Volume 2 – Arco 6
Capítulo 73: O adversário perfeito
Hebert Kogori desviava das árvores com facilidade, mesmo diante da grande velocidade com que avançava pela floresta escura. Qualquer segundo perdido poderia custar uma vida, e por esse motivo decidira que não perderia tempo chamando outros caçadores da vila para acompanhá-lo; deixou esse trabalho com o Beto, que conhecia grande parte deles, muito embora o mordomo tivesse relutado em acatar o pedido, uma vez que sua tarefa era manter a integridade da filha de seu patrão. Hebert precisava admitir que a lealdade do homem era admirável. Beto não precisava mais daquele emprego, já tinha patrimônio o suficiente para viver a própria vida na tranquilidade de uma aposentadoria. Todos sabiam, no entanto, que ele jamais faria isso devido a uma gratidão profunda que sentia por Sandro Macedo. Gratidão essa que possuía uma longa e emocionante história.
Eu prometo que nada acontecerá a ela, Hebert lhe assegurou com extrema convicção. Nem que eu dê a minha vida para salvá-la. Confie em mim, Beto.
Hebert, porém, contou uma mentira. Ele não daria sua vida por ela; mas sim por qualquer um dos três que estavam sumidos: Sophia, Diogo e seu filho Natsuno, pois, da forma que Pedro e Jhou relataram quando o avisaram sobre os ataques e o sumiço dos amigos, não deixava dúvidas de que o indivíduo que estava infernizando a vida dos garotos era um místico tão maldoso quanto perigoso. E era seu dever detê-lo antes que algo grave acontecesse.
Em outra parte da floresta, o gelo em torno do corpo de Tácio finalmente derreteu por completo, enquanto a pele dele soltava fumaça e seus olhos alternavam a todo momento entre o amarelo-citrino e o verde-esmeralda. Ele suspirou, enfim liberto da paralisação inesperada.
— Aquela desgraçada — rosnou tornando a assumir seus olhos esverdeados. — Me obrigou a usar esse poder nojento… Vou acabar com a vida dela!
No instante seguinte, Tácio se teletransportou. Estava decidido a pôr um fim na vida de Sophia e de qualquer um que se metesse em seu caminho.
***
Eu precisava encontrá-los, impedir que Tácio capturasse ou matasse Sophia. O problema era que não dava para saber se eu estava correndo na direção certa. A floresta era ampla e repleta de trilhas e bifurcações e escuridão. Minha esperança era ouvir algum ruído diferente, algo que indicasse a presença da garota, porém as coisas se mantinham silenciosas até demais.
Enquanto corria, eu pensava nas palavras convictas do místico. Ele dissera que éramos irmãos, filhos do mesmo pai. E a aparência dele, por mais que eu tentasse encontrar outra explicação, denunciava que Tácio tinha realmente alguma ligação com o senhor Tony Kido. Aquilo estava me deixando perturbado. A aparição de Rubens Almeida também. Sem mencionar o fato de eu ter sido salvo de uma queda de milhares de metros.
Engoli em seco só de imaginar o que teria acontecido se Rubens Almeida não tivesse aparecido. Decidi que não era hora de pensar naquelas coisas, eu precisava ficar focado, atento a qualquer som e a qualquer movimento.
Precisava encontrar Sophia antes do Tácio.
***
— O Dio não pode estar morto — Sophia ouviu Natsuno dizer pela vigésima vez, mais para si mesmo do que para ela. — Ele deve ter sobrevivido, eu tenho certeza disso! O Dio é duro na queda.
Queria a garota ter a mesma certeza. Não havia meios de sobreviver a uma altura tão gigantesca. Ela viu com os próprios olhos o namorado desaparecendo na escuridão do abismo colossal.
Sophia parou quando eles chegaram a uma pequena clareira, tropeçando nas próprias pernas de tão esgotada. Encostou-se a uma árvore e ofegou. Natsuno também parou.
— Eu não… consigo… mais — disse ela com dificuldade.
Natsuno não a julgava. Apesar de ter dentro de si os genes de caçador de vampiros, Sophia não possuía o mesmo preparo físico que ele ou o Diogo. E mesmo assim ela já tinha aguentado até demais.
— Vamos descansar um pouco — decidiu, estudando o perímetro ao redor. — Acho que falta pouco para chegarmos à vila. Eu só espero que o carinha psicótico não nos encontre aqui. Duvido que aquele congelamento foi suficiente para derrotá-lo.
— Congelamento — repetiu a garota, pensativa, então ergueu os olhos para Natsuno. — Eu não estou entendendo nada, tudo está tão confuso... Você também usa isso, não era coisa só do… Diogo — disse ela com a garganta seca, apontando para a espada na mão do Natsuno; ainda era difícil para Sophia mencionar o nome do garoto, que para ela estava morto. — Vocês matam vampiros?
— Vampiros? — tentou disfarçar Natsuno. — De onde você tirou isso?
— O Tácio mencionou algo sobre vampiros antes de nos atacar. Ele disse também que é irmão do Diogo.
A princípio, Natsuno arqueou uma sobrancelha ao ouvir a última frase. Ele já ia dizendo que aquilo era loucura quando então percebeu o porquê de ter achado Tácio, como Sophia o chamara, parecido com o pai do seu melhor amigo.
— Caramba… — foi o que escapou de sua boca.
Quando Natsuno decidiu que confirmaria a dúvida de Sophia — de que eles eram caçadores de vampiros, pois ela não era idiota, depois de tudo, a ponto de acreditar em uma mentira — os dois ouviram vários passos se aproximando. Natsuno apertou o cabo de sua Takohyusei e Sophia se levantou prontamente para correr. Antes que eles fizessem qualquer movimento, entretanto, foram surpreendidos pela aparição repentina de alguém ágil e veloz.
— Achei vocês — disse Hebert ao parar diante da dupla. Ele observou Natsuno soltar um longo suspiro após um pequeno susto e baixar a espada. Olhou para uma Sophia também aliviada e, sem perda de tempo, perguntou: — Onde está o Diogo?
No momento em que Natsuno abriu a boca para falar, outra pessoa respondeu:
— Diogo está morto.
Os três se viraram para a direção da voz, onde Tácio estava postado com uma expressão séria, atrás de uma árvore. Mais uma vez, Natsuno preparou sua espada ao fitar assustado o místico assassino intacto. Não imaginava que ele fosse escapar tão rápido da prisão de gelo.
— Aí está você — disse Hebert, sério. — Um místico. Mas também um caçador, consigo ver, por mais que você tente disfarçar. Quem diabos é você?
Tácio deu um passo para a clareira e seu rosto foi exposto pela luz vaga da lua. Foi impossível para Hebert não perceber de cara a semelhança física entre ele e seu amigo Tony Kido. A diferença era que o rosto do rapaz transbordava pura maldade. Tácio gritou:
— Sou quem vai acabar com vocês!
O místico se teletransportou para perto de Sophia e desferiu um golpe na direção de seu pescoço, fazendo-a arregalar os olhos com o susto. Para a surpresa de ambos, o soco foi bloqueado no último instante pelo Hebert, que lançou o inimigo na direção de uma árvore.
Tácio sumiu antes da colisão. Alguns segundos depois, reapareceu no meio da clareira como se nada tivesse acontecido.
— Você é rápido — disse ele, visivelmente incomodado. — Não é à toa que é o braço direito dele.
— Interessante você dizer que sou o braço direito “dele” como se eu fosse adivinho para saber a quem você se refere — ironizou Hebert, de olhos fixos nos cabelos de mechas castanhas do inimigo.
Natsuno encarava Tácio e cada vez mais ficava surpreso com a semelhança entre ele e Tony Kido. Perguntou a si mesmo se Hebert não percebera ou se apenas ignorava, pois era impossível não fazer conexão entre os dois.
— Pai, esse cara aí disse pra Sophia que é irmão do Dio — decidiu informar.
— Besteira. Tony não tem outros filhos — garantiu Hebert.
Tácio soltou uma risada maldosa ao ouvir as palavras do caçador.
— Parece que ele esconde coisas até de você, hein Hebert — provocou. — Imagino que, lá no fundo, você esteja decepcionado. Ou se sentindo traído. Vamos lá, admita, você sabe que as aparências não enganam.
— Diga onde está o Diogo — ordenou Hebert, tentando manter a calma.
— Provavelmente esmagado pela gravidade. Eu o fiz descobrir qual a sensação de voar sem ter asas.
Hebert lançou um rápido olhar para Natsuno, como se quisesse receber uma confirmação ou explicação do próprio filho. Foi Sophia quem respondeu:
— Esse assassino jogou o Diogo da ponte! Ele o matou a sangue frio, esse monstro!
— Sophia, você tem certeza? — perguntou Hebert.
— É verdade! — Sophia começou a soluçar. — Aconteceu tudo na minha frente. Foi horrível…
Tácio arregalou os olhos ao sentir um forte impacto em seu abdômen. Era uma joelhada certeira de Hebert Kogori, que se locomovera na velocidade de um relâmpago cortando o horizonte, e agora o encarava de perto com verdadeiros olhos amarelos.
— Você vai pagar pela vida do garoto — foram suas palavras.
O místico desapareceu e foi recebido por um chute do caçador a três metros de onde eles estavam pouco antes. Hebert parecia saber exatamente onde ele surgiria, como se previsse seus movimentos. Tácio notou, antes de desabar na raiz grossa de uma árvore, o corpo do caçador rodeado por pequenas fagulhas douradas que o machucaram no curto período de contato que elas tiveram com sua pele. Hebert era rápido demais.
Levantou-se rapidamente, rosnando feito um animal, e se teletransportou para atrás de algumas árvores.
— Não adianta fugir — vociferou Hebert da clareira. — Eu consigo sentir sua presença antes de você concluir o salto pelo espaço. E você com certeza sabe, já que pensa ser o sabichão, que faço parte do clã mais veloz de Venandi. Isso significa que o seu teletransporte é completamente inútil contra mim. Você encontrou o adversário perfeito.
Natsuno estava impressionado. Vira o pai em ação poucas vezes, e todas elas contra vampiros que não serviam de parâmetro para nada. Agora, lutando a sério e contra um místico poderoso, isso era uma grande — e interessante — novidade.
— Vocês caçadores são todos iguais no fim das contas — disse Tácio em meio ao escuro de seu esconderijo. — Por se sentirem superiores, acham que nós místicos viveremos fugindo pra sempre. Aí que está o engano! Nós cansamos de ser considerados o lixo da sua sociedade. Temos potencial para dominar o mundo!
— Você acha que quero quebrar a sua cara por causa de preconceito? — replicou Hebert. — Fica tranquilo que isso é pessoal, não tem nada a ver com você ser o que é. Pra mim não faz diferença!
— Assim como não fez pra ele? Hipócritas, isso é o que vocês são! Pregam essa paz mentirosa entre caçadores e místicos e acham que somos obrigados a engolir sem fazer careta! No fundo vocês são capazes de abandonar o próprio filho ao descobrir que ele nasceu com os olhos verdes da nossa raça. POR ISSO TODOS MERECEM MORRER!
Tácio já estava em cima de Hebert com o punho flamejante. Apesar de surpreendido pelo salto repentino, o caçador preparou-se para bloquear, sem deixar de notar a gritante similaridade entre ele e o suposto pai. Na fração de segundo subsequente, Tácio teletransportou-se para onde estava Sophia e sorriu; rodeado por fagulhas que ao mesmo tempo em que lhe davam velocidade, poderiam machucar quem estava por perto, sabia que Hebert não seria capaz de se aproximar deles e colocar a vida da garota em risco.
— Chegou a hora de você se juntar ao seu namorado! — ainda gritou para a pálida garota, que não teve tempo de reagir.
Tácio só não contava com uma quarta pessoa.
Feito uma espécie de meteoro, um feixe alaranjado o atingiu dolorosamente no ombro esquerdo com força, jogando-o para o chão a vários metros. Todos olharam para a direção da qual viera o ataque. Com o punho esfumaçando e estendido à frente do corpo, olhar sério no rosto e encharcado de suor, estava Diogo, visivelmente acabado, mas vivo e com uma feição que fez o coração de Sophia se alegrar.
— Não é possível — disse Tácio se levantando, olhando incrédulo para quem ele tinha certeza que havia matado. — Como…?
— Ela vai se juntar a mim sim — disse Diogo com bravura. — Mas não onde você pensou que seria, irmão.
Após essas palavras, cerca de seis ou sete vultos invadiram a clareira e se postaram em posição de luta ao redor do grupo, homens e mulheres com espadas em mãos e olhares amarelos que tinham grande destaque no cenário escuro. Beto, o mordomo de Sophia, estava entre eles. Eram todos caçadores de vampiros.
***
Tácio viu-se encurralado. Sophia estava a salvo. Não havia como as coisas estarem melhores.
Hebert avisou, assim que os caçadores, seja lá de onde eles surgiram, pisaram na clareira:
— Ele é um místico de teletransporte. Não baixem a guarda!
Como uma resposta, Tácio sorriu.
— Diga ao meu pai que eu mandei lembranças. — Nesse momento, alguns caçadores avançaram na direção dele, que ainda deu uma última olhada para mim antes de dizer: — Nos vemos em breve, maninho.
Depois sumiu, deixando apenas o vácuo onde segundos antes estava o seu corpo caído e milhares de dúvidas para trás.
— Porcaria — Hebert murmurou.
Fui envolvido por um forte abraço antes que pudesse dizer qualquer coisa, e meu pescoço foi encharcado pelas lágrimas quentes da Sophia.
— Eu pensei que tinha te perdido — disse ela.
Por mais que estivéssemos no meio de um grupo de pessoas, não houve espaço para sentimentos de vergonha ou constrangimento. Eu só conseguia sentir alívio. Por ter sobrevivido e por vê-la bem. Por saber que Tácio falhou com seu objetivo.
— Senhorita, você está bem? — Beto estava visivelmente preocupado.
Sophia me soltou para poder responder ao mordomo e explicar o que havia acontecido. Enquanto isso, Hebert se reunia com os caçadores adultos, que imaginei pertencerem à organização Ko-Ketsu, e lhes passava uma espécie de relatório. Vez ou outra me lançava um olhar que parecia significar alguma coisa. Presumi comigo mesmo que ele queria ter uma conversa a sós assim que pudesse.
— Eu sabia que você estava vivo, maninho — disse Natsuno quando já retornávamos à vila. — Eu só acho que você precisa me explicar como.
— É uma história meio confusa — eu disse, o que de alguma forma era verdade.
— A Sophia disse que te viu sendo jogado da ponte pelo seu irmão maluco! A propósito, temos um pequeno problema.
— E qual seria?
— Ela sabe que somos caçadores de vampiros. Quer dizer, não especificamente, mas desconfia pra caramba. E eu sinceramente não sei se dá pra inventar alguma história em cima disso. Essa é com você, Dio.
Considerando que fomos atacados por um assassino e quase perdemos a vida, revelar a verdade à garota parecia soar irrelevante, muito embora fosse desejo do pai dela esconder tudo e não o meu.
— Isso eu resolvo depois — decidi, observando Sophia alguns metros à frente ao lado do mordomo. Era como se Beto não a quisesse perto de mim, o que eu achava coerente depois do ocorrido. — Pedro, Jhou, as meninas… Eles estão bem? Você tem notícias?
— Meu velho disse que estão na pousada, a salvos. Foram eles que retornaram à vila para avisar o que estava acontecendo. Eu não sei se teria dado conta do seu irmão sozinho se meu pai não tivesse aparecido. Falando nisso, Dio, que história doida é essa?
Era o assunto que eu não queria pensar, tampouco aceitar. Não só por Tácio dizer ser meu irmão, mas também por ser um assassino covarde. Eu disse a mim mesmo que o meu pai tinha muito a explicar, e precisava ser uma história bem convincente.
— Não faço ideia — respondi abismado. — A única coisa que eu sei é que as meninas não encontraram os fantasmas que queriam, mas algo muito pior. Eu só espero que elas não fiquem traumatizadas.
Quanto a mim...