Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 7

Capítulo 82: Viagem no tempo: a história de uma família unida

Eu estava me sentindo um tolo por não ter percebido antes que aquele bebê, o tempo todo, era a minha mãe, e que Hara estava me mostrando como ela fora parar com a família do meu tio Michael.

Fiquei vidrado nos três indivíduos presentes: a mini versão do meu tio, a minha avó mais jovem e o meu avô que eu só conhecia por fotos. Uma pessoa mais atenta teria descoberto sozinha quem eles eram, o que não foi o meu caso.

Pensei na mulher dos olhos cor-de-rosa, ou melhor dizendo, na minha avó biológica. Eu nunca soube nada sobre ela, e era provável que minha mãe também não. Não imaginávamos que ela teve que fugir dos Ninjas da Noite para manter a filha, uma mera recém-nascida, viva. A coitada simplesmente saltou de uma montanha, atravessou um deserto, foi atacada por vampiros e tudo isso para, no fim, confiar sua filha a uma família desconhecida. Era uma história muito triste, mas ao mesmo tempo admirável. Aquele era o verdadeiro amor de uma mãe?

— Surpreso com o que viu? — Hara parecia se divertir com a minha reação.

— Muito — respondi. — Todos esses acontecimentos… Isso jamais passou pela minha cabeça.

— Ainda tem mais um pouco. — Ele colocou a mão no meu ombro. — Por mais que sua mãe tenha tido uma vida normal, ela passou por poucas e boas. Bora?

Eu fiz que sim. Em seguida, o cenário mudou para um quarto de paredes rosa. Vovó ainda era jovem, e penteava os cabelos pretos de uma garotinha branca como a neve, ambas sentadas na beira de uma cama de solteiro pequena.

Era a minha mãe.

Ela era lindinha e vestia o que provavelmente era um uniforme escolar: camiseta branca bem passada, short curto vermelho e um chapeuzinho da mesma cor, totalmente fora de moda para os dias de hoje. Sara sorria alegre, do jeito que eu a conhecia.

— Espero que essa sua ansiedade dure muito tempo — brincou minha avó.

— Ahã! Vai sim!

— Não se esqueça de se comportar, hein.

— Tá bom, mamãe. Pode deixar comigo. Pronto?

Dona Rose sorriu, revirando os olhos. Antes que ela respondesse e liberasse a menina, tio Michael — inconfundível! — invadiu o quarto, trajando o mesmo uniforme escolar, porém seus cabelos estavam bagunçados — como sempre. Ele deveria ter uns dez ou onze anos e tinha a típica fisionomia de menino atrevido.

— A perua está “vindô” — disse de forma enfática e apressada. Segurava as alças de sua mochila.

— Mamã-ãe! — pressionou Sara.

A mulher se levantou e suspirou.

— Pronto. Você está linda. Pode ir.

As duas crianças sorriram e deixaram o quarto. Rose ainda gritou um “não corram na escada!” e riu sozinha. Hara explicou:

— É o primeiro dia de aula dela. Digo, da sua mãe.

Era encantador ver o passado tão de perto. Demorei alguns instantes para perceber que ele falava comigo.

— Ela não foi atacada por valentões nem perseguida por um diretor que na verdade era um vampiro, né? — ironizei.

— Receio que não. Os problemas que ela e Michael tiveram foram outros.

Antes que eu ficasse curioso, Hara tocou no meu ombro e surgimos diante do muro de uma escola. Assim que aparecemos ali, ouvi gritos agudos, de crianças. Proferiam ofensas a alguém, incisivas e maldosas. Custei a entender o que e para quem gritavam. Um pouco maior que no último cenário, o que indicava que a data era diferente, tio Michael estava acuado diante de um grupo de garotos. Era ele o motivo dos escândalos.

— Você é uma aberração! — gritavam alguns.

— Vá embora dessa escola! — gritavam outros, enfurecidos.

— Seu lugar não é aqui!

— Vai embora, aberração!

Chegava a ser assustador ver tamanha maldade vinda de meros pré-adolescentes. E Michael não parecia com medo deles, apenas… entristecido. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ele protestou:

— Eu não sou uma aberração! E não vou embora daqui!

— Você tem que ir embora sim! — replicou um dos garotos. — É um perigo pra todo mundo!

Os outros concordaram prontamente.

— Eu não sou… perigoso — tentou meu tio, mas suas palavras não pareciam ter convicção alguma.

— Lógico que é!

— Lixo! — esbravejou um baixinho.

— Seu monstro! — gritou um menino de cabelo tão vermelho que parecia querer pegar fogo.

Os garotos continuaram insultando o meu tio. Se eu pudesse fazer alguma coisa, com certeza esmurraria a cara de cada um, pois era injusto um grupo de dez oprimir uma única pessoa.

— Todos os dias a mesma coisa — narrou o meu Guardião feito o narrador de uma novela. — Seu tio era perseguido por ser diferente; por vezes ele perdia o controle e atacava os colegas de escola. Foi parar na delegacia algumas vezes, e quase teve que ser internado numa clínica psiquiátrica, pois julgavam ser algum tipo de distúrbio psicológico.

— Quando, na verdade, ele era um místico — falei ainda observando a cena, que continuou por mais alguns minutos. A todo momento parecia que os meninos partiriam para cima de Michael para espancá-lo. E me perguntei onde estavam os pais daqueles pirralhos.

— Deixem ele em paz! — finalmente alguém gritou, o que seria um alívio não fosse a voz de uma menininha. Ela passou pelo grupo de ofensores e ficou na frente do meu tio.

— Mãe? — estranhei. Ela também estava um pouco maior. Agora, deveria ter uns seis ou sete anos, o que não era muito confortador mediante a situação. Em seu rosto, uma expressão de pura valentia.

Os garotos ficaram em silêncio por alguns instantes, pegos de surpresa pelo grito repentino, mas logo começaram a dar risada.

— E quem você pensa que é? — debochou um deles.

— Eu sou a irmã dele, e ele se chama Michael!

Michael parecia sem palavras. Até eu fiquei surpreso com a atitude daquela criança tão miúda no meio de valentões.

— Chispa daqui! — gritou o mesmo garoto. — Aproveita e some daqui com essa aberração!

Nesse momento, minha mãe foi para cima dele. Para se defender, o garoto a empurrou com força, derrubando-a na calçada. Um erro fatal. Eu senti raiva só de assistir, apesar de saber que aquilo tudo já tinha acontecido, mas percebi que havia alguém mais furioso do que eu. E ele rosnava…

— Eita — falei.

A princípio ele ficou paralisado, olhando para a minha mãe caída. Então começou a rosnar feito um animal. Os garotos recuaram quando sua aparência começou a mudar. Começaram a brotar pelos laranja pelos braços e rosto do meu tio. Ele também assumiu um semblante felino: olhos puxados que se tornaram verdes, orelhas pontudas e uma espécie de focinho onde deveria estar o seu nariz. Aquele era o Modo Ataque que eu conhecia.

— Que isso?! — os garotos gritaram.

Ninguém conseguiu fugir ileso. Michael atingiu dois deles com suas agora patas de tigre e agarrou um terceiro, jogando-o no chão. Continuou atacando os adolescentes numa cena de raiva e desespero. Quem tentava correr, era barrado pelo garoto-tigre. Por mais que os garotos implorassem que ele parasse, Michael mantinha o mesmo ritmo. Ele estava completamente fora de si e a um triz de fazer alguma coisa mais grave. Era só questão de tempo. E ele rosnava.

Até que minha mãe, que já havia se levantado e assistia a tudo com os olhos arregalados, gritou:

— IRMÃO! POR FAVOR, PARA!!!

Michael cessou o golpe que com certeza quebraria o nariz do garoto de cabelo vermelho. Todos os meninos aproveitaram a trégua e deram no pé. Foi uma cena satisfatória, embora eu sentisse alívio por ter terminado ali e daquela forma.

Aos poucos, o menino-tigre foi reassumindo a forma humana. Quando seus olhos retornaram à cor castanha, a última coisa que restava voltar ao normal, ele olhou em volta claramente envergonhado.

— Aconteceu de novo? — perguntou à irmã.

— Sim…, mas dessa vez foi mais… quer dizer, você ficou igual uma… — Sara parecia estar procurando a palavra certa. Achou. Mas utilizou “fera” em vez de “tigre”.

Michael desabou na calçada e colocou a cabeça entre os joelhos. A pequena Sara se sentou ao lado dele e o abraçou. Era a primeira vez que eu via meu tio chorar.

— Essa foi a primeira vez que seu tio perdeu o controle a nível de se transformar — contou Hara. — Os pais dos alunos feridos fizeram uma reclamação mais incisiva na escola, o que acarretou em caso de polícia. Por sorte não havia câmeras de segurança para comprovarem as falas das crianças, de que ele havia se tornado um animal violento. Ainda assim, a família teve que se mudar de bairro, e isso aconteceu outras vezes, pelo menos até Michael decidir entrar para as artes marciais, decisão que mudaria a vida dele.

Minha mãe deu espaço para o meu tio chorar. Era impressionante a maturidade que carregava com tão pouca idade. Foi Michael quem interrompeu a si próprio.

— Irmã, eu sou uma aberração.

— Não é não. Você é meu irmãozinho.

— Você viu como eu fiquei… Eu nem me lembro direito o que aconteceu! Aqueles meninos estão certos. Eu sou uma… aberração…

Sara se levantou com uma engraçada postura de braveza. Perguntou:

— Olha pra mim. Você acha que eu sou uma aberração?

Michael pareceu surpreso com a pergunta. Prontamente respondeu:

— Lógico que não!

— Então você também não é, pois nós somos irmãos, esqueceu? E se você acha que é uma aberração, eu também sou, porque nós somos irmãos!

Eu não sabia se a essa altura ela já sabia sobre ter sido “adotada”. Mais tarde eu descobriria que sim. De uma forma ou de outra, dava orgulho ser filho dela. Mais do que eu já sentia.

Michael enxugou as lágrimas e sorriu. Sara lhe ajudou a se levantar e eles se abraçaram.

— Eu não sou uma aberração — disse ele com convicção. — Agora, vamos embora, irmã, porque a minha barriga já está roncando!

E eles foram embora. Juntos, rindo, feito verdadeiros irmãos.

Hara tocou no meu ombro e aparecemos numa sala pequena, onde havia dois sofás e uma televisão de tubo. Na TV passava uma novela que percebi de cara que era antiga. Minha avó a assistia vidrada, enquanto minha mãe, poucos anos mais velha, fazia dever de casa (julguei isso em razão de ela estar escrevendo num caderno) e meu tio jogava um videogame portátil que já vi vendendo numa lojinha perto de onde eu morava e que custava barato. Eram jogos simples, “pixelados” e em preto e branco, organizados de A a Z sendo que metade eram variáveis de Tetris.

O telefone tocou. Ele ficava numa mesinha ao lado do sofá onde minha avó estava sentada. Portanto, foi ela quem atendeu.

— Alô? — Ouviu a pessoa que estava do outro lado da linha e respondeu: — Sim, sou eu mesma. Posso ajudar?

Quem quer que estivesse conversando com ela, disse algo que a fez ficar pálida. Ela ouviu mais um pouco e, como se estivesse em transe, devolveu o telefone ao gancho.

— Mamãe? — estranhou Sara. — Aconteceu alguma coisa?

Dona Rose parecia no mundo da lua. Quando Sara insistiu, ela disse:

— Seu pai…

Michael tirou os olhos do joguinho e a fitou.

— O que tem ele? — perguntou.

Os olhos da minha avó encheram-se de lágrimas. Eu já sabia do que se tratava. Meu avô morreu em 1991 que, provavelmente, era aquele ano em que estávamos.

De fato, minha avó deu a notícia aos dois e os três caíram em prantos. Apesar de nunca ter tido nenhum tipo de apego com o meu avô, eu fiquei triste pela notícia. Parecia um bom homem. 

Outro toque no ombro e outra mudança de cenário. Havia duas pessoas lavando a calçada de uma casa que eu reconheci de imediato. Era a nossa casinha lá de Belém. O sol brilhava fraco, indicando ser de manhã, e as duas pessoas eram minha avó e minha mãe, alguns anos mais tarde. E devo admitir que a versão adolescente da mulher que me gerou possuía uma beleza acima da média. Ela sorria entre conversas com a mãe, um sorriso meigo e cativante. Seus olhos carregavam uma leveza capaz de acalmar um coração. Mesmo que eles me lembrassem os olhos de Glen Vinográdov. Chutei que ela deveria ter uns quinze ou dezesseis anos.

Era gratificante vê-la feliz.

Um carro modesto — acho que era um Monza, da cor do vinho — estacionou diante da calçada. Elas fizeram o mesmo que eu: procuraram quem estava ao volante e viram que era o meu tio Michael.

— De novo pegando o carro dos outros emprestado? — brigou dona Rose quando o filho saiu do carro. Ele parecia ainda mais com o Michael que eu conhecia, pois assumira uma fisionomia corporal mais forte, provavelmente resultado de muito treino físico.

Sara iria dizer alguma coisa, mas desistiu assim que viu quem saiu pela porta do banco do passageiro. Era alto, moreno, um pouco musculoso e tinha uma bandana vermelha amarrada na testa. O sujeito possuía traços firmes, apesar de aparentar ter pouca idade. Não havia dúvida de que era o meu pai.

— Olá — ele acenou para as duas mulheres. 

Elas responderam (minha mãe estava escarlate) e minha avó perguntou para o meu tio:

— Quem é ele?

— Esse é o Antônio. Eu o encontrei na estrada, lutando contra vampiros.

A revelação não pareceu afetar nenhuma das duas. Acabei me perguntando se elas simplesmente não levaram o tio Michael a sério.

— Você é caçador? — perguntou dona Rose.

Encarei Hara de imediato. Ele deu de ombros e disse:

— Longa história.

— Isso mesmo — respondeu o jovem Antônio. — Podem me chamar de Tony. Faço parte do clã Kido e estava em missão.

— Aí eu passei de carro bem na hora — continuou meu tio, que falava cheio de si — e o ajudei a cuidar dos… quantos vampiros eram mesmo? Cem? Duzentos?... Não importa agora, o que importa é que derrotamos todos!

Por mais que tentasse disfarçar, os olhos da minha mãe toda hora repousavam no meu pai. E ele pareceu perceber — e posso jurar que vi um sorriso no seu rosto em determinado momento. Estavam flertando? Na minha frente?

E de fato os dois rapazes não estavam com uma aparência muito boa. Além de estarem suados, havia rasgos e sujeiras pelas camisetas deles, o que indicava que Michael não estava mentindo — pelo menos não totalmente.

— E então eu o trouxe pra tomar uma ducha — disse meu tio —, pois Tony disse que o portal mais próximo fica a quilômetros de Belém e eu não posso deixar um amigo andar desse jeito por aí.

— Se não for incômodo — acrescentou rapidamente meu pai para minha avó, um pouco sem jeito.

— Não é incômodo não — respondeu ela, abrindo um sorriso. — Meu marido também era caçador, portanto, eu sei bem o que todos vocês precisam enfrentar diariamente para manter a população a salvo.

Encarei Hara de novo. Eu nunca soube disso. Nunca nem soube que minha avó sabia o tempo todo sobre caçadores e vampiros. Isso significava que tio Michael também pertencia a um Clã Especial?

— Seu avô não era o verdadeiro pai do seu tio — explicou Hara, provavelmente lendo a interrogação que se formou no meu rosto. — Quando ele conheceu sua avó, ela estava grávida, e tinha acabado de ser abandonada pelo namorado. O que seu avô fez por ela foi admirável, devo dizer, pois não é qualquer um que cria duas crianças como se fossem seus filhos.

Ainda assim eu estava surpreso. Tony e Michael haviam entrado na casa durante a explicação do Guardião. Aproveitando que eles tinham saído de perto, dona Rose comentou:

— Bonito o rapaz, né?

— Bastante — respondeu Sara, que então se deu conta do que disse. — Mãe!

Minha avó riu e eu me senti vingado; Sara fazia questão de me deixar constrangido sempre que podia. Agora eu sabia a quem ela havia puxado.

Hara tocou no meu ombro e tudo mudou.

— Estamos em 1997 — informou ele antes que eu pudesse identificar onde estávamos.

— Você promete que vai voltar? — perguntou minha mãe, com a voz um pouco falhada.

— Eu prometo, Sara, assim que conseguir resolver tudo — respondeu meu pai.

— Não precisamos terminar. Eu estarei aqui, Tony, você sabe disso.

— Não tenho opção. Quero resolver tudo o mais rápido possível, mas não consigo ter certeza de quanto tempo levarei. Não posso deixar você presa a mim quando se há uma juventude inteira pela frente… Isso seria egoísta da minha parte. — A voz do meu pai carregava dor, tristeza. Eles estavam num terminal rodoviário pouco movimentado, mas repleto de ônibus estacionados. E a julgar que Tony tinha uma mochila nas costas, ele viajaria para longe.

— Pode me explicar o porquê dos meus pais estarem se despedindo assim? — pedi para o Guardião.

— Digamos que o seu pai nunca teve uma vida muito tranquila — explicou ele, enquanto Tony e Sara ainda conversavam sobre os motivos de não poderem manter o relacionamento. — Só pra você ter ideia, ele caçava vampiros pelo Brasil inteiro. Foi assim, inclusive, que ele conheceu a sua mãe, como você viu na viagem anterior. Naquela época ele morava em Honorário e foi parar em Belém.

— Haja dinheiro pra pagar tanta passagem — ironizei.

— Ele não viajava da forma tradicional dos humanos. Para quem conhece o mapa dos portais como a palma das mãos, você consegue chegar a qualquer lugar do mundo sem precisar pagar voos ou entrar clandestinamente em navios.

A informação me deixou pensativo. Logo pensei na viagem de avião que fizemos ao Canadá.

— A diferença está no tempo que isso leva, claro — inseriu Hara. — E pra quem mora em Honorário ou Firen — pois ambas as cidades se conectam — é meio complicado o ir e vir a Belém. Por esse motivo, seu pai deu uma pausa nas caçadas quando se apaixonou pela sua mãe e começou a morar perto dela. Mas isso não durou muito tempo, como você está vendo agora. — Ele apontou para o casal se despedindo.

— Por quê?

— Porque Tony Kido não nasceu para ter uma vida normal. Quem tem vocação para liderar batalhas ou guerras não consegue ficar de braços cruzados enquanto o mundo está desabando. A consciência pesa, cedo ou tarde. E seu pai sempre teve milhares de coisas em mente desde que se tornou um caçador. Desde fundar um grupo de caçadores que se reunissem para trabalharem juntos no combate contra os vampiros até encontrar, como é o caso de hoje em dia, o Caçador Lendário.

— Entendi — falei. — Meu pai terminou o namoro dele porque precisava caçar em Honorário.

— Nesse caso, não. Ele não retornaria à Honorário, mas sim para São Paulo, pois é onde fica um portal que leva a uma vila próxima à Cidade Kido, onde está o Palácio do Fogo.

Fiquei um pouco confuso, e tive que pensar um pouco para conseguir processar a aula de Geografia.

— Nunca nem fui nesse palácio — falei refletindo sobre como deveria ser o local. Eu só conseguia pensar em castelos que via em filmes medievais.

— Chegará o momento certo. A questão — continuou Hara — era que seu pai tinha pendências com o próprio clã antes de poder dar o próximo passo em direção ao seu grande objetivo, que era fundar a organização Ko-Ketsu. Ele ter se mudado para Belém atrasou um pouco o processo, mas a situação em Venandi estava tão feia que ele decidiu que viver uma vida normal não era seu destino.

Era mais ou menos como eu me sentia, pensei. Gostaria de ter uma vida normal e não me arriscar toda semana. Queria curtir com os amigos e com a Sophia em passeios sem precisar me preocupar se num dos prédios que passasse haveria algum enxame de vampiros ou se não havia alguém sendo assassinado por eles pelos diversos becos da cidade. Não dava. Conhecia sobre as ameaças e não podia fechar os olhos para elas. Imaginei meu pai tentando ignorar tudo e indo dormir agoniado toda noite.

— Eu te amo — ele disse dando um último abraço na minha mãe. — Espero que a gente se reencontre logo.

Tony estava quase chorando quando subiu no ônibus e a porta se fechou. Ele partiu e deixou uma Sara desconsolada para trás, de olhos marejados no veículo que entrava na avenida.

— Mas ele voltou — falei o óbvio, pois eu era a prova viva, o que não me impedia de sentir pena da minha mãe.

— De fato — concordou Hara. — Três anos depois. Seus pais se casaram, mas como você percebeu, jamais tiveram um casamento comum. Mas isso é história para eles mesmos contarem.

Uma dúvida me ocorreu. Calculei o ano e, considerando a idade que eu julgava ter o Tácio, meu irmão revoltado, perguntei:

— Nesse período fora, meu pai se relacionou com outra pessoa?

— Bem provável. Lembremos que ele e sua mãe não tinham mais vínculo algum quando ele foi embora.

Isso amenizava um pouco a indignação que eu sentia dele. Se Tácio nasceu entre 1997 e 2000, significava que meu pai não havia “pulado a cerca” para engravidar outra mulher. 

Hara tocou no meu ombro novamente.

— Pra onde vamos agora? — perguntei.

— Pra casa.

Tudo se apagou. Quando acendeu, percebi que ali não era nem de longe o meu quarto. Procurei, sem sucesso, por Hara. A praça estava cheia, mas nenhum sinal do meu Guardião.

De frente para mim, havia um homem familiar sentado num banco de madeira com os cotovelos apoiados nos joelhos. Ele vestia camiseta polo azul-marinho, bermuda jeans e chinelos. Mas o que mais me chamou a atenção foi o fato de ele estar observando a movimentação da praça com um sorriso no rosto. Não parecia ser o tipo de coisa que Sandro Macedo faria. E ele estava mais jovem.

Sandro se virou quando alguém o chamou:

— E aí, meu amigo!

O dono da voz era o meu pai. Segurando sua mão, havia uma criança que não foi difícil de saber quem era. Eu; pequenino (talvez uns três anos de idade?), magricelo e de cabelo bagunçado.

E a coisa mais surpreendente de toda a viagem no tempo aconteceu: Sandro riu quando me viu.

— Então é esse o famoso Diogo?

Corri para trás das pernas do meu pai, envergonhado. Sandro riu outra vez, acredite.

Os dois homens apertaram as mãos e foi a vez de uma mulher aparecer. Foi difícil não notar o quanto era bonita. Era uma loira de olhos castanhos, com o rosto cheio de sardas e riso fácil.

— Oi, Tony — sorriu ela.

— Magaly! — cumprimentou meu pai, beijando seu rosto. Ela também me olhou e fez um comentário sobre eu ser parecido mais com a minha mãe do que propriamente com ele.

— Graças a Deus ele não puxou a mim — Tony levou na brincadeira. — Prefiro mesmo que se pareça com a Sara, a mulher mais linda do mundo. E a sua filha, é mais parecida com quem?

— Veja você mesmo. Sophia, venha cá, querida! — ela chamou.

Eu (do presente) fiquei curioso. Havia muitas crianças pela praça, era difícil encontrar alguma menina parecida com ela no meio de toda aquela bagunça. Mas então ela veio, atendendo ao chamado. Correu na direção da mãe e a abraçou.

— Oi, mamãe?

Magaly virou-a para mim e para o meu pai. E ela era a mesma Sophia que eu conhecia, delicadinha e de olhos brilhantes. O cabelo estava bem arrumado e ela usava roupas combinando, um vestido azul-bebê, sapatos brancos com detalhes azuis e uma tiara de princesa na cabeça.

— Esse é o amigo do seu pai, Tony — apresentou a mulher. — E ali está o filho dele, Diogo. Diga “oi” pra eles.

— Oi! — Sophia sorriu. O mesmo sorriso que eu amava. Dessa vez, eu (do passado) não me escondi; saí por detrás das pernas do meu pai e fiquei de frente para a garotinha, sem tirar os olhos dela.

Tony disse:

— Parece que a Sophia já tem o primeiro pretendente.

— Passando no meu teste de fogo, será muito bem aceito — brincou Sandro, embora eu soubesse que lá no fundo havia uma verdade.

— Com quem ela se parece? — quis saber Magaly.

Tony e eu, juntos, analisamos pai, mãe e filha. Os traços nítidos que Sophia tinha do pai eram: os olhos (cor e formato), cor de cabelo e rosto sem sardas. E os traços que tinha da mãe eram: tom de pele, cabelo liso e sorriso. No fim das contas, meu pai respondeu o que eu certamente responderia:

— Um pouco dos dois. — E acrescentou: — Cabe a nós descobrirmos, daqui a alguns anos, de quem ela vai puxar a personalidade: se à tranquilidade do pai ou ao pulso firme da mãe. Aí eu poderei dar a minha sentença final.

Os três adultos riram e Hara apareceu diante de mim, tampando minha visão.

— Ops, parece que te deixei escapar no tempo sem querer. — Ele tocou no meu ombro e sumimos, eu ainda surpreso por saber que já havia encontrado Sophia antes, mesmo que nenhum dos dois se lembrasse.

De volta ao futuro. Ou melhor, ao presente. Meu quarto estava ainda com a luz acesa, do jeito que deixamos quando partimos naquela viagem maluca. Billy dormia em seu colchãozinho, alheio à nossa presença. Presumi que ou ele estava muito cansado para não ter acordado, ou então o Hara não estava ali realmente, apenas seu espírito.

Eu estava extasiado com tudo.

— Espero que eu tenha conseguido te esclarecer algumas coisas — disse Hara, caminhando até o interruptor.

— Muitas coisas, na verdade — falei. — Obrigado, treinador… quer dizer, Hara.

— Pode me chamar de treinador Rubens quando quiser. Só não faça o contrário.

— E o que eu faço agora?

Hara apagou a luz do quarto. Agora, eu podia ver apenas sua silhueta em meio ao escuro.

— Aí é com você. Pode contar à sua mãe como ela chegou até sua família atual, se quiser, mas encontre o momento adequado. 

— Ela provavelmente ficará surpresa quando descobrir que tem a mesma genética que meu pai e que os parentes biológicos dela são ladrões e assassinos — falei.

— E quanto ao seu irmão, ainda dá tempo de conversar com o seu pai a respeito. Eu te clareei algumas coisas e tenho certeza que você usará isso com sabedoria. De qualquer forma, nos vemos em breve. Esteja vivo até lá.

A silhueta do Guardião sumiu, me deixando sozinho com pensamentos e lembranças das viagens que não me deixaram dormir tão cedo. E eu sentia uma extrema gratidão ao Hara por ter me permitido ver de perto pessoas que sempre quis conhecer e que passei a admirar ainda mais.



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