Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 7

Capítulo 84: Finalmente tenho uma conversinha esclarecedora com o meu pai

O sábado amanheceu chuvoso. Quando percebi isso pela janela do meu quarto, decidi que dormiria mais um pouco, porém tive meu plano frustrado; tio Michael entrou no meu quarto e fez Billy ficar agitado.

— O que você está fazendo aqui, tio? — reclamei, sonolento. — Ainda são… que horas são?

— Nove e meia, preguiçoso. E sua mãe me convidou pra almoçar hoje. Tem vergonha não, de acordar a essa hora?

— É meu penúltimo dia de férias, preciso aproveitar. Billy, fica quieto, cara, só um pouco.

Billy latia enquanto corria ao redor das pernas do meu tio. Michael disse que me deixaria dormir e desceu, mas quem disse que eu consegui? E precisava, pois havia caído no sono quase duas da madrugada, refletindo sobre os ninjas e a conversa que tive com três deles. Agora que havia acordado, a ansiedade tomava conta. Era dia do meu pai nos visitar e, digamos que teríamos uma conversinha esclarecedora.

Depois do almoço a chuva deu uma trégua. Peguei Billy no colo e fui dar uma volta no parque. Talvez, em razão do frio, ele não estava tão cheio. Havia poucas crianças no playground, todas bem agasalhadas, porém correndo e escalando os brinquedos e deslizando nos escorregadores e balançando nos balanços e etc.

Sentei no mesmo banco de sempre, de frente para a quadra que parecia um lugar abandonado, uma vez que estava vazia, molhada e debaixo do céu cinzento, repleto de nuvens pesadas. Fiquei de lado, de modo que pudesse assistir ao corre-corre das crianças, e aos pais, que as observavam enquanto conversavam entre si.

Eu me recordei de quando passeava com meus pais pelas praças de Belém. Sorri involuntariamente. Eram memórias boas, cheias de felicidade e momentos maravilhosos. Parando para pensar, mesmo sendo líder de uma organização de caçadores, Tony sempre se esforçou para estar presente, diferente, por exemplo, do pai da Sophia.

Suspirei. Notei que não havia motivo para sentir raiva do meu pai. Um criminoso não é considerado culpado apenas quando o crime é provado? Foi essa linha de pensamento que decidi seguir. Não que meu pai tivesse cometido um crime, claro. Você entendeu.

Tony não esconderia um segredo desses, a não ser que fosse para proteger alguém, foram as palavras do Hebert.

Tudo tem uma explicação, Hara também deu sua opinião.

Eu decidi — precisava — confiar neles. 

— Lembrando da infância?

Era a inconfundível voz dele. Billy latiu e eu me levantei, recebendo um abraço caloroso do meu pai. Um abraço forte como nunca antes ele tinha me dado.

— Mais ou menos isso — respondi quando nos desvencilhamos.

Meu pai sorriu e o primeiro raio solar do dia escapou diretamente para o seu rosto. Fitei a corrente prateada em seu pescoço, que descia por dentro da blusa. A lendária espada do Caçador Lendário.

— Eu já estava chegando em casa quando te vi aqui — explicou ele, passando a mão na cabeça de um Billy que balançava o rabo alegremente, então observou: — Você parece preocupado.

Mas seus olhos, que sempre andavam firmes, agora transmitiam a mesma sensação de preocupação, mas não falei nada a respeito. A despeito disso, meu pai não parecia mais tão cansado quanto da última vez que o vi, como se decidisse que dormir era uma coisa boa e essencial na vida de um ser humano.

— É que precisamos conversar, pai. Alguns assuntos bem sérios.

Os olhos dele retomaram a firmeza costumeira do Tony Kido. Os mesmos olhos que meu avô dos anos 1980 tinha.

— Pode dizer. Fiquei curioso, agora. O que será de tão importante que fez você se esquecer de perguntar como estou?

Ele soava gentil, mas também intimidador, mesmo que não houvesse pretensão. E nesse momento eu perdi toda a coragem que tinha. Planejara fazer as perguntas em ordem, embora sem ter me preparado para o que dizer diante de suas respostas.

Gaguejei. Percebendo meu nervosismo, meu pai disse:

— Ou podemos conversar mais tarde, pois eu estou faminto e com saudade da comida da sua mãe.

Entrei no carro dele e seguimos até a nossa casa, que ficava a poucas quadras.

 

Tony e Sara se abraçaram e se beijaram, fazendo outra lembrança ativar em meu cérebro: a primeira vez que eles trocaram um olhar; minha mãe segurando a mangueira que utilizava para lavar a calçada de casa e meu pai todo sujo saindo do carro que tio Michael havia acabado de estacionar.

— Eu estava morrendo de saudades — disse uma Sara ruborizada.

— E eu, então? Não parava de contar as horas pra te ver!

Ok, eu sabia que meu pai era romântico, mas ele estava mais que o normal. Ele cumprimentou Bruna com seu jeito gentil e se virou para o meu tio.

— Fala, Tony! — Michael o cumprimentou com um aperto de mão e um abraço.

— Acho que agora posso dizer isso na frente do Diogo — disse Tony. — Fala, meu tigre favorito!

Michael imitou um rosnado que soou um pouco “cringe” e meu pai riu. Era um tipo de humor que não tinha graça alguma, mas preferi não fazer comentários. Estava feliz demais com a presença dele.

Meu pai se acomodou num dos sofás acompanhado por todos os olhares, o que era uma clara demonstração do peso que tinha sua presença. Ele já foi logo dizendo:

— Quando eu era pequeno, adorava uma pizza. Papai levava todos os seus cinco filhos para comer pelo menos uma vez no mês, era divertido e, claro, saboroso. Então eu estava pensando: por que não? Conheço uma ótima pizzaria aqui em Honorário e acredito que vocês vão gostar também.

Tony parecia tão animado que era impossível dizer não. Havia certa admiração nos olhos de todos — e pensei ter vislumbrado, mesmo que por um segundo, o rosto do meu tio ficar sério. Como se ele desconfiasse de alguma coisa. Mas ele sorriu e disse:

— Uma pizza portuguesa cairia bem.

“Impressão minha” pensei.

— Ou de atum — brincou minha mãe, pois sabia que Michael odiava peixe.

— Credo, Sara!

Nós rimos.

— Diogo? — Meu pai me fitou.

Dei de ombros.

— Você acha que vou negar pizza, coroa? Só bora!

Tony sorriu — ele estava sorridente demais — e decretou:

— Hoje à noite, galera. Pizza por minha conta!

 

— Mulheres, mulheres… — disse tio Michael, impaciente. — Por que será que elas demoram tanto para se arrumar?

Pois já fazia mais de meia-hora que estávamos prontos e aguardando por Sara e Bruna, que ainda estavam lá em cima. Eu já estava mais que habituado com aquele tipo de coisa. Aproveitei e deixei os dois homens sozinhos na sala enquanto levava Billy à casa da Zoe, uma vez que animais eram proibidos na maioria dos estabelecimentos alimentícios da cidade. Zoe, inclusive, ficou surpresa por me ver, pela primeira vez, de cabelo penteado. Expliquei que a ocasião era especial e ela me elogiou. Quando voltei para casa, as mulheres ainda estavam se ajeitando.

— Eu espero que a Sophia não seja assim — comentei comigo mesmo.

— Sophia — repetiu meu pai. — Meu filho de casalzinho com a filha de um dos meus melhores amigos. Quem diria! A propósito, ela é muito bonita. E se puxou para o pai, deve ser uma pessoa maravilhosa.

Aquela era a primeira vez que meu pai e eu chegávamos perto de falar sobre a minha vida amorosa — até porque Sophia era a minha primeira namorada. E antes que eu pudesse responder qualquer coisa, Sara e Bruna apareceram na escada.

— Nossa…

Tony e Michael ficaram boquiabertos. Elas estavam simplesmente lindas. Usavam vestido e estavam maquiadas. Minha mãe vestia preto, o que me remeteu, com um certo frio na espinha, aos Ninjas da Noite. Os olhos dela também me faziam lembrar deles. E o tom de pele, os traços do rosto…

— Diogo! — chamou meu pai.

— Oi.

— Sua mãe está falando com você.

Devia ser o trauma e a preocupação. Os ninjas estavam soltos por aí e poderiam aparecer a qualquer momento. E segundo meus três primos, o futuro deles dependia da minha conversa com o meu pai.

— Eu perguntei do Billy — disse minha mãe.

— Ah, sim. Eu o deixei com a Zoe. Ele vai ficar bem.

O carro do meu pai ficara a tarde inteira lá fora. Entramos nele e partimos. A pizzaria ficava localizada quase no centro da cidade, fazendo com que a viagem durasse cerca de quarenta minutos. Percebi que meu pai estava mais conversador que o normal. Geralmente, ele mais ouvia do que falava. Dessa vez não. Ouvimos mais histórias dele do que propriamente do meu tio que, esse sim, era um tagarela quando estávamos reunidos.

Coisas que descobri na noite: meu pai nasceu e passou a infância em Firen, depois foi morar em Honorário, onde deixou de ser aprendiz de caçador e participou de inúmeras caçadas. Ele usava um prédio abandonado como uma espécie de quartel-general, onde reuniu uma boa quantidade de caçadores que, posteriormente, vieram a se tornar agentes da organização Ko-Ketsu. Com o tempo, as coisas ficaram sob controle e, por esse motivo, o grupo começou a expandir suas caçadas para o Brasil inteiro. Foi assim que ele foi parar em Belém e acabou conhecendo minha mãe.

Achei até coincidência ele contar esse tipo de história naquela altura do campeonato, quando eu tinha praticamente acabado de viajar no tempo e visto o primeiro encontro entre eles. Suspeitei que meu pai soubesse de alguma coisa a respeito.

E eu nunca o vi comer tanto. Era como se não comesse pizza há anos. Ou aquelas fossem as últimas pizzas do mundo. Nem o tio Michael, comilão nato, conseguiu acompanhá-lo. Eu me sentia perto do meu amigo Jhou.

Fomos embora de barriga cheia. A pedido do meu pai, Michael foi dirigindo e Bruna foi na frente, enquanto ele ficava entre mim e minha mãe no banco de trás. Ele costumava pedir para o meu tio pegar no volante, mas sentar atrás conosco era novidade. Concluí que ele deveria mesmo estar com saudade de nós dois.

Comecei a refletir sobre qual seria o melhor momento para chamá-lo para conversar. Talvez quando ele fosse guardar o carro na garagem? Minha mãe certamente desconfiaria da demora. Ou quando ele fosse deixar meus tios na casa deles — mas isso daí era capaz de ele fazer antes de chegarmos em casa. Então no dia seguinte?

O carro deu um solavanco para o lado. Tio Michael foi rápido em rodar o volante antes que ele colidisse num poste, fazendo os pneus do Palio derraparem no asfalto. Bruscamente, ele freou.

— O que foi isso? — perguntou minha mãe.

Michael soltou um suspiro. Ele olhou sobre os ombros, assustado, mas não respondeu. Abriu a porta do carro e saiu.

— Sara e Bruna, fiquem aqui — pediu meu pai, o que eu entendi também como ordem para que eu saísse junto. Descemos do veículo e nos aproximamos do meu tio, que estava agachado e examinava o pneu dianteiro esquerdo.

— Qual é a novidade? — perguntou Tony.

Ele puxou algo do pneu e nos mostrou.

Uma estrela de metal.

— Não foi um simples acidente — disse meu tio.

Naturalmente, nós três começamos a olhar em volta. Era uma rua larga e estava deserta, muito devido ao horário. Tinha casas, prédios e becos — e os ninjas poderiam estar escondidos em qualquer parte.

— O que a gente faz? — perguntei.

— Quero que vocês prestem bastante atenção — respondeu meu pai, sério. — Vou chamar um Uber e quero que vocês vão direto lá pra casa. Não baixem a guarda de forma alguma! Preciso fazer uma coisa.

— Uma coisa? — estranhei. — Que tipo de coisa?

Tony lançou um olhar para Michael que eu não consegui decifrar. Michael, por outro lado, assentiu com a cabeça, mesmo parecendo não gostar muito. Insisti:

— Pai!

— Tenho que chegar à casa de um amigo, que fica a poucas quadras daqui. Ele é mecânico, tenho certeza que não se importará em me emprestar um pneu.

— Vou com você — falei, vendo ali a oportunidade perfeita para iniciar a tão aguardada conversa.

— Você vai pra casa — ele disse firme, e puxou o celular do bolso.

— Eu sei que isso é uma emboscada dos ninjas, pai. E eu sei também que você quer distraí-los de alguma forma pra não comprometer a minha mãe e a Bruna. Mas não vou deixar você ir sozinho, é perigoso demais!

Tony pareceu não me ouvir. Ele digitou no celular e, poucos minutos depois, um Onix apareceu para nos buscar. Nesse meio-tempo, tio Michael já havia conversado com as duas mulheres e minha mãe pediu para que meu pai tomasse cuidado. Ela não tentou convencê-lo nem nada, como se soubesse que nada o faria mudar de ideia.

— Tony, cuidado — disse meu tio ainda antes de entrar no carro. — E vamos, Diogo.

Eu não me movi. Não deixaria meu pai sozinho quando havia um bando de lunáticos por aí.

Finalmente, meu pai olhou para mim com um olhar carregado de confiança. Era o mesmo olhar de quando ele me confiou o primeiro vampiro que apareceu no nosso caminho e que eu pedi para ele me deixar enfrentar; o vampiro do cinema. 

— Preciso que você e seu tio mantenham as duas a salvo. Eu sei sobre o clã Vinográdov e o quanto eles são perigosos. Mas também sei quem eles querem e posso dar um jeito. Então, por favor, filho, preciso que você faça o que eu tô pedindo.

Senti o coração quente. Eu estava sendo notado pelo meu pai depois de tantos vacilos. As palavras dele eram verdadeiras e carregavam determinação. Acabei assentindo, observando que ele não me deixaria ir junto nem a pau.

— Vejo vocês daqui a pouco — meu pai falou quando já estávamos prontos para partir. Sua voz parecia vacilante.

O motorista pisou no acelerador e viramos a esquina. Todos estavam em silêncio, tensos. Esperei que o carro pegasse um pouco de distância e pulei para o lado de fora.

— Diogo! — ouvi minha mãe e tio Michael gritar, mas corri. Não parei para ver se o Uber freou o carro ou continuou, apenas prossegui até a rua onde deixamos o meu pai. Nunca que eu o deixaria sozinho.

— Pai! — chamei. Ele andava sozinho pela calçada, e arregalou os olhos quando me viu. Eu o alcancei.

— Por que… — ele começou. Em vez de continuar, deu um suspiro de lamento como se não estivesse com ânimo para me dar uma bronca. — Você é teimoso igual a mim. E não estou te elogiando.

Ele retomou a caminhada e eu o acompanhei. Fui direto ao ponto:

— Você não está indo na casa de nenhum amigo, né?

— De fato, não. Eu sei que os ninjas do clã Vinográdov me querem e eu acho mais seguro encontrá-los sozinhos. Não era para você ter vindo, filho…

— É justamente sobre eles que eu precisava falar com você, pai. Quer dizer, um dos assuntos é sobre eles. Você conhece o Glen, não conhece?

Tony me encarou sério.

— Ele foi um grande amigo no passado. E como você sabe desse nome?

Foi o suficiente para eu ter certeza que meus primos estavam certos: meu pai foi mesmo amigo do Glen, por mais inacreditável que fosse.

— Semana passada fui emboscado por ele e pelo resto do bando, na mesma noite em que fizemos aquela missão pra você.

— Emboscado pelos ninjas? — Havia perplexidade na expressão do meu pai. — E Diogo, que missão?

Franzi o cenho.

— Ué, pai, a missão que você passou para o Riku. Deperizar vampiros que já estavam mortos. Inclusive, a informação de que eles estavam divididos pelo prédio era falsa. Os quarenta corpos estavam todos no mesmo lugar.

— Eu não passei nenhuma missão para o Riku — disse meu pai, incrédulo. — A última vez que falei com ele foi no dia em que encontramos o Shaong no hospital, e só! O que foi que ele te disse?

Seu pai apareceu ontem à noite lá em casa e nos deu uma missão importante.

— Que você apareceu na casa dele à noite para dar a missão.

— Isso não faz sentido… Nem sei onde o Riku mora. Isso não procede.

Agora era a minha vez de ficar incrédulo. Por que Riku mentiria?

— Beleza, pai, acho que isso não importa agora. O que importa é que esse seu amigo Glen queria a minha Takohyusei e a do Natsuno e quase nos matou por causa disso. Ele disse, inclusive, que a minha mãe faz parte do clã Vinográdov. — “E eu confirmei que era verdade ao viajar no tempo com um cara que diz ser meu Guardião” pensei em dizer, mas não achei o momento propício. — Como você nunca percebeu isso? Se você conhece o Glen, nunca reparou nas semelhanças entre ele e ela?!

— Eu sempre soube — disse meu pai, sem se importar com o meu tom de indignação. — Mas nunca tive coragem de contar à sua mãe que a família dela era conhecida em Venandi por cometer assaltos. Claro que se ela tocasse no assunto… se dissesse que tinha curiosidade em saber quem eram seus pais verdadeiros, eu lhe contaria tudo o que sei. Mas sua mãe jamais questionou. Ela se contenta com a família que tem e isso é o suficiente.

Ouvindo seu argumento, eu conseguia entender o ponto de vista do meu pai. Não parecia ser uma coisa muito legal chegar e falar: “Olha, sua família é composta por ninjas que vivem de saquear pessoas ricas”. Ainda assim, aquilo não me pareceu certo.

— Estranho o Glen querer sua Takohyusei — observou meu pai, dobrando uma rua escura. — Os Ninjas da Noite geralmente roubam coisas que eles podem trocar por mantimentos, e ninguém em Venandi aceitaria uma Takohyusei em troca de algo. Elas são proibidas de serem comercializadas assim como é proibido aqui na Terra alguém pegar qualquer objeto de domínio público e vender.

— Pai, os ninjas não são mais como antes. Ontem fui surpreendido por três deles desesperados pedindo por ajuda. Ajuda sua.

— Pera lá, vamos por partes. O que você quer dizer com “os ninjas não são mais como antes”? E que tipo de ajuda eles pediram?

Contei tudo o que ouvi dos meus três primos — Ivan, Dmitri e Aleksandr — na noite anterior: que os ninjas encontraram o templo deles arruinado e as mulheres e crianças do clã assassinadas; que foram contratados por um grupo secreto para fazer alguns trabalhos sujos; que Glen tornou-se um assassino e estava influenciando o restante do bando a matar; e que somente o meu pai poderia convencê-lo a parar com toda aquela palhaçada.

— Eu sonhei com isso há alguns meses — foram as palavras de um Tony abatido, ditas mais para si mesmo do que para mim, repletas de dor. — E mesmo assim continuei de braços cruzados… Preciso pensar num jeito de resolver isso. O que mais eles te contaram, filho? Deram detalhes sobre esse tal “grupo secreto”?

— Não. Mas eu acho que sei quem são.

Falei sobre a noite em que fomos emboscados pelos ninjas. Simultaneamente, Riku foi atacado por dois vampiros supremos que também queriam sua Takohyusei, e eles tinham no braço a mesma tatuagem que Shin e Shaong Kabeiyama fizeram questão de exibir na noite do hospital. Não poderia ser coincidência.

— …então eu acredito que os ninjas estejam sendo controlados pela Eclipse do Caos.

Assim que disse isso, meu pai parou. Havia uma seriedade sombria nos seus olhos. Ele perguntou, com uma raiva contida:

— Onde você ouviu isso? Eclipse do Caos?

— O Riku… — comecei.

O Riku? — Tony nem me deixou completar a história. — Diogo, eu já falei pra você ficar longe dessas coisas arriscadas. Você está indo longe demais! E o Riku parece ser peça crucial nisso. Alguns assuntos precisam ser tratados por pessoas mais experientes. Eclipse do Caos, por exemplo, é uma informação totalmente confidencial que só os Majores da organização Ko-Ketsu têm. Deixe essas coisas comigo!

Eu começava a ficar irritado. Mais uma vez, meu pai estava me tratando como uma mera criança no meio dos adultos. Como se eu e o Natsuno não tivéssemos salvo aquela menininha das mãos do Shin, ou não tivéssemos impedido uma bomba viral de explodir num shopping center da cidade.

Ele suspirou profundamente e voltamos a caminhar.

— Talvez eu esteja te subestimando demais — disse, alternando para um tom meio triste. — Tentei te deixar de fora de tudo isso, mas o Hebert estava certo: preciso entender que você também faz parte deste mundo louco que vivemos. Um mundo perverso e cheio de covardia… Mas um mundo que é nosso.

Fiquei sem saber o que dizer. Dando-me conta de que meu pai recebera conselhos do Hebert, presumi que eles provavelmente haviam conversado sobre os acontecimentos do Canadá. E aquele era o gancho perfeito para que eu entrasse no outro assunto.

— Pai, agora mudando de assunto… Quero saber sobre o Tácio.

Meu coração acelerou. Aquele assunto era delicado e eu finalmente teria uma resposta. Ou pelo menos assim eu pensei.

— Quem é Tácio? — estranhou meu pai.

Ele não sabia. Tinha um filho abandonado por aí e não sabia. De repente, meu pai colocou as mãos na cabeça e começou a murmurar de dor.

— O que foi? — perguntei.

Ele teve que parar de andar para não tropeçar e cair. Parecia com enxaqueca. Enxaqueca que, pelo jeito, estava forte.

— Eu estou bem — disse para me acalmar, pestanejando como se esse fosse o remédio certo. — Isso vai… vai passar logo. Tácio… Eu estou me lembrando…

“Está se lembrando?” eu queria perguntar.

— Foi logo após eu ir embora de Belém para São Paulo… Qual foi o ano mesmo? Não consigo me recordar. Conheci uma mulher… Isso mesmo, conheci uma mulher.

A impressão que dava era que meu pai queria mais lembrar do que propriamente me esclarecer. Talvez fosse a idade, pensei comigo mesmo, ainda mais quando se é líder de uma organização de caçadores. Então me repreendi. Esquecer coisas banais e detalhes fúteis, tudo bem, mas agora esquecer a mãe de seu filho era exagero.

— Aí você se relacionou com ela — tentei ajudar.

— Sim. — Tony Kido piscava na tentativa de afastar a dor. — O nome dela… Não consigo lembrar. Mas ela engravidou.

— Engravidou uma mulher sem saber o seu nome? — tive que dizer, pois jamais desconfiei que meu pai fosse desse tipo.

— Tácio — ele disse com a voz falha. — Meu filho…

No momento em que meu pai virou o rosto para mim, meu coração afundou. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ver meu pai chorando foi um choque grande; uma pessoa inabalável de repente cair aos prantos. Eu só o havia visto chorar uma única vez na minha vida toda: quando encontramos Cláudio à beira da morte.

— Agora eu me lembro — disse ele. — Como você o encontrou?

Lembrei dos olhos verdes e sorriso maligno do meu irmão. A forma como me jogou da montanha e de como quase matou a Sophia.

Imagine a tristeza do Tony Kido quando souber que o seu pequeno Diogo morreu. Todo sofrimento pra ele ainda é pouco!

— Ele me atacou durante as férias. Estava puto da vida com você a ponto de querer me matar só para te fazer sofrer. Pai, por que você o abandonou?

Os olhos do meu pai pareciam longe. Tive que chamá-lo outra vez para que ele respondesse.

— Desculpe, filho, eu estava tentando me lembrar de mais coisas… 

Eu começava a ficar preocupado com a saúde mental dele.

— Eu precisava protegê-lo… — explicou meu pai. — Talvez tenha escolhido a forma errada de fazer isso. Eu era tão inexperiente… Queria ao menos me lembrar do rostinho dele.

— Eu só sei que o Tácio se tornou uma pessoa maldosa. Ah, e ele é um místico, viu?

Foi como se eu tivesse puxado uma alavanca de alerta em seus mecanismos, pois ele me olhou imediatamente. Havia triunfo no seu olhar.

— Agora as coisas estão claras. — Sua dor de cabeça pareceu ter ido embora. — Eu me lembro do rosto do meu filho! E o porquê de tê-lo esquecido.

— Você realmente o esqueceu? — perguntei, pasmo.

— Sim, filho, eu fiz questão de apagá-lo da minha memória e fiz o mesmo com a mãe dele. Mas deixe-me explicar… Eu soube no momento em que o vi nascer que ele era especial. Veja bem, caçadores que nascem místicos jamais terão uma vida normal. Eu tenho um amigo capaz de apagar lembranças. Pensei que, se ele desfizesse meu vínculo com o Tácio e a mãe dele, eles teriam uma vida normal longe de mim. Foi uma atitude desesperada após eles serem perseguidos por vampiros por minha culpa. Eu tinha receio de o Conselho acabar descobrindo que ele era um mestiço de caçador com místico. Não via outra solução na época a não ser deletá-los da minha vida…

“Um amigo capaz de apagar lembranças?” pensei horrorizado.

Chegamos numa praça maior que o parque do meu bairro. Não havia brinquedos nela, apenas grama bem aparada e árvores em certos pontos. Dava para construir um campo de futebol ali se a prefeitura quisesse, pois hectares era o que não faltava.

Começamos a atravessá-la. Eu não fazia ideia de para onde estávamos indo, e tinha uma leve impressão de estar sendo vigiado.

— Se você estava arrependido de ter um filho, por que decidiu formar uma família com a minha mãe? — perguntei sem entender.

Mais uma vez, a mente do meu pai estava distante. Não, mais que isso; ele estava preocupado. Olhava o chão ao redor como se quisesse constatar que a praça era real, depois passou a olhar para todos os lados.

E ele jamais respondeu a minha pergunta.

Entre as sombras de algumas árvores alguns metros à nossa frente, surgiu alguém de olhos amarelos. Ele teve que andar até a área aberta da praça para podermos vê-lo com clareza, e estava todo de preto, dos pés calçados até a máscara que lhe cobria o rosto. E a carapaça no peito denunciou qual dos ninjas ele era.

— Glen! — falei.

— Olá, meu velho amigo — disse ele para o meu pai, “apagando” o amarelo dos olhos para fazê-los voltar ao preto natural que eu conhecia muito bem. Ele fez questão de tirar a máscara.

— Não tinha jeito, as coisas precisavam ser assim — ouvi meu pai sussurrar. Ele aumentou o tom de voz para dizer: — Glen Vinográdov. Quanto tempo não nos encontramos. Você não mudou nadinha.

Glen abriu um sorriso maldoso. Em seguida, estalou os dedos e, no segundo seguinte, estávamos rodeados por uma horda de ninjas silenciosos, tão numerosos que a sensação era de que havia dado um apagão na praça.

Saquei a minha Takohyusei, certo de que os ninjas fariam a mesma coisa que fizeram quando ameacei puxar minha espada na noite da primeira emboscada. Dessa vez, no entanto, ninguém se moveu.

— Ou será que mudou? — desafiou meu pai. — Os boatos que estão rolando não condizem com a tradição do seu clã, Glen. Desde quando vocês se tornaram assassinos?

— E quem você pensa que é para querer ditar o que devemos ou não fazer? — Glen se mantinha calmo, mas afiado feito uma lâmina. — Por muito tempo ficamos nas sombras e vivendo de sobras. Agora é diferente. É hora de mostrar para o mundo do que nós realmente somos capazes. E o nosso primeiro passo será você, Tony, líder da poderosa organização Ko-Ketsu. Em outras palavras, nós viemos aqui para te matar! E eu farei isso com enorme prazer!



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