Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 7

Capítulo 77: O prédio dos cadáveres

Os únicos capazes de matar — de verdade — um vampiro somos nós, os caçadores. Eu não sabia ao certo o porquê, apenas que temos uma espécie de DNA especial que faz com que eles se tornem pó ao serem atingidos pelas nossas espadas. Qualquer outro tipo de morte é inválida. Os vampiros retornam à vida caso não sejam mortos da forma correta, ou seja, se não forem deperizados; virarem pó. Depois de quanto tempo isso aconteceria, essa era a minha dúvida.

— As informações que eu tenho é de que uma testemunha entrou em contato com a polícia ao encontrar uma pilha de cadáveres em um prédio abandonado — Riku me explicou, enquanto nós três nos deslocávamos em direção à estação de metrô, próxima ao colégio Martins. — Pela descrição dessa testemunha, a polícia deduziu serem os corpos de vampiros. O problema foi que a ligação caiu antes que mais detalhes fossem passados, o que inclui o endereço exato do prédio e a quantidade de corpos. Por esse motivo o seu pai, para quem a polícia recorreu, nos deu um prazo até amanhã para descobrir onde é o local. Mas ele conseguiu a informação hoje, então quanto antes executarmos a missão, menos chances haverá de as aberrações ressuscitarem e fugirem.

— Eu nem sabia que a polícia sabia sobre os vampiros — resmunguei comigo mesmo. — Muito menos que conhecia o meu pai.

— Os vampiros sempre foram acobertados pela polícia e pela imprensa, maninho — disse Natsuno. — Para que a população não entre em choque e atraia mais perigo para si. Já pensou se todo mundo soubesse sobre os vampiros? Seria um caos danado! E os nossos pais são meio que uma ponte entre as autoridades e os chupa-sangues.

Eu também me questionava por que o meu pai passara a missão ao Riku e não a mim. Minha única hipótese era a de que Hebert havia quebrado a promessa e lhe contado sobre o Tácio, por isso Tony poderia estar me evitando.

— Certo — falei afastando o pensamento que, no momento, não era importante. — E ninguém tem ideia de quem matou esses vampiros?

— Não, muito menos o porquê de tê-los deixado lá — disse Riku.

— Sua mãe não estava errada, Dio, Isso é realmente muito estranho — comentou Natsuno. — Nenhum caçador deixaria de deperizar tantos vampiros quando há uma Disputa de Frascos que vale uma grana.

A essa altura já descíamos as escadas rolantes que davam acesso à plataforma da estação, que estava bastante movimentada.

— A não ser que tenha deixado os corpos para que alguém os encontrasse — falei pensativo. — Por quê?

Ninguém soube responder.

Depois de um breve percurso de metrô, nós desembarcamos na estação Jardim Silvânia e andamos por avenidas agitadas rumo ao quarteirão onde se localizava o prédio. Os bares e restaurantes estavam lotados, e era possível ouvir música ao vivo por todo canto, típico de uma noite de sábado no centro de Honorário. Mal sabiam aquelas pessoas que, não muito longe delas, havia um prédio repleto de vampiros mortos que poderiam reviver a qualquer momento.

— É aqui — disse Riku quando chegamos numa rua um pouco afastada do centro comercial. Ela era composta por fileiras de prédios residenciais.

— Qual deles? — perguntei amarrando firme a bandana vermelha na minha testa.

— O último.

A rua era curta e pouco movimentada. Alguns postes estavam com defeito. Natsuno começou a andar na direção que o Riku apontou, onde havia um beco.

— Espera — disse o Medeiros.

— O quê?

— Não vamos entrar desse jeito. Não se esqueçam que pode ser uma armadilha.

— O Riku tem razão — falei, estudando o cenário. Todos os prédios eram separados da rua por muros enormes cheios de câmeras de segurança, exceto por um: um hotel. — Acho que tive uma ideia.

 

O Natsuno realmente pensou que teríamos que alugar um quarto para podermos passar pela recepção do edifício. Nada disso. Nós só tivemos que atravessar o saguão sem olhar para trás, fazendo com que o segurança da portaria do hotel nos perseguisse pelas escadas apressadamente, gritando para pararmos. Os hóspedes que encontramos pelo caminho, a julgar pelas expressões faciais assustadas, provavelmente pensavam ser um arrastão. A fuga teve fim quando chegamos ao terraço e saltamos para o prédio vizinho, despistando de vez o nosso perseguidor.

— Esta será a primeira vez que eu vou entrar num prédio pela porta mais alta — ironizou Natsuno, quando pulamos para o terraço seguinte, que era um pouco mais alto.

Continuamos avançando de prédio em prédio cercados por diferentes tipos de ruídos, desde as sirenes barulhentas de uma ambulância até um amontoado de buzinas do congestionamento nas avenidas lá embaixo. Por fim, chegamos ao nosso destino: um edifício com um letreiro incompleto em uma das extremidades, na fachada; as placas, que outrora eram vermelhas e que agora estavam com a tinta desgastada, indicavam a palavra H TEL.

— Houve batalha aqui em cima — observou Riku, percorrendo os olhos pelo chão. Havia rastros de sangue seco.

— O sangue termina ali — apontei para um pequeno cômodo quadrado, que tinha uma porta entreaberta. Era a entrada para o prédio.

— Eu espero que o seu pai esteja certo, Dio, sobre o lance dos vampiros estarem mortos — Natsuno disse se estremecendo. — Eu não estou com uma sensação muito boa.

Riku não nos esperou.

— Não baixem a guarda — advertiu, sacando sua Takohyusei e abrindo a porta. — Metade dos corpos está espalhada pelo térreo. A outra metade está em algum dos andares de cima.

Nós o acompanhamos pela escada do corredor escuro, que descia fazendo um L, o som dos nossos passos ecoando e nos causando uma sensação de tensão.

— Eu fico imaginando a reação do coitado que encontrou esses corpos — cochichou Natsuno.

— Deve ter ficado traumatizado — falei. 

— Vamos nos separar — disse Riku, quando paramos. O corredor do último andar obviamente estava escuro, portanto nós ligamos as nossas lanternas, revelando dois quartos com as portas arrancadas das dobradiças. — Vocês dois vão lá pra baixo e eu procuro os corpos daqui de cima.

— Eu nem contei quantos andares são — disse Natsuno.

— Onze.

— Não sei se é uma boa ideia a gente se separar — eu falei, tentando ignorar o leve aroma de defunto. — Não sabemos o que vamos encontrar.

— Nada de interessante — replicou o Medeiros. — Vamos nos separar e terminar logo essa missão.

— O Riku tá certo, maninho — disse Natsuno. — Quanto antes sairmos desse lugar, melhor. Isso aqui é tenebroso.

Não tive o que fazer a não ser aceitar. Com isso, Natsuno e eu nos dirigimos à escada no fim do corredor enquanto Riku vasculhava os quartos daquele andar.

— Como funciona a comunicação entre a Terra e Venandi? — perguntei ao Natsuno, me lembrando de um dos questionamentos da Sophia.

— Sei lá, Dio. Perguntei isso para o meu coroa uma vez e ele disse algo sobre os telefones serem enfeitiçados, um negócio assim. Por que uma pergunta dessas a essa hora?

— É que meu pai ligou para o Riku hoje, e até hoje eu nem sabia que um tinha o contato do outro.

— Isso é ciúmes ou o quê?

— Ciúmes? Nada a ver! Eu só achei… esquisito.

Mas havia sim uma pontada de ciúmes, por mais que eu dissesse a mim mesmo que não.

E continuamos a nossa descida pela escadaria sem fim, aflitos pelo silêncio macabro do prédio e pelos ecos barulhentos que os nossos passos provocavam.

***

Riku encontrou a mesma situação nos dois quartos que invadiu: camas reviradas, móveis velhos derrubados e com parte da madeira danificada e uma boa quantidade de sangue pelas paredes. Ele não sabia ao certo se todo aquele sangue pertencia aos supostos vampiros assassinados ou às suas vítimas casuais. E para ele não importava. Seu foco estava em outra coisa.

Os responsáveis por todos aqueles cadáveres.

Riku se surpreendera quando Tony Kido apareceu na sua porta alguns dias atrás, logo após o garoto ter retornado de sua missão em Venandi. Quando criança, muito se ouviu falar daquele homem que era considerado um dos caçadores mais fortes de sua geração, o responsável por fundar uma organização reconhecida mundialmente nos dias atuais, e que Pablo (seu pai) enxergava como grande rival de juventude e amigo de confiança.

Não houve muita troca de diálogo entre os dois. Tony trouxe uma proposta de missão, uma vez que as coisas estavam bem corridas para o seu lado, e Riku exigiu informações certeiras. Nesse meio-tempo, o garoto se lembrou de todas as vezes que seu pai lhe contou histórias do passado, uma gama de aventuras que fizeram sua vida ficar por um triz e que maioritariamente envolviam o caçador do fogo. Por outro lado, Riku pôde ver pequenos resquícios de semelhanças entre Tony e o filho, Diogo. Apesar de ser um homem aparentemente sério, o veterano selecionava bem as palavras ao se comunicar, como alguém que tem o máximo de cuidado para não afastar ou assustar o ouvinte. Além disso, seus olhos eram cheios de vida, apesar de cansados.

E agora Riku estava lá, em uma missão oferecida pelo maior rival de seu pai e que fazia parte do clã que era considerado o arqui-inimigo do clã de sua mãe. Em outras circunstâncias, aquilo tudo era motivo para sentir vergonha de seus pais. Mas Riku também tinha recordações das vezes em que ouviu os pais comentarem que Tony nunca mediu esforços para apoiá-los.

Quando ele já estava no andar de baixo para fazer uma nova averiguação, ainda imerso em seus pensamentos, ouviu um ruído sutil atrás de si. Virou-se com a espada erguida, pronto para uma possível batalha, feroz feito um animal felino.

O corredor mantinha-se vazio, alheio à sua presença, escuro e impregnado com um forte odor da morte.

Riku retornou à averiguação, muito mais atento que antes e com uma alarmante sensação de perigo.

***

— Caramba, Dio, eu lembro de ter dito sim que você deveria contar sobre a nossa profissão para a Sophia, mas não imaginei que você fosse escancarar tudo. Você foi corajoso, hein! O pai dela já sabe que você contou?

Eu engoli em seco.

— Não da minha parte — respondi.

— E como será que ele vai reagir quando souber?

— Espero que ele, hã, entenda a situação. Eu só contei porque ela presenciou um monte de coisa. Não dava mais pra esconder, Natsuno, você sabe. A Sophia não é trouxa.

Natsuno deu de ombros, e continuamos a nossa descida pelas intermináveis escadas empoeiradas. O cheiro de cadáver havia ficado mais intenso, indicando que estávamos perto do nosso objetivo. Eu estava imensamente tentado a tirar a bandana da minha testa para amarrá-la no nariz. O fedor estava insuportável.

De repente, eu ouvi um baque fraco, rápido demais para que eu pudesse distinguir a sua direção. Parei no mesmo instante.

— O que foi? — perguntou Natsuno.

— Você ouviu isso?

— Isso o que, Dio?

— Acho que ouvi alguma coisa.

Natsuno riu.

— Cara, deve ser o medo — disse ele.

— Eu não estou com medo! Acho que ouvi sim alguma coisa, talvez lá fora.

— Eu ouço carros — disse Natsuno. — E buzinas. Normal. Estamos no centro de uma cidade.

Eu não estava convencido.

— Pô, Dio, para de drama. — Natsuno tornou a dar risada, encerrando de vez o assunto. 

Talvez ele estivesse certo; eu poderia estar ouvindo demais. Mas não deixei que isso me impedisse de continuar com a minha Takohyusei em punho, pronta para qualquer imprevisto.

***

Riku já havia descido dois andares e estava quase entrando no primeiro quarto do andar atual quando seu instinto novamente foi ativado. Dessa vez ele não esperou e correu para o outro quarto, onde teve certeza que viu uma ligeira movimentação em meio à fraca iluminação do corredor. Encostou-se ao lado do portal sem porta e, com a espada em mãos, exigiu:

— Quem está aí?!

Sua voz ecoou diante da quietude do corredor.

Nenhuma resposta.

Riku ficou quieto por um momento, a fúria crescendo dentro dele de forma a fazer a Takohyusei prateada tremer com o aperto das suas mãos. Ele decidiu que invadiria o pequeno cômodo e atacaria quem quer que fosse sem o mínimo de misericórdia.

— Se você não desembuchar, eu juro que vou cortar a sua garganta e espalhar o seu sangue por todo esse prédio! — avisou.

No momento em que ele começou a se mexer, alguém gritou:

— Espera! Não ataca.

Os olhos do garoto ficaram atentos ao observar uma pessoa andando devagar para fora do quarto. A lâmpada defeituosa do corredor o permitia enxergar pouca coisa, mas o suficiente para distinguir ser uma garota baixa, portando uma espada peculiar, embainhada à cintura, e com um rosto estranhamente familiar.

— Clã Cordeiro — disse ele, depois de analisá-la por completo. Além dos marcantes cabelos alaranjados por debaixo de uma touca preta, a caçadora era um pouco gordinha e tinha as bochechas repletas de sardas. Ela vestia roupas punk — blusa SWAG e calça jeans escura — e parecia conter no olhar uma ira contida.

— Eu sou a Kelan. E sei que você é o Riku. — Kelan olhava para a Takohyusei do vento com atenção, olhos que pareciam admirados.

— Como você sabe?

— Estudo na mesma escola que você. Te conheço do campeonato de futebol…

— Isso aqui não é lugar pra garotas — Riku a interrompeu, fazendo com que o semblante no rosto da garota se contorcesse de raiva.

— Quem você pensa que é pra dizer onde eu deveria estar? Eu também sou uma caçadora de vampiros!

— O que você quer aqui? — interveio ele, ignorando o protesto.

Kelan olhou em volta, preocupada. A atitude serviu para Riku entender que havia de fato algo fora do lugar naquele prédio.

— Acabei me perdendo dos meus parceiros ao seguir um vampiro. Ele me trouxe até aqui e… sumiu.

— Perdeu um vampiro de vista — disse Riku com um quê de deboche que irritou ainda mais a caçadora.

— Não era qualquer vampiro! — protestou ela. — Era um supremo!

Finalmente o Medeiros esboçou alguma reação em seu rosto indiferente. Seus olhos cinzentos se estreitaram sobre a garota de forma intimidadora, como se Riku tentasse decidir se ela falava ou não a verdade.

— Um vampiro supremo nesse prédio? — perguntou.

— Não preciso repetir. Ele está escondido em algum lugar, eu tenho certeza.

Riku começava a acreditar. Não havia motivos para a garota inventar uma mentira daquelas. Isso significava que não só eles corriam perigo, mas Diogo e o Natsuno também.

— Saia deste lugar o mais rápido possível — ordenou preocupado. — Irei encontrá-lo e matá-lo antes que esse maldito tenha a chance de gritar de dor.

Kelan engoliu em seco. Em seguida, seus olhos se arregalaram.

— Não gaste seu tempo tentando procurar algo que já te encontrou, Riku — disse uma voz grave, atrás do garoto.

Riku se virou. Na parte escura do corredor, entre o outro quarto e a escada que dava acesso aos demais andares do prédio, havia uma silhueta corpulenta com um par de brilhos carmesins, malignos e cintilantes. Kelan rapidamente desembainhou o seu sabre de esgrima e denunciou:

— É ele!

A silhueta deu um passo para fora do escuro, deixando-se visível, na medida do possível, para os dois caçadores. Era um homem robusto e de feição assassina. Além dos olhos vermelhos e dentes pontiagudos padrão das criaturas, aquele tinha uma aparência mais grotesca: suas sobrancelhas eram exageradamente finas e estavam unidas, quase como se fossem uma só; a pele do vampiro era ressequida e pálida feito papel; os olhos arregalados e as olheiras fundas lhe conferiam um ar de psicopata esquizofrênico; e as orelhas da aberração eram tão grandes e pontudas que se sobressaiam dos cabelos negros e volumosos, assemelhando-o a um monstrengo terrível de uma história em quadrinhos de terror.

— É de fato um vampiro supremo — observou Riku, analisando as vestes do inimigo enquanto o mesmo lambia os lábios. Ele vestia regata preta estampada com pequenos símbolos estranhos e azuis.

— Eu disse! — relembrou Kelan.

— Bem que me disseram que o jantar hoje seria bom — disse o vampiro, sorrindo com ar de maldade. — Fiz bem em ter vindo pra cá!

Mas a atenção de Riku estava voltada para algo no braço musculoso do vampiro. Algo que ele reconheceu imediatamente.

— Essa tatuagem… É idêntica à tatuagem que aquele maldito do Shaong tem no braço.

Kelan, curiosa, reparou; era uma espécie de eclipse azulado com uma cruz branca no centro da lua enegrecida. Ela jamais vira aquela imagem antes.

— Você está prestes a ser devorado e está se importando com uma mera marcação? — disse o vampiro.

— Eclipse do Caos — Riku disse para si, encaixando as peças. Enfim, encarou sério o vampiro e exigiu: — O que vocês querem?

A criatura mantinha o sorriso psicótico no rosto. Kelan sentiu calafrios quando os olhos dele travaram nela por alguns segundos, carregados de malícia e fome. Ele disse, com ar de diversão:

— Talvez você descubra… se estiver vivo até lá! — Então jogou o corpo na direção dos dois caçadores com as garras erguidas, diminuindo drasticamente a distância entre os três.

Observando as enormes unhas do vampiro descendo em sua direção, Riku conseguiu esquivar-se a tempo rolando para o lado e preparou-se para o contra-ataque. No entanto, vislumbrou o inimigo mudando a direção para Kelan, que até tentou desferir um ataque com a sua espada, mas o vampiro desviou, exibindo uma elasticidade fora do normal e a imobilizou por trás.

Kelan sentiu o sangue gelar. Havia uma ponta afiada em sua garganta, prestes a rasgá-la. Era a unha do vampiro.

— Eu posso deixá-la viva se você quiser — disse o vampiro, trocando o sorriso por uma expressão séria enquanto encarava Riku. — Basta você me entregar… — seus olhos desceram para a Takohyusei prateada nas mãos do garoto e ele concluiu: — a sua espada.

Riku gargalhou alto, fazendo não só o vampiro como também Kelan estranhar.

— Você vê graça nisso? — rosnou a criatura. — VÊ GRAÇA NA MORTE DA SUA AMIGA?

Kelan começava a sentir as costas suar. Ela olhou assustada para Riku, que disse:

— Eu estou rindo porque você nunca vai conseguir a minha espada, sua aberração maldita! Nem por cima do meu cadáver!

O vampiro pressionou um pouco a unha contra a garganta da caçadora. Um filete de sangue escorreu no mesmo lugar.

— Receio que você não tenha escolha — disse ele, com uma voz sombria e ameaçadora. — Ou você me entrega a espada, ou o sangue desta garota estará em suas mãos.

— Riku — suplicou Kelan, querendo engolir em seco, mas impossibilitada pela ponta letal. — Eu não quero ir de base…

Riku manteve olhos desdenhosos fixados no vampiro.

— Eu não me importo. A vida dessa garota não chega nem perto do quanto vale a minha Takohyusei.

Kelan fechou os olhos ao sentir a unha do vampiro sendo pressionada com mais força. Se ele a perfurasse só mais um pouquinho, um centímetro que fosse, sua morte seria inevitável.

— Eu avisei — rosnou o vampiro. — EU AVISEI!

Nesse momento, o desespero da caçadora chegou ao ápice. Em seguida, para o seu alívio, Riku gritou:

— Espera!

Ela abriu os olhos a tempo de vê-lo soltando a espada. A ponta da unha do vampiro desapertou um pouco diante do som metálico do objeto caindo no chão, porém manteve-se lá. Kelan de repente sentia frio.

Então seus olhos se arregalaram. O vampiro também pareceu levemente curioso com o que via. Riku fechara os olhos, e o ar à sua volta parecia estar agitado; os cabelos do garoto balançavam e seu corpo tremeluzia. O corpo de Riku começou a emanar uma aura cinza que iluminou o corredor conforme ficava mais densa. O tecido da pele exposta dele (rosto, pescoço e mãos) adquiriu uma espécie de brilho prata, como se estivesse coberta por uma camada de milhões de estrelas minúsculas.

— O que é isso? — disse Kelan impressionada. — Nunca senti tanto poder antes…

O ar agitado se tornara uma forte ventania que envolvia todo o andar e provocava uma sensação de poder. Poder que vinha do próprio Riku. Ele parou de tremer e abriu os olhos de repente, revelando cintilantes íris amarelas feito o sol.

O vampiro largou Kelan e deu um passo para trás, receoso.

— Não pode ser… — Sua voz vacilou. — Você é um…

— Caçador Elemental? — disse Riku com um sorriso sombrio. — Pelo jeito você já encontrou algum antes e, pela sua cara de espanto, não tem história boa pra contar.

A criatura trincou os dentes pontudos, seus olhos estudando o cenário ao redor. Kelan notou que ele parecia aflito. Ouviu-o dizer baixo:

— Não posso ficar aqui.

— Parece que o garotinho está assustado! — Riku vociferou com prazer. — Pena que não há mais tempo de se arrepender! Você vai morrer, sua aberração peçonhenta!

Riku avançou causando uma onda forte de vento e girou o corpo quando chegou perto do vampiro, desferindo um chute no processo. Mas o vampiro também era ágil; esquivou-se feito um vulto e fugiu para a escada, passando por Kelan e a ignorando completamente.

— Ah, mas você não vai fugir! — bradou Riku. Ele socou o vácuo e um poderoso tufão de ar foi lançado na direção do vampiro, atingindo-o em cheio e o lançando contra a parede da escada.

A boca de Kelan formou um grande "o". Ela não ousou se meter naquela briga insana; apenas assistiu o vampiro se levantar e sumir escadaria acima e um Riku muito diferente — literalmente brilhante — iniciar uma perseguição.

No instante seguinte, o corredor tornou a ficar vazio e silencioso, da forma que Kelan encontrara antes da aparição dos dois. A Takohyusei do Riku também havia sumido, como se o caçador nunca a tivesse derrubado no chão.

***

Natsuno e eu tivemos que cobrir os nossos narizes para que pudéssemos suportar o forte cheiro de podridão que pairava por todo o térreo. Encontramos dezenas de corpos em decomposição espalhados pelo saguão escuro e bagunçado, um mais horrível que o outro. Homens e mulheres de olhos vermelhos que pareciam nos encarar enquanto fazíamos o nosso trabalho de deperização.

Eles com certeza haviam morrido em batalha. Era possível perceber pelos olhares malignos e pelas bocas escancaradas, repletas de presas afiadas. Quem fez aquilo, uma vez que grande parte das criaturas eram vampiros evoluídos, foi alguém extremamente habilidoso. Todas as criaturas tinham cortes profundos pelo corpo e membros decepados.

E enquanto eu enfiava minha Takohyusei nos peitos das criaturas — temendo, claro, que elas fossem despertar a qualquer momento —, Natsuno colocava a areia nos frascos cristalinos vermelhos.

— Estranho, maninho — disse ele quando terminou a contagem, após deixarmos o saguão limpo de cadáveres. — Aqui tem quarenta e dois frascos.

Ele vestiu a camisa novamente, que tirara para usar de máscara e aguentar o fedor.

—  A informação que Riku recebeu era de que metade estava aqui embaixo e metade pelos outros andares — falei, amarrando a bandana vermelha (que também servira de proteção para as narinas) de volta na testa e percebendo aonde Natsuno queria chegar. — Mas estão todos aqui…

Nossas atenções foram atraídas quando um forte barulho estrondou lá em cima.

— Agora sim eu ouvi alguma coisa — disse Natsuno.

— Deve ser o Riku — falei. — Vamos!

Nós guardamos os frascos na mochila e disparamos pelo corredor rumo à escada no fim dele.

***

Kelan chegou ao terraço a tempo de ver o vampiro distante, saltando de um prédio para outro feito um sapo na lagoa. Porém, o que deixou seus olhos impressionados foi a agilidade com que Riku Medeiros o perseguia. Ele parecia planar a cada salto e seu corpo inteiro carregava um forte brilho prateado consigo. E não demorou para os dois desaparecerem na noite, ao alcançarem prédios mais altos que aquele em que ela estava.

— Kelan?

A garota virou-se desferindo um corte com sua espada, pega de surpresa, mas os dois garotos recuaram a tempo. Era Diogo e Natsuno.

— São vocês, pivetes — disse ela. — Enlouqueceram de vez? Eu podia tê-los matado!

— Hã, foi mal — desculpou-se Diogo.

— Eu acho que isso aqui não é lugar pra garotas — replicou Natsuno.

Kelan fechou a cara.

— Eu vou responder a mesma coisa que respondi ao seu amigo: quem você pensa que é pra querer dizer onde eu devo ou não estar?

Natsuno deu uma risada sarcástica e disse:

— Pelo jeito eu não sou o único que gosta de dizer a verdade.

Mas Diogo mostrou-se preocupado. Antes que Kelan revidasse Natsuno, perguntou:

— Você se refere ao Riku?

A caçadora fez que sim, depois olhou na direção onde houvera a perseguição, os prédios que se seguiam até o fim do horizonte.

— Caras, esse Riku é doidão! — disse ela. — Ele é um Caçador Elemental! Foi a primeira vez que eu vi um de perto…

Kelan estremeceu. Diogo e Natsuno se entreolharam imediatamente, agora preocupados.

— Se o Riku se transformou, Dio, é porque a coisa tá séria — disse Natsuno.

— Isso explica o barulho que ouvimos — concordou o amigo, então se virou para a caçadora, que se mantinha de olhos fixos numa certa direção. — Pra onde ele foi, Kelan? E atrás de quem?

Ela apontou para onde olhava.

— Pra lá. Ele está perseguindo freneticamente um vampiro supremo.



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