Volume 2 – Arco 6
Capítulo 69: Investigação fantasmagórica
— Vocês acreditam em fantasmas?
A autora do questionamento foi a Jéssica, uma das amigas da Sophia. Era mais uma noite de fogueira na frente das nossas pousadas. Desta vez não estava cheia como nos dias anteriores, e carregava uma tensão diferente após o ocorrido na floresta.
Dias haviam se passado desde o descontrole do Pedro e a sua confissão sobre qual foi a sensação de estar com o “modo vampiro” ativado. E por mais que tentássemos evitar, era difícil não olhar para o garoto e lembrar da criatura que ansiou pelo sangue do Jhou e do Natsuno. As pobres meninas nem sequer faziam ideia do que havia se passado.
A fim de quebrar o clima desconfortável, Natsuno contara uma história de terror que envolvia vampiros sendo perseguidos pelos fantasmas de suas vítimas. Foi então que Jéssica fez a indagação, que foi prontamente respondida por ele:
— Bobeira! — Natsuno riu com deboche. — Quem acredita nessas besteiras?
Jhou estremeceu. Não sei bem se por conta da ideia de existir fantasmas ou por se lembrar que os vampiros são piores que eles.
— Eu não duvido — disse Sophia. — Já vi coisas esquisitas, que até hoje não consigo encontrar lógica, então não anulo a ideia de existir almas penadas por aí.
Eu senti a indireta, visto que a salvei uma vez de homens de olhos vermelhos, e percebi o olhar dela recaindo sobre mim, mas não tive coragem de aceitar o “desafio” e encará-la de volta.
Jéssica sorriu melancolicamente e se ajeitou em seu assento/pedaço de tronco. A iluminação das chamas da fogueira lhe conferia um ar misterioso. Ela disse mais baixo:
— Ouvi boatos de que há uma cabana abandonada aqui na estação, não muito longe da vila. Alguns meninos disseram que foram lá na noite passada e ouviram vozes!
Pedro e eu nos entreolhamos. Só poderia ser a mesma cabana que estivemos com o Hebert.
— Ai, Jéssica, para de inventar essas coisas horríveis! — reclamou Ana de imediato. — Depois eu não consigo dormir à noite!
— Não é invenção! Eles estavam realmente assustados! Duvido que estivessem mentindo.
— Tá — ironizou Natsuno —, suponhamos que exista mesmo uma cabana. O que garante que as vozes não eram de pessoas normais?
— Deixa eu terminar, Natsuno!
Hebert, que batia papo com alguns amigos do outro lado da fogueira, advertiu:
— Ei, crianças, não quero brigas. Se comportem!
Mais baixo, Jéssica continuou:
— Acontece que, quando eles se aproximaram da janela para espionar quem tanto conversava, não encontraram ninguém, ou seja, a cabana estava vazia. Apesar de todas as luzes estarem acesas! Isso não é estranho pra vocês?
Apesar de saber da existência da cabana, eu tinha certeza de que era só mais uma história que a galera gosta de inventar para impressionar ou assustar as pessoas. Poderia até acreditar em fantasmas — considerando que até pouco tempo pensava que os vampiros eram apenas ideia de autores de livros —, mas não conseguia dar credibilidade a uma história que estava muito mal contada.
— Pode ser — falei bocejando —, mas não gostaria de descobrir. Inclusive, tô indo nessa, galera.
Eu me levantei e finalmente olhei para Sophia. Depois olhei para Beto. Suspirei. Só queria um tempo a sós com ela.
— Podemos ir lá ver amanhã — sugeriu Jéssica, agora animada, ignorando minha despedida. — Eu sei a localização, é só subir pela floresta. Vocês topam? Mas temos que ir à noite.
Natsuno achou graça. Ao contrário de mim, parecia totalmente certo de que não existiam fantasmas, mesmo sabendo da existência do Mundo Espiritual e dos Condenados da Natureza.
— Eu não perco o meu tempo com isso. Ainda mais num frio desses.
— Eu também tô fora — falei.
Pedro não se pronunciou, o que significava que ele também não queria se envolver. Já o Jhou:
— Será mesmo que eles existem? Eu… posso acompanhar vocês. Mas com uma, hã, condição: se encontrarmos algum fantasma, vamos embora, beleza? Eu sempre vejo uns vídeos no YouTube de uns caras que invadem lugares abandonados, e mesmo sabendo que é tudo encenado, acho bem divertido, apesar de assustador.
— Por isso você é tão medroso — rebateu Natsuno.
Dei boa noite para as meninas — incluindo um abraço na Sophia — e me arrastei para a pousada. Estava realmente com sono. Quando então, ainda antes de entrar, consegui ouvir a Sophia dizendo às amigas que iria junto. No mesmo instante eu me condenei por não ter topado a ideia. Seria a chance perfeita para estar a sós com a garota.
Acordei no meio da madrugada com a voz extasiada do Natsuno e os protestos do Jhou. Eu não entendia o que eles faziam acordados sendo que o quarto estava imerso na escuridão.
— O que vocês estão discutindo a essa hora? — perguntei com a voz meio embargada.
— Dio, eu tava falando com eles sobre uma ideia que eu tive! — ouvi a resposta do Natsuno.
— Uma ideia? Qual?
— O Natsuno quer assustar as meninas na cabana — disse Pedro, também invisível mediante o quarto escuro. — Contei a ele que ela é real e que estivemos lá.
— E como agora sabemos da localização — continuou Natsuno —, podemos chegar lá primeiro e esperar por elas!
Jhou reclamou:
— Mas eu vou estar com as meninas! E isso vai atrapalhar a nossa descoberta sobre os fantasmas!
— Para de inocência, grandão. Já falei que fantasmas não existem. Fala pra ele, Dio.
— Ah, sei lá — fui sincero. — Nunca se sabe.
— Você acreditou mesmo na história da Jéssica? — estranhou meu melhor amigo.
— Obviamente não.
Natsuno e Jhou continuaram discutindo. Nesse meio tempo, uma ideia se formou na minha cabeça feito uma lâmpada que se acende no cérebro e que quase clareou o quarto. Eu estava tendo uma segunda chance. E como se fosse uma confirmação da natureza, no meio do debate, sobrou uma pergunta do Pedro:
— O que você acha disso, Diogo?
Eu sorri. Claro que ninguém conseguiu ver. Falei:
— Acho que o Natsuno teve uma ideia brilhante.
Não precisava olhar para a cara dos meus amigos para saber que eles ficaram surpresos por eu concordar com a travessura do Natsuno; o silêncio deles apontou isso. Mas as minhas intenções, na verdade, eram outras.
No dia seguinte, Natsuno foi atrás de todos os preparativos para a travessura: lençóis brancos, lanternas, perucas — o que eu achei exagero — e mais alguns outros acessórios que, segundo ele, dariam um charme a mais no ambiente e nos personagens que faríamos. Tivemos que visitar três lojas diferentes para conseguirmos comprar tudo, sempre alheios à presença das garotas, que poderiam estar em qualquer parte da vila. A sorte era que o cartão de crédito que Hebert deixava com Natsuno funcionava em qualquer parte do mundo. Jhou, que estava frustrado desde a construção do plano que elaboramos ainda de madrugada, reclamava a todo momento que Natsuno era um estraga prazeres. O grandalhão, pelo que percebi, queria se sentir um daqueles Youtubers que visitam lugares “assombrados”.
Quanto ao meu plano, que obviamente não contei a nenhum deles, era simples: após o susto, eu chamaria a Sophia para o lado de fora da cabana e então teríamos um tempo para conversar e… Bom, você entendeu.
Eu só esperava que não houvesse nenhum imprevisto.
— Vocês não vão hoje? — estranhou Hebert assim que retornamos à pousada. Ele estava trajado a caráter para descer uma montanha de neve. Seus olhos rapidamente fitaram as sacolas nas nossas mãos. — O que estão aprontando?
— É só uma brincadeira que queremos fazer com as meninas — decidi ser honesto para que suspeitas desnecessárias não fossem levantadas.
Hebert pensou um pouco, fez menção de dizer algo… mas então deu de ombros.
— Não vou julgá-los — foi seu veredito. — Eu também já fui um “aborrescente” igual a vocês. Até mais, pivetes.
Dito isso, o homem deu um último gole no líquido da xícara do que estava bebendo e nos deixou sozinhos. Repassamos o plano mais umas cinco vezes antes de nos separarmos; Pedro e Natsuno foram dar uma volta pela vila, Jhou foi comer alguma coisa na cozinha e eu subi para o banheiro, que ficava no quarto. Quase congelei as mãos ao lavá-las após fazer o “número 1”.
E eu mal conseguia conter a ansiedade. Se tudo corresse bem, enfim teria o meu momento com a Sophia. Longe dos meus amigos, longe das amigas dela e longe do guarda-costas intrometido. Sandro ao menos poderia ter orientado Beto a nos dar privacidade…
Estranhei quando vi um pedaço de papel embaixo do travesseiro da minha cama. Curioso, levantei o travesseiro e lá estava uma folha de caderno dobrada. Desdobrei-a e li:
— “Encontre-me na ponte hoje à noite. Acho que nós dois merecemos isso: um tempinho a sós. Mas, por favor, esteja lá sozinho, ok? De xereta já basta o Beto, kkkk. Assinado: Sophia”.
Foi escrito à mão, e de fato parecia ser a letra de uma garota. Eu conseguia ouvir a voz da Sophia enquanto relia, dezenas de vezes, seu bilhete. “Mudança de planos”, pensei, com o coração batendo no peito feito uma submetralhadora. Eu não conseguia parar de sorrir. Sophia queria estar comigo!
A porta foi escancarada e eu me preparei para a luta. Mas era só o Jhou.
— Foi mal — ele sorriu sem graça. — Eu tropecei e acabei esbarrando na porta… — Então estranhou a forma triunfante como eu o encarava. — O que foi?
O Jhou poderia ser um pouco atrapalhado às vezes, e até meio esfomeado, porém era uma das pessoas que eu mais confiava. E ele poderia me fazer um favor.
Sorri.
Jhou nos informou que as meninas iriam partir às dez e meia, horário em que elas costumavam se deitar para dormir. Assim conseguiriam burlar Beto, que dormia cedo sempre que podia e jamais desconfiaria que houve uma fuga. Então decidimos sair de casa meia hora antes.
Natsuno, Pedro e eu atravessamos a vila deserta encolhidos de frio mediante o vento gelado que soprava com agressividade. Fizemos o caminho até a área dos teleféricos, em silêncio, e fiquei impressionado em como o lugar soava tão intimidador à noite. Sem a costumeira agitação de adolescentes e com as plataformas desligadas, o cenário parecia pertencer a um filme de terror. Era esquisito ver as pistas, espremidas no meio da floresta íngreme e escura, tão vazias e silenciosas. Parecia até outro local. O som do sopro do vento, para ajudar, reforçava a estranha sensação que eu tinha de que estávamos sendo observados.
— Onde fica essa cabana? — perguntou Natsuno.
Pedro apontou para além da pista das torres pretas, onde mal se podia enxergar as taigas no escuro, muitos metros acima de onde estávamos. Chegaríamos mais rápido se os teleféricos estivessem ativados — muito embora o meu compromisso fosse em outro lugar, ainda mais distante que a cabana.
— Eu espero que o Jhou não estrague tudo — falei, olhando para a estradinha de paralelepípedo atrás de nós, que seguia por dentro da vila. Pedro e Natsuno concordaram, embora eu não me referisse ao plano do susto, mas sim ao favor que pedi a ele.
Mergulhamos na floresta.
***
Jhou se encontrou com as meninas nos fundos da pousada delas exatamente às dez e meia. Mal conseguia distinguir as três garotas debaixo de todas aquelas roupas grossas, gorros e luvas, uma vez que o frio noturno da vila não era nada convidativo. Observou Sophia erguer os olhos para a janela do quarto dos garotos, como se sua vontade fosse que Diogo aparecesse ali e dissesse que se juntaria a eles. Talvez ela temesse, Jhou pensou consigo mesmo, que o garoto não tivesse recebido o bilhete ou que simplesmente o havia ignorado. Mas ele estava ali para tranquilizá-la, e faria isso assim que as outras duas garotas dessem uma brecha.
— Trouxe lanterna? — Jéssica, que seria a líder do grupo na “investigação fantasmagórica” (como ela própria estava chamando a aventura), sussurrou para o grandalhão.
— Está aqui — Jhou respondeu, tirando-a do bolso da jaqueta.
— E o que tem aí na sua outra mão?
Jhou tirou a outra mão do bolso e revelou um lanche embrulhado. Sorriu sem jeito.
— É pra não passar fome.
As meninas se entreolharam e deram de ombros. O importante era que tinham um guarda-costas entre elas, para o caso de acontecer algum imprevisto — sendo este guarda-costas esfomeado ou não. Ainda assim, Ana não estava totalmente convencida de que era seguro.
— Não sei se é uma boa ideia sairmos a essa hora — alertou mais uma vez. — E se encontrarmos algum animal selvagem lá? Tipo um urso, ou um lobo… Sei lá!
As meninas fizeram “ssshhhh!” e Sophia advertiu a amiga em relação ao tom de voz. Jéssica comentou que os garotos iriam se arrepender por não aceitarem ir com elas e Jhou imaginou que, àquela altura, seus amigos — ou pelo menos dois deles — na verdade já estivessem subindo a floresta.
E os quatro refizeram todo o caminho que Diogo e seus amigos fizeram meia hora antes. Jéssica, de longe a mais empolgada do grupo, andava a passos apressados, o que Jhou viu como uma boa oportunidade. Ele deu um toque no braço da Sophia e desacelerou os passos, de forma que ficasse na bota das garotas.
— O que foi? — perguntou Sophia ao fazer o mesmo.
— Tenho um recado do Diogo — disse ele. — Disse que vai te esperar na ponte.
Foi difícil para o grandalhão decifrar a expressão facial da garota. Era como uma mistura de felicidade, alívio e mais alguma coisa. Jhou se questionou se era esse o tal amor que tanto falavam por aí, então riu. Achava engraçado.
***
— Pessoal — falei fazendo uma careta — eu preciso ir ao banheiro. Tentei segurar o máximo que pude, mas não dá mais.
— Agora, Dio? — espantou-se Natsuno. — Estamos quase chegando! Não é possível que não tenha um banheiro na cabana.
Eu precisava me esforçar.
— Mas e se não tiver papel? Sinto muito, rapaziada, mas vou ter que correr pra pousada.
Já havíamos subido muitos metros pela floresta íngreme, guiados pelo mar preto por lanternas que eram o único foco de luz presente. Não dava para ver nada além de dois metros à frente. Tudo ao nosso redor estava imerso na escuridão. Ouso dizer que nem a floresta de Honorário era tão difícil de explorar quanto àquela, muito menos tão gelada. E a todo momento ventava.
Natsuno suspirou. Parecia querer encontrar alguma solução para a minha suposta dor de barriga. Pedro, no entanto, disse:
— Vai lá, cara, a gente se vira. Dor de barriga não tem hora certa pra aparecer, não é mesmo?
Apesar de desconfiar que Pedro desconfiava de alguma coisa, eu me senti grato.
— Vocês têm certeza? — falei.
Natsuno jogou a luz da lanterna no próprio rosto e respondeu:
— Melhor você vazio na pousada do que peidando no meio do susto. Depois a gente te conta como foi. Falou, Dio, vai logo.
Assenti aliviado e me separei deles. Andei na direção da vila por alguns instantes, sempre olhando para trás e vendo as luzes das lanternas dos dois se distanciando cada vez mais no meio da escuridão. Então mudei a trajetória.
A ponte foi um dos lugares que visitamos alguns dias antes, e ficava perto de uma cascata não muito longe do topo da pista preta, o que significava que eu teria que subir a floresta, ainda mais que Pedro e Natsuno. Torci mentalmente para que Sophia aparecesse lá. O caminho não estava sendo muito agradável, considerando que poderia haver animais nas redondezas. Então, pensando no assunto pela primeira vez, fiquei preocupado. Não por mim, pois eu poderia me defender com a espada, mas pela Sophia. E se ela fosse atacada?
Parei de repente ao ouvir um ruído de galhos se mexendo. Iluminei o perímetro ao meu redor, sentindo cada pelo do meu corpo eriçar, com a estranha sensação de que alguém ou alguma coisa estava escondido.
— Olá? — chamei devagar. O vento cessou o sopro gelado. Tudo estava quieto demais. Eu podia ouvir meus próprios batimentos cardíacos e eles não estavam nada tranquilos. Ninguém se manifestou. Havia apenas árvores e neve; nada mais.
Suspirei. Presumi que a minha mente preocupada queria me pregar peças. Ainda assim, passei a me locomover atento a qualquer movimento.