Volume 1
Capítulo 20: O Fim se Aproxima...
(Presente)
Kant não respondeu. Apenas arrancou as facas cravadas no abdômen, uma por uma, à medida que a podridão ia se dissipando. Erguer-se exigiu esforço, os músculos ainda pesados pelo veneno e pela dor, mas ele conseguiu, firme, mesmo que cambaleante.
À frente, o inimigo o observava com aquele mesmo sorriso debochado.
— Não precisa dizer nada — Draevoth divertia-se mais a cada segundo. — Imagino que vai evitar a outra dimensão por um tempo, não é?
Deu alguns passos à frente, desviando a atenção para Marie, encarando-a como quem aprecia uma peça rara.
— Sabe, Kant... — a voz escorregou com falsa ternura. — ... você realmente não se cansa de perder gente, não é? Por que simplesmente não—
— Diga de uma vez! — cortou com firmeza. — O que é que você quer?
— O que eu quero? — repetiu, abrindo os braços enquanto girava, mostrando ao redor o caos em chamas. — Olhe ao seu redor. Essas pessoas... você está oferecendo esperança. Mas para quê? Está tentando atrasar o inevitável? Isso é papel da Morte agora? Retardar destinos? O que eu quero é te ajudar. Aliviar esse peso. Libertar você.
O rapaz soltou uma risada seca, sem humor.
— Então foi você o escolhido pra me substituir? De quem foi essa brilhante ideia? Do seu pai?
— Você conhece as regras. — respondeu sem hesitar. — Só ele pode eleger os cavaleiros. Havia outros demônios na fila, claro. Mas, bem... ser filho do chefe tem suas vantagens.
— E meus irmãos?
Draevoth parou de andar. O sorriso ainda no rosto, mas agora sem tanto entusiasmo.
— Seus irmãos? Estão se saindo bem, pra falar a verdade. Guerra e Fome são excepcionais. Já a Peste... bom, ela tem suas peculiaridades. Mas não importa. Todos vocês terão que ser removidos. Não podemos correr o risco de deixar essas magias nas mãos de humanos mediante ao que estamos preparando.
O silêncio caiu entre os dois. Ao fundo, o som da batalha ainda ecoava — gritos, açoite de armas, o estalar de poderes sendo lançados.
Kant apertou o punho.
— Não podem correr o risco... — murmurou. — E os artefatos? É por isso que estão atrás deles? O que querem?
Draevoth deixou o tom debochado de lado. A resposta veio como um trovão:
— O que queremos!? — rugiu. — Acha que precisamos de artefatos para acabar com vocês!? Queremos justiça. Queremos liberdade.
Avançou, os olhos ardendo.
— Milênios, Kant! Milênios enclausurados no Hades, esperando... esperando que, no tempo de um inimigo cego e distante, sejamos lançados ao lago de fogo! Um destino eterno de tormento para os “ímpios”. Um castigo que nunca cessa. O primeiro e único inferno!
Draevoth cessou o avanço, os ombros relaxados, voz agora baixa, quase confidencial.
— Queremos adiar isso. Mostrar ao inimigo que, desta vez, não será conforme aquele livrinho patético dele. Vai acontecer do nosso jeito.
— E como exatamente pretendem fazer isso?
— Já ouviu falar... no FIM?
Kant arqueou a sobrancelha, descrente.
— O FIM? Isso aí é história pra demônio dormir.
O sorriso de Draevoth se alargou, como quem saboreia cada palavra.
— No livro do inimigo, o número sete representa perfeição. Sete dias para criar o mundo. Sete igrejas. Sete castiçais de ouro. Sete selos, trombetas, taças. Tudo envolto nesse teatro simbólico. Agora... pense. Sete selos — ou lacres, se preferir. E só o carpinteiro teria o direito de abri-los. Não lhe parece arrogância demais?
Fez uma pausa, a expressão oscilando entre sarcasmo e indignação.
— Em nossos sete selos para o fim, não haverá essa distinção elitista. Qualquer um poderá ser digno. Sem cerimônia. Sem frescura. — Deixou escapar uma risada seca. — De número da perfeição... ao estopim da destruição.
— E você acha que os anjos vão simplesmente permitir?
— Permitir? — repetiu, agora erguendo a voz. — Nós não pedimos autorização. Vai ser assim!
— Vai ser assim? — cerrou os olhos. — Nem mesmo a Estrela da Manhã está com vocês nessa.
Draevoth hesitou por um instante, o sorriso murchando por breves segundos.
— Não... — sua voz perdeu parte da empolgação, mas manteve o peso. — Ele não compartilha da visão que meu pai carrega. Prefere que tudo siga como está. Continuar enchendo o inferno de almas até que o apocalipse venha no tempo certo.
Encarou o rapaz como se medisse sua reação.
— Não se engane, também desejamos lotar o inferno. Mas não somente isso. Queremos desafiá-lo. Encará-lo frente a frente e rasgar cada linha daquele destino que ele escreveu com tanta convicção.
Se aproximou um passo, o olhar intenso, voz carregada de convicção.
— Vamos distorcer os eventos daquele livro. Se trouxermos o fim antes da hora, se quebrarmos a sequência escrita, não acha que muitos fiéis irão fraquejar? Que sua fé, baseada em previsões e datas, desmoronaria?
Ficou em silêncio por um momento antes de completar:
— E se a fé deles ruir... tudo o que o céu construiu virá abaixo com ela.
Kant soltou uma risada seca, os lábios curvando com escárnio.
— Não sou exatamente religioso… mas até eu sei que o Espírito Santo tem uma função. Supostamente, impedir isso tudo. Acha mesmo que consegue enfrentar um dos três?
Draevoth inspirou fundo, o rosto virado para o céu encoberto. Coçou a cabeça como quem encara um dilema antigo.
— A pomba de fogo, é? — murmurou — Ele pode tentar… — Baixou o olhar lentamente, fixando-se no jovem com um brilho frio nos olhos. — …mas não pode acender corações que já recusaram sua chama.
Kant desviou a atenção, dirigindo-a ao chão. As sobrancelhas se uniram num traço amargo.
— Ah, por favor, Cavaleiro — ironizou. — Não fique assim. Em breve, vai estar conosco no inferno. Estamos aqui só pra adiantar as coisas, lembra? — Deu um passo adiante, quase casual. — Além do mais… já se foram dois selos mesmo…
O rapaz ergueu o rosto num estalo.
— O quê!?
— Assustado? — o sorriso de Draevoth se abriu. — Quer saber o melhor de tudo? Vocês mesmos nos ajudaram. Sem perceber. Acreditando que estavam evoluindo.
— Está blefando!
— Será? — A voz deslizou como veneno doce. — Vamos voltar um pouco… meados de 1760. Começa um evento que vocês chamaram de “revolução industrial”.
Estalou os dedos no ar.
— O primeiro selo se rompeu ali. O chão estremeceu. Monstros de ferro surgiram das entranhas das cidades — fábricas. Enjaulamos homens entre tijolos e chaminés, longe da terra que um dia os sustentou. Trancados em jaulas de carvão e vapor, tornaram-se peças de um mecanismo maior do que eles.
Fez uma pausa. Virou-se de costas para o rapaz.
Enquanto isso, Kant desviou a atenção, varrendo o caos ao redor em busca de Ducare. No meio da desordem, o esqueleto, por mais frenético que estivesse, percebeu a mudança no ar. As órbitas ocas do crânio encontraram o olhar do companheiro
Nenhuma palavra foi dita.
O silêncio entre os dois dizia tudo.
Ducare girou levemente a mão, e uma moeda diferente surgiu entre seus dedos ossudos.
— Vamos testar minha sorte hoje... Vai ser cara... — uma das faces exibia a palavra “Vida”. Ele a virou. — ...ou coroa. — do outro lado, “Morte”.
Enquanto isso, Draevoth, ainda de costas, continuava o discurso:
— O segundo selo range como uma engrenagem faminta. O aço corre nas veias da indústria, e nós acendemos a centelha. Aquela que, um dia, moverá cidades inteiras. Ainda é tênue, quase imperceptível... mas inevitável.
Ergueu a mão, como se moldasse algo invisível no ar, e por fim se virou novamente, a visão fixa no Cavaleiro.
— Uma força que dominará as noites. Uma luz que não precisa de chama. Uma corrente que responde ao simples toque de um botão.
Abaixou a mão, os olhos vasculhando os arredores como se procurasse testemunhas invisíveis.
— E o sangue negro sob os pés de vocês… já está moldado. Vamos fazer com que queimem o mundo por progresso. Vão clamar por mais. Vão agradecer por mais.
Se inclinou levemente, como se estivesse confiando um segredo.
— E entre nós... vocês estão amando cada mudança.
O rapaz não respondeu. Apenas assimilou as palavras enquanto o demônio o observava em silêncio. Seus olhos, então, desviaram para o bolso onde guardava o relógio.
— Ah, sim... o relógio da morte. — A voz de Draevoth carregava puro deboche. — Me diga, Cavaleiro, ele marca que vou morrer hoje?
Kant abaixou levemente a cabeça após conferir os ponteiros, expressão fechada, como se a resposta não lhe agradasse.
— Foi o que pensei... Agora, por que não confere quanto tempo ainda lhe resta?
— Sabe que não é assim que funciona — retrucou, mantendo o tom calmo. — Esse relógio enlouquece quando tenta medir a vida de um Cavaleiro.
— Sim... mas ele se acerta quando a hora está próxima. — O sorriso no rosto de Draevoth se alargou. — Então confira.
Kant franziu o cenho, consultou o mostrador mais uma vez e fechou os olhos, desta vez visivelmente abatido.
— Era o que eu esperava. Mas não se preocupe... — Draevoth estendeu uma das mãos, apontando para o peito do rapaz. — ...sua morte será rápida.
Do outro lado do campo de batalha, a moeda já despencava quando o esqueleto estendeu a mão e a agarrou no ar com um estalo seco. Ao abri-la, a face voltada para cima trazia a palavra gravada em letras gastas: Morte.
Um riso seco escapou entre seus dentes.
— Isso vai ser divertido.
O canto da boca de Kant se ergueu num sorriso.
— Pelo visto, vou morrer mesmo… — levantou o queixo, fixando-se no oponente. — Só que não vai ser hoje!
Num gesto rápido, Ducare arremessou a moeda com força contra Draevoth. O objeto cortou o ar como uma lâmina fina; o demônio mal teve tempo de reagir — a moeda atravessou seu peito.
Draevoth arregalou os olhos, confuso. Tateou o tórax com pressa, tentando entender onde havia sido atingido. Não encontrou buraco, nem sangue. Virou-se. A moeda jazia no chão, intacta, embora já começasse a se desfazer como cinza ao vento.
Uma gargalhada aguda explodiu de sua garganta.
— Vocês têm muita coragem... Acham mesmo que podem me impedir!?
Voltou o olhar para Kant, que o encarava imóvel.
— Vocês dois morrem hoje!
De súbito, disparou dois de seus braços em linha reta, mirando a cabeça do Cavaleiro e do esqueleto.
Mas sua testa se franziu ao perceber que seus membros atravessaram os alvos sem tocá-los — como se fossem sombras.
Soltou um grunhido frustrado. Começou a lançar facas, mais braços, ataques frenéticos e descontrolados. Nada atingia os dois, que agora riam diante de sua fúria.
— O que… — girou a cabeça em direção a Ducare, irritado. — O que você fez comigo!?
Kant se ergueu, tossindo. Apoiou-se no cabo da foice, a voz rouca, mas firme.
— Aí, seu desgraçado... — pigarreou. — Vamos acertar as contas.
Em um puxão seco, a foice em mãos — ainda presa à corrente — chicoteou, dilacerando os demônios que se colocavam no caminho.
Draevoth permaneceu imóvel. Lançou mais braços, tentando interceptar o golpe. Mas nada tocava a arma.
A lâmina perfurou seu abdômen com um som seco.
Seu corpo cedeu.
Caiu de joelhos.
Antes que o demônio pudesse reagir ou se levantar, Kant já avançava com velocidade, a outra foice em mãos. Saltou, corpo curvado e lâmina erguida, pronto para decapitá-lo.
Mas a arma não chegou ao pescoço.
Um braço negro surgiu de lado, agarrando o fio da lâmina com firmeza.
Kant virou o rosto, surpreso. O braço era de Severin, ainda no confronto contra Zane.
Zane agora exibia os olhos tomados por uma mancha violeta, os cabelos e braços tingidos pela mesma escuridão que pulsava ao redor. Ao lado dele, sua própria sombra lutava de forma independente, como um espectro animado.
— Ai o das unhas coloridas! — gritou Kant. — Cuida do teu oponente!
Zane, irritado, virou-se, deixando a sombra no combate sozinha.
— Estou lidando com essa aberração e uma horda de demônios! Baixa a tua bola!
Kant cerrou os dentes, forçando contra a mão que ainda prendia sua lâmina.
— Kant! — gritou Ducare, já com uma moeda entre os dedos, prestes a lançá-la contra uma leva de inimigos. — O tempo está se esgotando!
O Cavaleiro virou-se rapidamente.
Foi então que o viu.
Tyler caminhava em direção a Ducare.
Não protegia mais Marie.
Não enfrentava demônios.
Andava em silêncio, passos lentos, olhar fixo.
Seu punho direito cerrado com força.
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