana que, de repente, parecia enorme demais.
Até que.
Numa madrugada, um estrondo lá fora o despertou, coração acelerado, olhos atentos à escuridão. Rapidamente amarrou uma faca na mão com uma corda, segurando firme com os dentes.
Ao sair, encarou a água calma sob o céu estrelado. Duas figuras surgiram, deslizando em sua direção como sombras que o lago não conseguia esconder.
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