Volume 2 – Arco 6
Capítulo 74: Guardião
As férias não foram as mesmas depois dos acontecimentos daquela noite. A começar pela Sophia, que teve que retornar à Honorário na manhã do dia seguinte contra a própria vontade. Ela explicou que seu pai comprou as passagens no momento em que soube, através do Beto, tudo o que havia se passado, alegando que foi uma idiotice deixá-la hospedada num lugar tão longe dos seus olhos.
— Como se ele fosse um pai presente — Sophia comentou com frieza antes de nos abraçarmos e ela partir, acompanhada por seu guarda-costas e suas amigas inseparáveis.
Óbvio que eu odiei a ideia. Meu psicológico não era dos melhores e a presença da garota poderia servir de refúgio. Ainda assim, eu entendia o lado de Sandro Macedo. Ele não estava totalmente errado.
— Fica assim não, maninho. Vocês terão muito tempo pra namorar — consolou Natsuno quando dei a notícia aos meus amigos.
Segundo o Natsuno, o clima ficou bastante tenso entre os veteranos que estavam infiltrados na vila, que precisavam fazer uma varredura pela estação várias vezes por dia, pois Hebert acreditava que Tácio poderia estar escondido em algum lugar e que era um perigo iminente para os adolescentes e crianças hospedados. Felizmente, a história de que houve um ataque de um místico teletransportador, filho esquecido do Tony Kido, não foi espalhada. E Hebert assegurou, quando finalmente pudemos conversar a sós, que não comentaria com o meu pai sobre o Tácio até que eu conversasse com ele. Esse foi um pedido que eu fiz, pois precisava ouvir uma explicação sem que ele pudesse se preparar antes.
— Você tem certeza que ele nunca comentou nada com você? — eu perguntei mais uma vez, esperançoso.
— Eu já disse que não — respondeu Hebert impaciente. — E você deveria sair um pouco daqui de dentro.
— Hoje eu tô de boa. Só quero ficar sossegado.
— Isso não é bom, Diogo. Você não pode se deixar abalar.
Eu mudei de canal. Já estava há dois dias sem sair da pousada, sem vontade nenhuma de praticar snowboard com os meus amigos ou andar pela vila da estação sabendo que não encontraria Sophia. Não estava com cabeça.
— Esqueça tudo por enquanto — insistiu Hebert. — Eu também estou meio atordoado pela aparição do seu irmão, se é que podemos de fato chamá-lo assim, e queria entender também o motivo que o trouxe até aqui e como ele sabia onde estávamos. Você não é o único intrigado nessa história.
— O motivo ele disse — falei. — Raiva por ter sido o único filho abandonado.
— Continua raso. Deve ter algo a mais por trás disso. Tony não esconderia um segredo desses, a não ser que fosse para proteger alguém. Ou… ele esqueceu. — Hebert começou a alisar o cavanhaque, enquanto ficava estranhamente pensativo.
Encarei-o pasmo.
— Esquecer um filho?
— Finja que não ouviu isso. — Ele se levantou. — Estou indo lá pra pista preta. Você vem ou não?
A verdade era que eu já estava entediado. E, pensando melhor, Hebert tinha razão; ficar dentro de uma casa assistindo TV não resolveria os problemas. Decidi que tentaria, pelo menos até reencontrar o meu pai, não pensar no assunto.
— Bom garoto — sorriu o pai do meu melhor amigo.
Mas a conversa mais importante e esclarecedora veio só na última noite antes do fim da hospedagem. Eu acordei no meio da madrugada e desci para comer alguma coisa, faminto. Ao chegar na cozinha, assustei-me com a presença de uma silhueta, que acendeu a luz antes que eu gritasse ou fizesse qualquer coisa.
— Treinador? — afirmei, sentindo os olhos arder com a luz repentina, embora não estivesse certo de que deveria chamá-lo assim.
— O meu nome verdadeiro é Hara — disse quem eu pensava, até uns dias atrás, se chamar Rubens. — Hara Tenzuke. E como acredito que você tenha algumas dúvidas, peço que puxe uma cadeira e se sente.
— Quem dera fosse só algumas. Você vai me explicar tudo?
— O que estiver ao meu alcance. — Ele apontou para uma das cadeiras. Aceitei o convite e me sentei. — O que você prefere saber primeiro?
Pergunta difícil, pensei coçando a cabeça. Era como procurar agulha num palheiro.
Percebendo a minha indecisão, Rubens — ou melhor, Hara — resolveu iniciar a conversa:
— Eu me disfarcei de professor de Educação Física para poder observá-lo de perto, se essa é uma de suas perguntas. Mas já venho te observando, mesmo que de longe, desde que você chegou a Honorário, e acredito que você tenha desconfiado em muitos momentos.
— Nos meus primeiros dias na cidade — falei surpreso, recordando. — Eu sentia que havia alguém me vigiando. Então era você!
— Algumas vezes sim; outras vezes era o vampiro que fingia ser o diretor da sua escola. Devo dizer que o seu pai fez bem em atacá-lo de surpresa. Aquele era um vampiro supremo, muito mais forte que os evoluídos.
— Eu nem sabia que havia outra raça — comentei, me estremecendo só de imaginar quantas vezes o diretor assassino estivera por perto.
— Esses são meio difíceis de aparecer. Quando aparecem, é porque a coisa está séria.
— Certo — falei, segurando o bocejo —, ganhei dois stalkers assim que me mudei para a cidade… Por que, afinal de contas?
— Essa é uma das perguntas que sou incapaz de responder em sua totalidade no momento. — Observando meu cenho franzido, Hara acrescentou: — Mas posso te dizer que assumi a identidade fictícia de Rubens Almeida a fim de prepará-lo para um futuro próximo. Eu precisava formar um líder apto a tomar decisões difíceis, que se responsabilizasse pelos próprios erros quando necessário e que tomasse as rédeas da situação em momentos críticos. O futebol seria um meio fundamental para que isso fosse possível, pois fui informado de que você sempre foi ativo em atividades esportivas nas suas escolas anteriores e vi aí a oportunidade perfeita para me aproximar. Acontece que eu acabei me surpreendendo, pois, confesso a você e faço isso seguro de minhas palavras, você já possuía a capacidade de liderança necessária sem que eu interferisse. Constatei isso logo no primeiro treino que tive com o time de vocês.
O primeiro treino, pelo que eu me recordava, havia sido um desastre. A começar pelo fato de o treinador ter me colocado como goleiro. Imaginei que seu parâmetro fosse meio falho.
— Coloquei você de goleiro para observar como você se adaptava à situação. E considerando que você percebeu todas as falhas do seu time e conseguiu consertá-las… Bom, não preciso dizer mais nada.
— Isso só comprova que as pessoas responsáveis pela contratação dos professores do colégio Martins ou são preguiçosas ou são analfabetas — tive que dizer. — Ninguém olhou o seu currículo? Ou o dos professores de História e de Química? Ou o do diretor? Isso é preocupante.
— Alguns trâmites são fáceis de se fazer quando há pessoas influentes nos bastidores que querem que isso aconteça. Aqueles vampiros, exceto pelo Leonardo que de fato era formado em pedagogia, foram ordenados por pessoas que nem mesmo nós do Conselho dos Clãs Especiais temos conhecimento.
Leonardo era o professor de Química que todos apelidaram de careca. Certo dia, Riku descobriu que ele liderava um enxame que se alojava num hospital abandonado da cidade. Nós invadimos o lugar e… longa história.
— Conselho dos Clãs Especiais — repeti, olhando para Hara com uma curiosidade nova. — Então você foi enviado pelo Conselho dos Clãs Especiais para me tornar um líder — presumi.
— Não, exatamente. Eu faço parte… ou melhor dizendo, fazia parte… do Conselho sim, mas o Conselho não faz ideia de que estou nessa missão. Fui mandado por algo muito mais divino.
— E o que eu devo liderar?
— Só uma guerra. Suponho que tenha ouvido falar da Guerra Maldita.
— Hã, por cima — falei me lembrando das armaduras disfarçadas de caçadores. Ou era o contrário?
— E dos Nove Escolhidos.
— Também. Mas preciso de mais detalhes.
— Receio que eu não os tenha, ainda. E, pra ser sincero, eles não são tão importantes no momento. Tem muito chão pela frente, pelo menos até o cumprimento da profecia.
Profecia esta que eu sequer tinha ouvido na íntegra, apenas sabia de fragmentos rasos, ditos pelas armaduras, de que haveria uma guerra e algo sobre os Nove Escolhidos.
Aquele nem parecia o Rubens carrancudo que eu conhecia. Hara, que eu passei a considerar uma nova pessoa desde o momento em que ele me salvou, falava com uma calmaria diferente do tom rígido do treinador. Enquanto Rubens Almeida era um homem de poucas palavras, Hara não parecia ter problemas em detalhar o que explicava. Ocorreu-me, de repente, que ele já salvara minha pele antes, na noite em que o Natsuno e eu invadimos a escola em busca dos arquivos da Sophia.
— Esse tipo de coisa me deixa confuso — eu disse. — Todo esse lance de guerra, escolhidos, profecia e tals. E pensando bem, acho que vai ser meio estranho te chamar por outro nome a partir de agora.
— Mantenha Rubens Almeida quando estiver perto dos seus amigos. Já é o suficiente.
— E por que o diretor esperou tanto tempo para me atacar? Não consigo entender…
— Eu estava responsável pela sua segurança, e ele sentia a minha presença e sabia que não podia arriscar. A única brecha que o vampiro encontrou foi quando eu saí de cena para não ser descoberto pelo seu pai. E o resto da história você conhece.
Eu fiz que sim.
— Ele foi fatiado pelo meu pai e, no dia seguinte, não havia mais vampiros na escola. Pelo menos três deles sumiram — falei, pensando no professor de História e em dois dos três valentões que arranjaram encrenca comigo. Leonardo, o professor de Química que os alunos chamavam de careca e que liderava um enxame, era o único vampiro que parecia não ter ligação com os demais.
— Paulo Souza, que se disfarçou de professor de História, e outros dois vampiros que se passavam por alunos, todos vampiros mestiços — confirmou Hara. — O paradeiro deles é desconhecido até mesmo pra mim. Eles não tiveram tempo de sentir a minha presença, porque eu fui contratado uma semana depois, mas devem ter fugido ao saberem da morte do diretor.
Era possível ouvir o Jhou roncando da cozinha. Hara não parecia se importar em fazer pequenas pausas quando o som aumentava. E por mais que ele tentasse saciar as minhas dúvidas, outras muitas se formavam na minha cabeça.
Quem ou o que ele era? Como me salvou de uma queda como aquela? Por que o diretor tinha medo dele? Por que ele não se revelara antes? Ou por que ele próprio não atacou o diretor?
— Apesar de ser seu Guardião, existem coisas que não estão ao meu alcance — disse Hara ajeitando os óculos. — Não posso, por exemplo, me intrometer de forma direta nos obstáculos que surgiram ou que ainda vão surgir na sua vida. Meu dever é te proteger e te instruir, e até mesmo para essas coisas eu tenho alguns limites. Explicando melhor, eu posso te impedir de morrer, mas não posso enfrentar seu inimigo por você. O que aconteceu naquela noite em que seu irmão apareceu é um belo exemplo, se assim posso dizer.
— A propósito, obrigado por ter me salvado, embora eu ainda queira saber como você fez.
— Digamos que eu recebi poderes divinos quando fui incumbido dessa função.
— Então você é tipo… um Anjo da Guarda?
Hara soltou uma risada discreta. Dava para contar nos dedos quantas vezes eu o vi fazendo aquilo.
— Essa tarefa ficou para outra pessoa — disse ele.
— Yasmim... Você a conhece?
— Ela trabalha em conjunto comigo desde que me tornei seu Guardião. Mas, diferente de mim, a Yasmim é um dos Dez Condenados da Natureza.
Outras zilhões de perguntas ativaram no meu cérebro no mesmo instante. Antes que eu dissesse qualquer coisa, no entanto, Hara disse:
— Isso é história pra outro dia. Algumas coisas eu vou explicando aos poucos, pois é difícil pra qualquer um processar muitas informações de uma só vez. Agora, vamos ao que interessa: você.
— Eu? O que tem eu?
— Preciso que tente relaxar antes de tomar qualquer decisão. Você não pode deixar que as descobertas afetem o seu psicológico.
— Ótimo conselho para alguém que acabou de descobrir que tem um irmão místico assassino — falei com certa rispidez, pois Hara era a segunda pessoa que pedia para eu ignorar o fato.
— As coisas vão piorar — ele disse mantendo a calma, o que eu ainda achava esquisito. O Rubens Almeida com certeza me daria um esporro. — O seu destino está longe de ser parecido com o dos seus amigos. Eu vi uma parte do seu futuro no dia em que você subiu o Monte Zentaishi.
— Foi você quem impediu o profeta Zaoi de me contar, pelo que me lembro — observei.
— Porque é perigoso saber o que vem pela frente. As coisas precisam acontecer de maneira natural, qualquer pessoa pode enlouquecer ao passar por tantas perdas e sofrimento.
Hara começava a me deixar assustado. Simultaneamente, me lembrei da expressão apreensiva do profeta ao pôr a mão na minha cabeça.
— Não consigo deixar isso de lado, por mais que eu tente — eu fui sincero. — Meu pai abandonar um filho… Ele escondeu isso não só de mim, como provavelmente da minha mãe também. Eu não esperava isso dele!
— Tudo tem uma explicação — disse Hara serenamente. — Não estou dizendo para você deixar essa história de lado, ou qualquer outra que possa surgir daqui pra frente. Mas saiba fazer uma análise calma e prudente. Agir na emoção é a mesma coisa de se entregar para os sentimentos de mágoa e tristeza. Você vai precisar ser forte. Como falei anteriormente, as coisas vão piorar e muito.
Ele se levantou. Isso significava que a nossa conversa tinha terminado, embora eu ainda tivesse muitas questões a serem esclarecidas.
— Continuarei sendo seu professor e treinador por algum tempo — disse ele, sorrindo. — Eu acho que… peguei afeto pela profissão. Peço, então, que você tome cuidado para não me chamar pelo meu nome verdadeiro. Seria meio… desconfortável. Daqui a alguns dias eu prometo trazer mais respostas. Até lá, mantenha a mente tranquila.
Ele nem esperou que eu lhe respondesse; desapareceu da mesma forma que meu irmão fez, fazendo-me desconfiar que o teletransporte era um poder padrão que só eu não tinha.
De uma forma ou de outra, aquela parte das férias superou todas as minhas expectativas. Houve momentos bons sim, como as descidas de snowboard pelas montanhas, as fogueiras nos fins dos dias e o primeiro beijo entre mim e a Sophia; mas os acontecimentos negativos tiveram um impacto muito maior. Vimos de perto a aparência e a personalidade que o Pedro assumia quando perdia o controle, chegando ao ponto de querer nos matar, e descobri de uma forma não muito legal que eu tinha um irmão assassino e psicopata que só não tirou a minha vida porque quem eu pensei ser o meu professor de Educação Física me salvou e revelou ser, na verdade, o meu Guardião.
Todas essas coisas me levaram a crer que não poderia haver férias mais estranhas que aquelas. E que o melhor mesmo, após tanta emoção e descobertas, era voltar para a “paz” de Honorário — pois era muito mais seguro enfrentar hordas de vampiros pelos becos escuros da cidade do que um irmão teletransportador na beira de um penhasco.
Depois de tudo, eu só queria um pouco de sossego.
--- FIM DO ARCO 6 ---