Cavaleiros do Fim Brasileira

Autor(a): zXAtreusXz


Volume 1

Capítulo 21: Passado de Zane. Parte 4: Silêncio em Terra, Resposta do Céu

Zane desmontou do cavalo ao lado da jovem e atravessou a rua de terra com os braços trêmulos. Os olhos mantinham-se fixos à frente, mas o coração ameaçava despencar.

O garoto desfigurado pesava como chumbo em seu colo, o rosto irreconhecível, coberto de crostas secas, inchaços e feridas profundas onde a pele cedeu à brutalidade.

O letreiro de madeira balançava com o vento em frente ao edifício: “Hospital de Caridade de New Orleans”. Um sino de latão pendia na entrada. O rapaz o golpeou com o ombro, já que as mãos seguiam presas ao corpo ferido.

Uma mulher surgiu à porta. Avental manchado, marcas profundas de cansaço lhe pesavam no semblante. Mas assim que os viu, seu rosto endureceu

— Meu Deus! Rápido, tragam a maca! — gritou, já recuando.

Duas enfermeiras apareceram. Uma delas carregava uma tábua com lençóis puídos por cima.

Zane se ajoelhou, colocando o garoto com cuidado sobre a superfície improvisada. Uma das mulheres murmurou, num tom quase resignado:

— Não sei se o Dr. Williams pode fazer algo… ele está tão...

— Ele vai sobreviver — interrompeu Zane, seco, a voz rouca de medo.

Lá dentro, o ar úmido e salgado ardia nas narinas, com um toque ácido e metálico que impregnava o lugar.

Seguiram por um longo corredor até um quarto dividido por cortinas, com camas estreitas de madeira e um silêncio pesado no ar. Levaram o menino até um canto onde lamparinas a gás lançavam uma luz alaranjada sobre os lençóis gastos.

O médico entrou. Meia-idade, bigode espesso, mangas arregaçadas, luvas manchadas de um atendimento anterior. Estacou ao ver o estado do garoto.

— O que aconteceu?

— Ele precisa de ajuda. Agora.

Dr. Williams se aproximou, analisando o rosto machucado. Tocou-o com cuidado, e logo em seguida encarou uma das enfermeiras.

— Lave os ferimentos com álcool e vinagre. Prepare o éter. Vamos precisar costurar... muito.

— Ele não acordou. E está respirando, mas... quase nada.

— Melhor assim, ou ele vai sentir uma dor como nenhuma outra. — murmurou o médico, pegando uma agulha grossa e linha escura. — Ossos quebrados. Mandíbula, talvez a maçã do rosto. Não temos recursos pra lidar com fraturas dessas. Vamos conter a hemorragia, evitar infecção... torcer pra ele aguentar.

Mas algo o fez parar. 

— Enfermeira, você disse que a respiração está fraca?

Rapidamente ajoelhou-se junto à maca, aproximando o rosto do menino. Colocou o dorso da mão sobre o peito, sentindo um movimento quase imperceptível. Pressionou os dedos no pulso, buscando um leve pulsar que não veio. Inspirou fundo, tentando captar o som da respiração. Só ouviu um sussurro distante e irregular.

Cerrou a mandíbula, direcionando a atenção para a enfermeira, que já segurava uma bacia com água e uma toalha.

— Vamos reanimá-lo. Depressa.

As mãos começaram a agir. Movimentos automáticos, vozes secas de urgência.

Zane continuava imóvel, poeira e sangue grudados na pele, seus olhos fixos no corpo à sua frente.

Ao lado, a jovem se ajoelhou. Cabeça baixa, dedos entrelaçados, sussurros quase inaudíveis escapando dos lábios.

— Por favor... Espírito Santo...

E então, para Zane, tudo se calou.

A fala do médico, os comandos, o tilintar dos instrumentos... abafados, como se tivesse mergulhado. Apenas os lábios da moça se moviam, tremendo, implorando.

— Nada ainda Doutor! Não sei quanto tempo ainda podemos insistir. — uma das enfermeiras gritou.

O quarto mergulhou num silêncio espesso.

Dr. Williams deu um passo atrás, os ombros pesados. Por um instante, três longos minutos se passaram.

Zane virou-se para a jovem.

Ela se aproximou da maca, ainda ajoelhada. Levou a mão com delicadeza até o lençol, pousando os dedos sobre o peito do menino. E então, algo mudou.

Um sopro.

Fraco.

Mas real.

O peito subiu, tímido. Um som rouco escapou da garganta ressecada. O menino tossiu, gemendo, buscando o ar como quem volta da morte. O médico arregalou os olhos.

— Temos batimento! — exclamou, já voltando à ação.

As enfermeiras se entreolharam, mas logo retomaram os movimentos. A urgência renasceu.

Zane permaneceu onde estava. Ainda fixo na jovem, a mão ainda repousando sobre o peito do garoto, o rosto molhado de lágrimas.

A enfermeira começou a limpar os ferimentos. O menino se contorceu, o rosto contraído, e um gemido escapou por entre os lábios partidos.

Uma das enfermeiras ajudou a jovem a se erguer.

— Lucy, querida, desculpe, mas preciso pedir que saiam da sala agora.

Ela apenas assentiu e puxou Zane, que lançava um olhar inquieto para dentro do quarto enquanto era direcionado.

— O que foi? — perguntou Lucy, percebendo o semblante tenso. — Não precisa ficar assim. Conheço o pessoal daqui... são bons no que fazem. Tanto o doutor quanto as enfermeiras.

O rapaz soltou um leve suspiro, ainda de olhos presos na porta da sala.

— Sério?... Bom, isso me alivia um pouco. — passou a mão pelos cabelos, exausto. — E obrigado… pela ajuda. Se você não estivesse lá naquela hora...

— Ei. — interrompeu, gentilmente. — Não precisa agradecer. Era o mínimo que eu podia fazer.

— Mesmo assim... Obrigado.

Lucy assentiu com um pequeno sorriso:

— Ele é seu irmão? Ou algo assim?

Zane deu um meio riso, quase sem humor.

— Dá pra dizer que sim. — as palavras ficaram suspensas, junto com ele, em outro lugar por um instante.

Ela se aproximou um pouco e o surpreendeu com um abraço apertado, e então se afastou, caminhando em direção à saída. Suas botas batiam suave no assoalho de madeira do hospital.

— Se cuidem vocês dois então, Zane.

— Ei! Espera aí. — Ele deu dois passos rápidos e segurou gentilmente o braço dela, fazendo com que parasse. — Aquilo... — seus olhos buscaram os dela — O que foi aquilo que você fez?

— Aquilo o quê?

— Sabe do que estou falando! Não acredito em coincidências. Você tocou nele, e o coração dele voltou a bater.

— Não fiz nada.

— Muito bem, é Lucy, né!? Não vem com essa de “não fiz nada”, posso não saber muito bem o que realmente rolou, mas sei que algo rolou.

Ela simplesmente continuou encarando, sem dizer nada.

Zane suspirou fundo, fitando a saída do hospital.

— Tá… quer saber? Acho que só uma bebida vai ajudar a digerir tudo isso… vou buscar uma e já volto, tá afim?

Antes que conseguisse dar um passo, ela agarrou seu braço, arqueando a sobrancelha.

— Bebida? Sua pupila está totalmente dilatada, sem falar desse cheiro forte na sua roupa.

Ela tampou o nariz, olhando-o de cima a baixo.

Ele cheirou a própria camisa, deu um leve aceno, como quem aceita o palpite.

— Faz o seguinte. Quer saber como me “agradecer” de verdade, e o que realmente rolou? — entregou-lhe um folheto amassado. — Vá a esse endereço domingo.

Zane puxou um papel do bolso em resposta.

Lucy sorriu, quase vitoriosa.

— Você não jogou fora.

— Claro que não. Nosso galpão fica embaixo de um bar, cheio de pó, meu nariz fica ruim .

Ela agarrou o rosto dele com força.

— Que nariz que nada! Preferiria que tivesse jogado fora então!

— Argh! O que você tá fazendo sua louca!?



(Alguns dias depois. - Domingo)

Zane desceu a rua de terra batida, o som dos seus passos levantando pequenas nuvens de poeira. 

As casas simples e gastas do vilarejo passavam ao seu lado, até que ele parou em frente a um estabelecimento modesto, de madeira envelhecida e janelas embaçadas.

Lá dentro, vozes se misturavam em gritos e cantorias animadas. 

Levantou a cabeça e avistou uma placa, gasta pelo tempo, balançando levemente ao vento.

— Igreja Refúgio. — puxou do bolso o panfleto amassado, rasgado numa das pontas. — É... parece que é aqui.

Deu alguns passos, atravessando a entrada. Logo na porta, Lucy apareceu. 

Seu vestido simples, de algodão fino e levemente desbotado, moldava-se ao corpo com naturalidade, e um lenço modesto prendia seus cabelos, deixando alguns fios soltos que dançavam com a brisa. Não havia luxo nem ornamentos, apenas um cuidado que, mesmo na simplicidade, carregava uma presença que chamou a atenção de Zane sem que ele percebesse de imediato.

Ele não conseguiu esconder o brilho nos olhos enquanto ela falava:

— Olha só... então veio mesmo. Achei que fosse da boca pra fora.

— Nossa...

— Nossa, o quê?

— O quê? Não, nada... claro que vim! Agora me conta. O que realmente aconteceu com o Jeff lá no hospital?

— Você é bem direto, né? — deu uma risada abafada. — O rapazinho do hospital. Como ele tá?

— O médico disse que está estável... vai ficar em observação. Mas tem uma coisa estranha: quando fui pagar na recepção, falaram que, por ser amigo da Lucy, todas as despesas já estavam cobertas.

— Falaram, é? — coçou a nuca. — A igreja costuma ajudar o hospital. Deve ter sido isso…

Ele franziu a testa.

— Ajudar a igreja? — ele balançou a cabeça rapidamente. — Não, eu sei o que você está fazendo! Não tenta mudar de assunto!

Lucy abriu um sorriso e se apoiou no ombro dele.

— Fica calmo. Vem, vou te mostrar uma coisa.

Puxou Zane até um dos bancos próximos ao altar, onde uma senhora entoava canções religiosas com a voz firme.

O jovem olhou ao redor, observando os rostos. Uns cantavam de olhos fechados, outros levantavam os braços. Alguns gritavam palavras soltas, como se buscassem algo além dali.

Beleza... fiquei preso com um monte de loucos…

Passados alguns minutos, um senhor alto, de cabeça totalmente lisa e vestes sóbrias, subiu com passos lentos até o altar. Parou diante do púlpito, murmurando algumas palavras quase inaudíveis. Depois, ergueu o rosto, varrendo a igreja com um olhar firme.

— Boa noite, irmãos. A paz de Deus.

A resposta ecoou de forma uníssona pela congregação:

— Amém!

Zane desviou a atenção, encarando as pessoas ao redor com expressão confusa.

— Oxi... — sussurrou, franzindo o cenho.

Ao seu lado, Lucy inclinou o rosto discretamente enquanto passava a mão rapidamente pelo nariz e falou pelo canto da boca:

— Você bebeu antes de vir?

— Talvez…

Ela arqueou as sobrancelhas, quase soltando um suspiro.

— Inacreditável...

— Ah, para. Só bebo de vez em quando, me ajuda a relaxar. Não sou um bêbado, se é isso que tá pensando.

— Aham. — Lucy revirou os olhos, cruzando os braços. — Aposta quanto que não passa um dia sem beber?

— Duvida? Claro que passo!

— Sei...

Enquanto os dois trocavam farpas em sussurros, o pastor continuava sua pregação, mas seu olhar cortou o ambiente por um breve momento e pousou sobre Lucy. 

Não parecia casual. Seu semblante carregava uma expressão pesada, como se analisasse algo que apenas ele enxergava. Ficou ali, encarando-a por alguns segundos enquanto continuava a falar, até voltar sua atenção ao povo.

A igreja permanecia atenta, mas aquele momento gelado entre os olhos do pregador e Lucy foi como se um aviso silencioso tivesse sido dado.

O pastor deu um passo à frente, as mãos repousando sobre o púlpito com leveza.

— Bem… — sua voz soou firme, mas tranquila. — Antes de qualquer coisa, hoje começaremos pelos dízimos e ofertas.

Zane soltou um suspiro, curvando levemente a cabeça com desgosto.

“Vamos todos enriquecer o careca.”

— Mas antes disso — continuou o pregador — quero repetir o recado de sempre. O dízimo serve exclusivamente para manter a igreja funcionando. Sem ele, eu, sozinho, não conseguiria sustentar este lugar.

Algumas pessoas assentiram discretamente, outras cruzaram os braços, e o silêncio se manteve respeitoso.

— Quanto às ofertas — prosseguiu — todo valor arrecadado vai direto para o hospital de caridade de Nova Orleans. E isso me lembra algo importante... — fez uma breve pausa, baixando um pouco o tom. — Há poucos dias, um garoto chamado Jeff deu entrada lá, completamente machucado. Ainda está em tratamento. Então peço a todos que o incluam em suas orações.

Zane ergueu o rosto num sobressalto. O nome o atingiu como um soco. Ficou imóvel, encarando o pastor como se procurasse alguma confirmação nos olhos dele. Mas o homem apenas seguiu, sem sequer notar sua reação.

— E, claro, quero lembrar que quem não tiver condições de contribuir, não se preocupe. Peço apenas para que mantenham a fé e orem para que a igreja siga de pé, firme, iluminando vidas, isso já ajuda absurdamente. — disse com um sorriso — Além do mais, todos temos contas a pagar, não é?

A fala arrancou algumas risadas suaves da congregação, quebrando um pouco o clima pesado. Zane, no entanto, permaneceu sério, com os olhos ainda fixos no altar.

— E se alguém aqui for novo, e tiver condições, mas escolher não ofertar por não confiar no destino do dinheiro... eu entendo. De verdade. Mas, nesse caso, não guarde no bolso. Ajude alguém. Leve comida para uma família necessitada que você conheça. Compre um cobertor para quem dorme na rua. Deus não quer um valor entregue por se sentir obrigado. Ele quer um coração generoso, uma mão estendida.

Fez uma pausa curta e ergueu o tom com suavidade:

— Se você ajuda alguém com sinceridade, sem esperar nada em troca… Deus se alegra. Muito mais do que com qualquer moeda deixada aqui.

Um clima de reflexão tomou conta do salão. Alguns abaixaram as cabeças, outros uniram as mãos, tocados pelas palavras.

Zane ainda olhava fixamente para o altar. Os dedos se fecharam devagar, como se segurasse algo invisível. Ao seu lado, Lucy lançou um olhar breve, notando a mudança repentina no semblante do rapaz.

Após os recados, o pastor apontou com calma para uma pequena caixa de madeira ao fundo da igreja, discreta, quase escondida entre os bancos.

— Por que ele coloca lá atrás? — sussurrou Zane, cutucando Lucy com o cotovelo.

— Porque ele não quer plateia — respondeu sem pensar muito. — Assim ninguém se sente pressionado a dar só porque viu o outro entregando.

O jovem assentiu devagar, voltando-se ao altar. Ficou ali, imóvel, sem perceber o tempo passar.

Quando o culto chegou ao fim, mais de uma hora depois, ele sequer se lembrava de uma única palavra dita naquela noite. A mente girava em círculos, presa na fala do pregador sobre doar apenas com o coração leve.

As pessoas começaram a se levantar, algumas se despedindo com abraços, outras indo direto para a saída. 

Lucy então cutucou o companheiro no ombro.

— Ei. Tá tudo certo? Essa cara sua aí tá pedindo socorro desde a metade do culto.

— Tô tranquilo — murmurou, jogando o corpo para trás no banco de madeira.

— Ótimo! — disse com um sorriso travesso, puxando-o pelo braço. — Quero que conheça meu pai.

— Teu pai? Mas por quê?

Ela apenas riu, sem responder, e continuou puxando-o em direção ao altar, onde o pastor conversava com dois fiéis. Ele segurava a Bíblia com uma das mãos e ria de algo que acabara de ouvir, o rosto iluminado por uma tranquilidade que destoava do resto da noite.

— O pastor? — arqueou as sobrancelhas, franzindo a testa.

— Uhum.

O rapaz riu, um som seco, quase debochado escapando da garganta.

— Para. Fala sério.

Lucy parou de repente. Os olhos encontraram os dele num olhar firme, sem paciência para brincadeiras.

— O que quer dizer?

— Não me leva a mal, é só que… tipo... — passou a mão pela nuca, desconfortável. — Ele é branco. E você...

Ela ergueu uma sobrancelha, o olhar afiado como uma lâmina.

— Preta?

Zane hesitou por um segundo, como se procurasse uma rota de fuga invisível.

— Eu só... não esperava, sabe?

Antes que pudesse continuar, a voz do pregador cortou o ar com suavidade e autoridade ao mesmo tempo:

— Lucy! — chamou, se aproximando com um sorriso aberto. — Quem é esse rapaz? Qual seu nome, filho?

O jovem parou, desconcertado com o tom repentino de autoridade envolto em gentileza. A presença do pastor parecia mais imponente de perto — não apenas pela postura, mas pela forma como seus olhos atravessavam qualquer resposta antes mesmo dela ser dita.

— Zane, senhor. — respondeu, esticando a mão com educação, tentando esconder o desconforto.

O sorriso no rosto do pregador desapareceu como se nunca tivesse existido. O olhar desceu para a mão estendida, mas não a tocou. Ficou ali, congelado por um instante, o semblante fechado. O silêncio apertou ao redor deles, denso, desconfortável.

Então apontou diretamente para a porta de saída do estabelecimento, com o braço rígido como uma sentença:

— Fora da minha igreja.
















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