Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 72: Reunião de irmãos?

Pedro teve muito mais trabalho para acordar Jhou do que teve com o Natsuno. O grandalhão dormia um sono pesado e roncava feito o motor de uma motocicleta, o suor escorrendo pelo seu rosto. Ana e Jéssica, já libertas e choramingando porque pensaram que Sophia poderia ter sido raptada, explicaram — mesmo que de modo bem atropelado e confuso — tudo o que havia acontecido, desde a saída dos dois garotos (Pedro e Natsuno) para a floresta até o momento em que Jhou deixou a cabana para investigar quem havia quebrado a janela e as viu amarradas e caídas no chão ao retornar.

— Jhou ficou parado na porta feito uma estátua, olhando pra gente sem dizer nada… — disse Jéssica.

— E o homem misterioso apareceu bem atrás dele… — continuou Ana, sem que a amiga finalizasse.

— Acho que ele já estava lá — cortou a outra.

— Não estava não! Ele apareceu do nada! O Jhou levou um susto e deu um pulo pra frente, aí o cara misterioso disse: “Eu não vou te matar. Jamais faria isso com alguém igual a mim”.

— Não, ele disse outra coisa. Algo como “alguém da mesma raça que a minha”, seja lá o que isso quer dizer.

Apesar da discórdia constante entre a dupla, Pedro entendeu o recado; provavelmente o “cara misterioso” que elas citaram se referiu ao fato de tanto ele quanto o Jhou serem místicos.

— Eles começaram a brigar — continuou Jéssica.

— O Jhou, né, você quer dizer? Porque o outro cara nem reagiu nem nada, só ficou esquivando. E ele era bom…

— Ana! Você está admirando o inimigo? — repreendeu a amiga.

— Lógico que não! — apressou-se em dizer a outra. — Eu, hã, só estou detalhando.

— E então? — perguntou Pedro, que ainda tentava acordar o amigo.

— O Jhou perdeu — lamentou Jéssica. — E o cara misterioso só precisou fazer uma coisa.

Pedro ficou curioso. Não era novidade nenhuma que Jhou não possuía habilidade de luta. Ainda assim, ele era um místico super forte e tinha grande resistência física. Era difícil imaginar ele sendo derrotado por apenas um golpe.

— Que coisa? — indagou.

— Ele colocou um pano no nariz do Jhou. Isso o fez apagar na hora.

Não era o que Pedro esperava ouvir.

Finalmente o grandalhão abriu os olhos, em seguida ele se impulsionou para frente tão abruptamente que Pedro foi obrigado a sair do caminho para não ser atropelado. Jhou ficou sentado, olhando confuso ao redor. Pedro o ajudou a recobrar a consciência e lhe explicou onde estava e o que havia acontecido.

Ao mesmo tempo em que fazia isso, pensava no Natsuno e no grito da floresta que imaginava ser de Sophia. Precisava se apressar em avisar o Hebert antes que algo mais grave acontecesse.

— Me desculpa — pediu o grandalhão ao fim da explicação. — Eu tentei derrotar o inimigo, mas falhei feio.

— Se isso serve de consolo, eu e o Natsuno também fomos derrotados. — Pedro colocou a mão no ombro do amigo, que agora o olhava incrédulo.

— E pra onde ele foi?

Pedro lançou um olhar indagador às garotas.

— Embora — disse Ana simplesmente. — Pensei que seríamos roubadas, ou até mesmo sequestradas. Não dá pra entender esses criminosos de hoje em dia.

— Vocês reconheceram o rosto dele? — perguntou Pedro. — Porque eu e o Natsuno nem tivemos tempo de vê-lo.

Os três balançaram a cabeça negativamente.

— E cadê o Natsuno, afinal de contas? — Jéssica quis saber.

— Nós ouvimos um grito enquanto vínhamos pra cá. Suspeitamos que fosse a Sophia, então decidimos nos separar.

As meninas trocaram um olhar preocupado.

— Ela está sumida desde que nos separamos para entrar aqui — disse Jéssica, com os olhos marejados. — Ela deve ter sido a primeira vítima do cara misterioso, por isso não apareceu até agora.

— Não, exatamente — disse Jhou coçando a cabeça. — Ela tinha um encontro com o Diogo lá na ponte.

— O quê?

— Como assim?

— Isso explica a dor de barriga dele — disse Pedro para si mesmo. — De qualquer forma, temos que voltar à vila e avisar ao pai do Natsuno. Se esse "cara misterioso" foi capaz de derrubar nós três com extrema facilidade, não quero nem pensar no que ele pode fazer com a Sophia. Todos nós estamos correndo perigo.

— Eu não vou deixar a minha amiga por aí, à mercê daquele lunático! — retorquiu Ana.

— Ela pode estar precisando de nós! — Jéssica ajudou. — E até parece que o Natsuno ou o Diogo, dois adolescentes que só sabem jogar bola, conseguem dar conta de um serial killer sozinhos.

— Um serial killer que não mata — ironizou Jhou. Depois se arrependeu da brincadeira ao ser fulminado por verdadeiros olhares assassinos por parte das garotas.

Pedro suspirou. Não sabia que seria tão complicado lidar com aquelas duas. Mas não as deixaria continuar com aquilo de forma alguma, era perigoso demais não só para elas, como para seus amigos também. Precisava agir com sabedoria para salvar seus amigos.

***

— O gato comeu sua língua? — perguntou o sujeito que acabara de dizer que era meu irmão, após longos segundos de silêncio. — Eu pensei que receberia pelo menos um abraço acalorado. Esperei tanto por esse encontro!

— Eu não tenho nenhum irmão! — vociferei, irritado pelo deboche em sua fala.

— Pergunte ao nosso pai. Pode mencionar meu nome também que, a propósito, é Tácio. Quem sabe assim, pelo menos uma vez na vida, ele seja sincero com você? Porque eu tenho certeza que ele já te escondeu muitas coisas. Caçadores, organização secreta, vampiros…

Minha cabeça estava fervilhando. Eu estava diante de uma pessoa que era mais parecida com o meu pai do que propriamente eu, era quase uma versão mais jovem dele. E a julgar pelos olhos verdes, Tácio era um místico.

Ele devia estar mentindo, Tony não seria capaz de esconder que tinha outro filho, ele jamais faria isso. No entanto, parando pra pensar, ele já guardara tantos segredos…

Eu estava confuso.

— Diogo, o que está havendo? — Sophia sussurrou atrás de mim, lembrando-me de que ela ainda estava ali. — Ele é mesmo seu irmão?

O místico sorriu. Em seguida, começou a dar passos lentos na nossa direção. Recuei devagar, pronto para uma possível investida dele.

— Eu não tenho irmãos — assegurei, embora uma parte de mim dissesse que ele poderia estar sendo sincero.

— Ah, tem sim — debochou o estranho. — Basta olhar bem pra mim. Tenho certeza que sou parecido com aquele maldito; nós somos irmãos por parte de pai. 

Nesse momento, um feixe de luz cinzento escapou das nuvens e recaiu sobre ele, me possibilitando enxergá-lo melhor e notar um detalhe que foi crucial para abalar ainda mais a minha incerteza: os cabelos do místico, caídos para o lado, possuíam mechas e pontas castanhas; os traços do clã Kido. 

— CONSEGUIU VER?

Tácio arregalou os olhos feito um psicopata e avançou. Preparei a minha espada e gritei:

— Sophia, corre!

Sophia disparou em direção à ponte e eu desviei de um chute. Quando fiz menção de contra-atacar, Tácio sumiu.

— O quê? — estranhei; e fui atingido por uma pancada forte na bochecha esquerda. Desabei na neve com a lateral do rosto pulsando, totalmente dolorida.

— Eu esperava mais — disse Tácio se recompondo do golpe que acabara de me acertar. Encarei-o com os dentes trincados. — O nosso pai sentiria vergonha se te visse assim, no chão, derrotado por apenas um golpe.

— Eu estou longe de ser derrotado. — Guardei a espada e me levantei concentrando energia interna no braço direito. — Defenda-se disso! Punhos de Fogo!!!

Não houve flashes alaranjados. Os Punhos de Fogo, um pequeno aprimoramento que fiz na técnica especial básica do meu clã, falharam pela primeira vez desde que os dominei, perdidos ao vento, ou nem mesmo isso. Tácio soltou uma gargalhada.

— Acho que fogo e gelo não combinam — disse ele. — O que pretende fazer agora, Diogo? Eu já derrotei todos os seus amigos, cada um deles. Nenhum foi páreo pra mim. Pelo contrário; foram presas fáceis e caíram em todas as armadilhas que montei. Mas eles não foram os únicos, não é verdade? Tenho te observado desde que você chegou aqui. Confesso que me diverti com o seu triunfo de descer uma montanha numa prancha. Gosta de neve, é? Esquisito para quem faz parte do clã do fogo. Você conheceu também alguns lugares interessantes, não? Viu os pinguins, as montanhas, algumas cavernas. Como você é patético! Foi fácil te trazer até este lugar, você não tirava os olhos dessa sua namoradinha. Bastou eu lançar a isca. Não imaginei que as coisas seriam tão simples.

— Você é um stalker, então? — questionei, pois tudo começou a fazer sentido, todas as vezes que eu me sentia vigiado ou flagrava o Hebert olhando desconfiado ao redor, provavelmente com a mesma sensação. — E teve todo esse trabalho a troco de quê? Pra me matar?

Pelo canto do olho, vislumbrei Sophia chegando à ponte. Eu precisava enrolar Tácio para que ela corresse o máximo que pudesse.

— Com certeza! — respondeu ele. — O filho abandonado matando o filho favorito. Imagine a tristeza de Tony Kido quando souber que o seu pequeno Diogo morreu. Todo sofrimento pra ele ainda é pouco!

— Você foi responsável pelos boatos da cabana — presumi, pensando no assunto de repente. — Fez parecer que o lugar era mal assombrado, assim conseguindo atrair pessoas para poder matá-las.

— Não fale besteiras! Eu não perderia meu tempo com gente insignificante. Eu estava na cabana, sim, mas não imaginei que haveria adolescentes idiotas por perto bisbilhotando um lugar tão irrelevante! Ah, e quanto à sua namoradinha fugindo, fica tranquilo que eu posso capturá-la a qualquer momento. Não adianta você tentar me enrolar. Veja só!

Mais uma vez, Tácio sumiu como se jamais tivesse estado ali. No segundo seguinte, Sophia gritou:

— AAAAAHHHH!!!

O místico já estava lá, no meio da ponte, diante dela! Sophia recuou alguns passos, encarada por um olhar completamente maldoso. Eu não podia ficar de braços cruzados.

— Ei, Tácio! — gritei enquanto corria o mais rápido que podia na direção deles. — Seu assunto é comigo, e não com ela. Deixe-a em paz!

Tácio surgiu na minha frente de repente, fazendo-me parar de forma abrupta. Já estava claro que seu poder era uma espécie de teletransporte, o que seria um problemão.

— Vamos lá, valentão, lute comigo — disse ele. — Se você me vencer, eu deixo sua namorada escapar ilesa.

Dito isso, ele desferiu um chute na altura do meu peito. Fiquei na dúvida entre esquivar e bloquear. Antes que eu tomasse qualquer decisão, ele se teletransportou e deu uma joelhada nas minhas costas. Virei-me rapidamente, tentando ignorar a dor aguda no pé da coluna, e apliquei uma rasteira. Em vez de pular, Tácio usou seu poder novamente para desaparecer e aparecer à minha esquerda. Tentei um novo golpe, depois outro. Ele manteve o mesmo processo de salto pelo espaço. Parecia impossível obter algum tipo de contato físico com ele. O maldito parecia estar brincando comigo.

— Como falei, eu esperava mais — disse ele, sumindo e reaparecendo em outro lugar, sucessivamente. — Para quem quer proteger alguém, isso que você está me apresentando não é o suficiente. 

Eu começava a ficar cansado.

— Está ficando mais lento ainda, Diogo?

— Pelo menos eu não preciso ficar fugindo a todo momento!

— Acha que eu tô fugindo? Essa é a desculpa?

Tácio parou de usar o poder. Imaginei que ele fosse teletransportar novamente, mas dessa vez ele esquivou do meu soco e acertou a minha barriga com as costas da mão, firme.

— Não! — ouvi Sophia gritar enquanto eu perdia o ar.

O místico completou o ataque com o mesmo punho, subindo-o na direção do meu queixo e, mais uma vez, me derrubando.

— Te derrotei — disse ele com divertimento. — Sabe o que isso significa, né?

No momento em que ele sumiu, eu soube para onde ele iria. Levantei-me ignorando todo tipo de sintoma que estava sentindo e avancei desesperado na direção da ponte. Tácio estava diante da Sophia, e pretendia matá-la. Eu concentrei toda a minha energia no braço direito. Os flashes de fogo, eu sabia, não apareceriam diante de todo aquele frio, mas o ataque base do meu clã, por ser uma técnica de incorporação, com certeza faria efeito.

Invadi a ponte e ataquei, libertando toda a fúria de dentro de mim:

— PUNHO DE FOGO!

Senti uma forte quentura no interior da mão quando ela brilhou. O golpe foi tão forte que meu corpo se impulsionou para frente. O alvo era a cara do filho da mãe.

No último momento, Tácio se virou, sorriu e agarrou o meu punho com as duas mãos. Notei que suas palmas estavam esfumaçando, mas ele não parecia sentir dor.

— O clã Kido deveria sentir vergonha por ter um Herói Herdeiro tão frágil e despreparado igual a você — disse ele, então me jogou para fora da ponte.

— DIOGOOOOOO!!! — ainda ouvi o grito desesperado da Sophia, que ficou lá em cima sozinha com um psicopata, depois disso eu só consegui sentir o vento forte e gelado da queda. Aquela era a minha morte.

***

Sophia não conseguia acreditar na cena que presenciou, era impossível aceitar que Diogo estava morto. Ela correu desolada até a beira da ponte e olhou para baixo — assustando-se com o abismo negro e sem fim.

— Seu monstro! — gritou com os olhos marejados. — Olha o que você fez!

Tácio nada disse. Fitava a garota com uma feição divertida. Parecia sentir prazer em ver seu sofrimento. Começou a se aproximar dela.

— Não há motivos para ficar triste, donzela. Você estará ao lado dele quando menos imaginar.

Sophia fez a única coisa que veio à sua mente: atirou a lanterna no rosto do assassino e engatou uma fuga desesperada em direção à floresta. Sentia pavor ao imaginar Tácio surgindo ao seu lado de repente, como fez tantas vezes com o Diogo, no entanto não havia escolha.

Adentrou a floresta. O místico manteve-se imóvel na ponte, observando o pânico de sua próxima vítima. Decidiu brincar um pouco. Começou a persegui-la sem usar seu poder.

— Você não vai conseguir escapar! — gritou assim que imergiu na floresta.

O medo de Sophia era acabar tropeçando ou esbarrando em alguma árvore e cair. Por algum motivo ela conseguia enxergar o cenário à sua frente, embora com pouquíssima nitidez, mas o suficiente para conseguir desviar dos obstáculos. Tácio gritava cada vez mais perto, o que a deixava ainda mais apavorada. Precisava encontrar o caminho de volta à vila e avisar qualquer pessoa de que havia um assassino por aí e que Diogo estava… morto.

Seu corpo inteiro estremeceu com a lembrança do garoto sendo jogado da ponte precipício abaixo. Sophia não queria — não podia — aceitar que seu namorado teve uma morte tão horrível. Seu rosto estava coberto de lágrimas.

— Estou te alcançando, Sophia — avisou Tácio, agora muito próximo.

Como ela conseguia correr de forma tão veloz, a garota não fazia ideia. Talvez fosse a adrenalina de querer sobreviver. Esse pensamento a fez se lembrar das suas amigas e do Jhou, que também poderiam estar correndo perigo.

— Mas já te alcancei? — disse o assassino, poucos metros atrás dela.

Não havia escapatória, o inevitável aconteceu: ele a alcançou. Sophia não imaginava que sua vida terminaria tão cedo e de forma tão horrível… E quando Tácio esticou a mão para agarrar o cabelo dela, Natsuno surgiu de algum lugar e enfiou um murro certeiro em sua cara.

— Toma isso, desgraçado! — ainda disse o garoto, com a mão do golpe repleta de fagulhas brilhantes. O místico foi parar no tronco de uma árvore a vários metros, onde bateu forte as costas e caiu.

Sophia se virou a tempo de ver Natsuno aterrissando na neve, sério. Ele rapidamente se aproximou dela.

— Natsuno… — ela começou.

— Vamos! — o garoto apressou-se em dizer, dando uma rápida olhada para o místico caído.

Os dois dispararam floresta abaixo. Natsuno sabia que seria questão de tempo até o sujeito misterioso se levantar e retomar a perseguição. Precisava levar Sophia para fora do perigo.

— O que você estava fazendo sozinha na floresta? — perguntou ele, depois deu uma rápida olhada por cima do ombro.

— Eu estava com o Diogo, na ponte… — Sophia arfava. Não aguentava mais correr, seu limite já havia sido ultrapassado havia muito tempo.

— Com o Dio? E cadê ele?

A garota não conseguiu responder. Como tinham chegado a uma clareira não tão escura quanto o restante da floresta, Natsuno notou que muitas lágrimas brotavam dos olhos dela. Sophia começou a soluçar.

— Sophia! — insistiu Natsuno.

Nesse momento, Tácio surgiu na frente dos dois, fazendo-os derrapar na neve antes de pararem. Ele massageava a bochecha atingida, de cara fechada, e encarava Natsuno com verdadeiros olhos maldosos.

— Aquilo doeu — disse sério.

— Era pra ter doído muito mais! — gritou Natsuno. — Acha bonito atacar as pessoas pelas costas? O que você quer, hein, seu esquisito? 

— O que eu quero? — Tácio sorriu. Natsuno sentia que já o tinha visto antes, em algum lugar. — O que eu queria — continuou o místico — já foi cumprido com sucesso: matar o seu amiguinho que você chama de… como é mesmo? Ah, claro, pelo apelido patético de Dio.

Natsuno lançou um olhar incrédulo para Sophia, dando-se conta do motivo do choro da garota. Não podia ser verdade.

Sacou sua Takohyusei roxa.

Fingindo espanto, Tácio perguntou:

— Pretende me matar com uma espada? Duvido você conseguir me…

Natsuno não o deixou completar; desferiu um golpe rápido, na direção da barriga, acertando, no entanto, apenas o vácuo.

Tácio surgiu atrás dele, com as duas mãos entrelaçadas acima da cabeça e prontas para ir ao encontro da nuca do Kogori. Ele as desceu.

— Morre, pirralho!

Foi tudo muito rápido: Natsuno virou-se com os olhos arregalados, Sophia soltou um grito agudo, Tácio desceu o golpe fatal — mas então parou no meio do caminho feito uma estátua quando uma camada fina de gelo cobriu todo o seu corpo. Rapidamente, a camada foi engrossando dos pés à cabeça do místico, que só podia mexer os olhos, até enfim imobilizá-lo por completo.

Natsuno recuou assustado. Atrás do cara estranho estava Sophia com os olhos fechados e as mãos estendidas na direção dele. A garota abriu os olhos e ficou mais assustada que Natsuno ao ver Tácio congelado. Num susto, recolheu suas mãos.

— O que foi que aconteceu?

Não foi difícil para Natsuno ligar os pontos. Ainda assim, não havia tempo para explicação.

— Temos que dar o fora daqui — disse ele apressado. — Eu não confio nesse psicopata, ele é perigoso demais!

***

A única coisa que eu sabia era que meu corpo despencava no meio da escuridão e em breve colidiria feio no chão. Era óbvio que eu estava desesperado com a ideia da chegada deste momento, que culminaria na minha morte iminente, mas meus pensamentos estavam todos depositados em Sophia sozinha com o místico assassino. Ela não merecia perder a vida tão jovem, com tanta coisa para viver pela frente…

Acabei pensando em vários momentos que tive com ela — e com os meus amigos também. As partidas de futebol, as caçadas pela cidade, o companheirismo que sempre esteve presente… E quem diria que tudo terminaria com uma queda da ponte?

Deduzi comigo mesmo que a vida era injusta. Tudo estava começando a dar certo e, de repente, caiu por água abaixo. Depois de muitos meses de espera eu finalmente consegui beijar a garota que amava, para no fim aparecer um completo estranho dizendo ser meu irmão e me jogar de uma montanha.

Eu sentia que o chão estava próximo. Perguntei-me se seria melhor esborrachar numa superfície plana ou ser espetado por uma rocha pontuda. Talvez, com sorte, eu caísse no rio da cascata que não parecia tão distante. Nenhuma das opções, para ser sincero, me agradava. Estava tão frio…

Tão frio…

Acordei na ponte de madeira pela qual havia sido jogado. O único som presente era o da queda d’água da cascata, o que fez eu me perguntar se fora tudo um pesadelo. Meu corpo estava todo gelado, eu podia sentir o frio em cada osso e em cada músculo. Percebi que estava deitado de lado, de frente para a água caindo. Minha cabeça latejava e eu respirava com dificuldades.

— Você desmaiou — disse uma voz rígida e… familiar.

Quando virei o rosto na direção do céu, vi uma mão estendida quase tocando o meu queixo. Apertei-a relutante e uma pessoa inesperada me ajudou a ficar de pé.

— Treinador? — estranhei, pestanejando. Meu corpo inteiro tremia de frio.

Era ele mesmo, o treinador Rubens Almeida, do colégio Martins. Era a primeira vez que eu o via usando roupas que não fossem de esporte; ele vestia uma jaqueta de couro marrom e calça jeans escura. A grande questão, no entanto, era o que ele estava fazendo ali.

— Sem tempo para esclarecimentos — disse Rubens se virando para a floresta. — A Sophia correu naquela direção. Você precisa salvá-la.

Acabei me sentindo dentro de um campo de futebol, quando ele mesmo me dava instruções sobre o que fazer na partida. E Rubens estava certo, Sophia corria sério perigo. Ainda assim, era inevitável não pensar nas dúvidas que começavam a me rondar.

— Você é um caçador? — tive que perguntar, pois, se foi ele mesmo quem me salvou, essa era uma das únicas explicações. (Embora eu desconhecesse sobre caçadores terem habilidades de voo).

— Saiba apenas que sou o seu Guardião. Mas guarde segredo, isso é extremamente confidencial e pode te complicar caso as pessoas erradas descubram essa informação — ele respondeu apressado. — Agora, vai!

Não tive porque debater, precisava deter Tácio e salvar a pele da Sophia. Enganei-me ao pensar que Rubens Almeida iria comigo; ele não estava mais lá quando disparei rumo à floresta. E, ainda antes de mergulhar no ninho escuro de taigas, me lembrei das palavras do Profeta Zaoi no dia em que deixei de ser aprendiz:

Seu futuro…, dissera ele preocupado, depois de proferir palavras proféticas para todos os meus amigos e chegar na minha vez. Seu futuro é especial.

O que você está vendo? Eu perguntei apavorado.

Não posso falar. Ele não deixa.

Ele quem? Natsuno e eu fizemos a pergunta juntos.

Foi quando Zaoi respondeu o que na época deixou eu e meus amigos confusos e o Riku, por algum motivo desconhecido, completamente espantado:

O Guardião.

Rubens Almeida era, o que quer que aquilo significasse, o tal Guardião. Poderoso o suficiente para impedir que o profeta mais famoso de Venandi visse ou falasse sobre o meu futuro.



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