Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 6

Capítulo 68: Contratempo: os olhos vermelhos de Pedro

Sophia estava certa: a estação de esqui escondia lugares magníficos. A começar por uma ponte que passava sobre uma enorme cascata cuja queda d’água terminava na base da montanha muitos metros abaixo. Era possível ver, dali da ponte, a cadeia montanhosa se erguendo no horizonte, cinzenta e coberta por neve, mas evitei ao máximo olhar para aquela paisagem tão deslumbrante quanto assustadora.

— Tira uma foto minha aqui, Natsuno — pedia Jhou sempre que encontrávamos algum lugar como aquele, e com a cascata não foi diferente. — Minha mãe vai endoidar quando vir onde estive. 

Mesmo reclamando, Natsuno atendia ao pedido. Tirou duas fotos do grandalhão: uma com ele de costas para a cascata e outra com ele de costas para as montanhas cinzentas.

Visitamos outros pontos interessantes: o topo de um morro que nos concedeu uma visão panorâmica da vila, das florestas e das pistas de snowboard; uma área ampla e aberta repleta de pinguins que andavam ou corriam de forma desajeitada numa bagunça imensa; e algumas grutas no subsolo de uma região um pouco mais afastada, onde entramos receosos do que encontraríamos pelo caminho — enquanto Jhou resmungava que deveria haver ursos, Natsuno e eu suspeitávamos da existência de algum portal que levaria à Venandi. Havia túneis por toda parte e não havia nem como checá-los com minúcia, ou seja, infelizmente ficamos sem a confirmação da nossa hipótese.

Em dado momento, flagrei Hebert olhando em volta com uma expressão que era fácil de decifrar: desconfiança. Enquanto Natsuno tirava mais uma foto do grandalhão fazendo pose, perguntei:

— Algum problema?

Ele não respondeu. Talvez nem tivesse me escutado. E a partir daquele momento passei a me sentir vigiado, assim como me sentia quando cheguei à Honorário. Falei a mim mesmo que não seria possível haver vampiros por aquelas bandas querendo o sangue de uma quantidade grande de caçadores. Seria loucura, mesmo para as criaturas.

De qualquer forma, as coisas estavam indo bem, até um determinado momento. Sabe aquele dia em que você está em paz e, sem aviso prévio, tudo vira do avesso? Não há nem chance de você se preparar emocionalmente, pelo menos para tomar a atitude correta — ou até preventiva? Bom, o dia foi assim. Imprevisível. Chocante. Triste.

Como mencionado, ele começou com o nosso tour pela estação. Aproveitamos que a manhã não estava tão fria quanto as outras. Jhou tirou fotos, Natsuno reclamou por ser o fotógrafo, tudo o que já estávamos mais que habituados.

Ao retornar para a vila, estranhei um grupo de curiosos perto da praça central. Encarei meus amigos e recebi o mesmo olhar confuso. Fomos entender o que se passava só quando nos aproximamos. Havia uma luta de esgrima. E não, não foi isso que alterou a rota natural das nossas férias.

Duas pessoas empunhavam sabres de lâmina fina feito agulha e flexível feito chicote. Elas trocavam ataques com agilidade. Manejavam as armas com maestria. Desferiam golpes giratórios acompanhados de recuos ligeiros.

A plateia estava encantada. Os dois guerreiros vestiam a roupa adequada para o esporte — o peito era protegido por um tecido grosso e a cabeça estava coberta por capacetes que mais pareciam máscaras, pois tampavam o rosto por completo.

E a luta terminou quando o guerreiro mais alto finalmente tocou a ponta do seu sabre no peito do mais baixo. Todos aplaudimos. Quando eles tiraram as máscaras, os cabelos alaranjados de ambos se viram livres. Kelan rapidamente colocou sua touca preta.

— Foi um bom duelo — disse Yago, o vencedor.

— O próximo eu venço — garantiu sua prima, passando a mão na testa para enxugar o suor.

A multidão se dispersou. Ficamos só eu e meus amigos na praça. Yago se aproximou:

— E aí, rapaziada. Não vi vocês chegarem.

— Vocês mandam bem — tive que dizer, admirado. Encontrara Yago uma vez no shopping, e na ocasião ele empunhava uma espada parecida, o que eu achei bem curioso. Perguntei: — Onde vocês aprenderam a lutar tão bem?

Yago sentou-se ofegante no banco mais próximo e explicou:

— Meu clã é conhecido por manejar qualquer tipo de espada. Alguns membros dominam mais um estilo que outro, fica a critério de cada um. Nossos pais — disse olhando para Kelan — se identificaram mais com a esgrima. A Kelan e eu aprendemos tudo o que sabemos com eles.

— Já ouvi muito sobre o clã Cordeiro — disse Natsuno, então encarou Kelan. — Eu só acho meio esquisito sair por aí caçando vampiros com lâminas que nem cortam, mas tudo bem.

— Idiota — Kelan revirou os olhos. — Óbvio que nós usamos espadas modificadas para caçar. Acha mesmo que somos tolos? Isso aqui — mostrou o sabre de lâmina flexível — é só para o esporte.

Natsuno abriu a boca, mas nenhuma palavra saiu.

Jhou deu risada.

— Tomou de graça — zombou o grandalhão.

— E você, Diogo? — Yago retomou. — É especializado em quê? Eu nunca te vi em batalha.

Cocei a cabeça. Não possuía um estilo próprio, não tinha habilidade com a espada, eu era apenas um bom lutador.

— Em nada, pra ser sincero — respondi. — Treino artes marciais desde cedo com o meu tio Michael. Ele é faixa preta em várias modalidades e meio que me ensinou um pouco de tudo, mas sem especificar nada.

— Interessante.

— Meu clã é especialista em Kung Fu — disse Natsuno. — É uma tradição bem antiga, mais antiga até que o surgimento de muitos clãs. Eu costumo dizer que o Kung Fu é uma arte.

Kelan resmungou algo sobre o garoto ser exibido — Jhou fez questão de apoiá-la — e Yago sorriu. O único que se mantinha quieto era o Pedro.

Depois do almoço, decidimos pegar nossas pranchas e descer a pista preta. Fiz questão de chamar o Yago, mas ele prontamente recusou o convite.

— Não sou fã de snowboard — foi sua justificativa. — Acho um esporte muito perigoso. Prefiro caçar vampiros — ironizou.

Decidi não insistir, apenas falei:

— Cara, as palavras "snowboard" e "vampiros" não podem estar na mesma frase. São realidades bem diferentes.

Como eu fui inocente. E você vai entender o porquê.

Na cabine do teleférico, observando a bela paisagem que a estação nos proporcionava, todos estávamos ansiosos por mais uma tarde de adrenalina. Já na pista e em cima das pranchas, mergulhamos neve abaixo.

— UHUUUUULLLL!!! — Eram os nossos gritos enquanto fazíamos as curvas. Talvez esse fosse o lado bom de ter uma genética mais aguçada: nossos reflexos nos permitiam dominar esportes radicais com mais facilidade que uma pessoa normal. E para quem se acostumou com a gravidade do Rio de Água Pesada, se equilibrar em uma prancha de snowboard era fichinha.

Mas as coisas saíram do controle. Jhou não conseguiu fazer uma das curvas a tempo. O resultado? Imagine um grandalhão desgovernado imergindo numa floresta em total desespero. Esse era ele. Nem as redes de proteção da pista conseguiram pará-lo, tamanha era sua força corporal.

— AAAAAAHHHHHHH!!!

— Jhou! — nós gritamos assim que o vimos sair da trilha.

Freamos as pranchas bruscamente, soltamos os fixadores e disparamos atrás dele. Jhou até tentou desviar dos troncos, mas o observamos colidir no terceiro que surgiu em seu caminho. A árvore desabou para frente e ele caiu.

Nós o alcançamos.

— Você está bem? — perguntei ofegante.

Jhou balançou a cabeça devagar, em afirmativo, embora sua expressão estivesse contraída. Natsuno abriu os fixadores da prancha dele para que ele pudesse se levantar.

— Caramba, grandão — disse o Kogori fazendo uma careta. — Isso tá feio.

Tratava-se de um ferimento no braço do pobre coitado. Imaginei que as roupas grossas impedissem ferimentos do tipo, mas presumi que a superforça do grandalhão contribuiu para a gravidade do impacto. Os tecidos da jaqueta e das camadas de blusas estavam rasgados na região do tríceps.

— Eu acho que não quebrou — choramingou Jhou, mexendo o braço machucado. — Ou será que quebrou?

— Não exagera, Jhou — disse Natsuno.

Procurei por algo que pudesse estancar o sangramento. Decidi tirar a minha jaqueta a fim de rasgar a camiseta que usava por baixo. Então meu coração acelerou.

Chegou o tal momento em que aconteceu o que ninguém previa. E isso trouxe sérias consequências para o restante de nossas vidas. Pedro, que por algum motivo não havia se aproximado, estava trêmulo e cabisbaixo. Eu percebi enquanto tirava a jaqueta. Chamei:

— Pedro?

Ele levantou a cabeça, e a imagem que eu vi fez meu coração gelar. Seus olhos azuis e pacíficos estavam da cor do sangue e agora o deixavam com um ar demoníaco. Estavam fundos também. E não responderam propriamente ao meu chamado. Eles ficaram fixos, de forma nítida, na ferida do Jhou.

Pedro começou a rosnar, uma cena que eu nunca imaginei ver, apesar da ciência que tinha sobre sua origem. Aos poucos os seus dentes foram se moldando e ficando pontiagudos. Sua pele assumiu um tom pálido e parecia estar ressequida. Até suas orelhas mudaram de forma; agora eram pontudas. O corpo dele se inclinou um pouco para frente, um simples movimento que o deixou ainda mais assustador.

Eu já havia encontrado muitos vampiros antes, mas com aquela aparência radical, pelo menos até o ponto em que me lembrava, somente o diretor que me atacou.

— Pedro? — foi a vez do Natsuno chamar. — O que há com você, cara? Ele — referiu-se ao Jhou — é o nosso amigo.

Apesar do cuidado do Natsuno em selecionar as palavras, Pedro não desviou o olhar. E para o nosso desespero, ele começou a se arrastar na direção dos dois, semelhante a um espírito maligno em busca de um corpo vazio. Ali eu já imaginei o que viria.

— Jhou, corre, depressa! — gritei. — A gente segura ele!

Jhou não hesitou e disparou. Quase que instantaneamente, Pedro deu um pulo de gato e voou na direção dele — e só não o cortou com suas unhas porque o grandalhão tropeçou num galho e desabou na neve, esquivando-se sem querer da investida. Foi por um triz!

Pedro aterrissou diante dele com as garras das mãos erguidas. Seus olhos selvagens emitiam uma maldade insana. No momento em que ele fez menção de cravar suas unhas em um Jhou totalmente apavorado, consegui chegar a tempo de lhe desferir um golpe na altura do estômago, disposto a pelo menos derrubá-lo.

As mãos gélidas do garoto rapidamente desceram na direção do meu punho com uma elasticidade assustadora antes que eu pudesse tocá-lo, e agarraram o meu braço. Fui lançado para fora do caminho e acabei atingindo o Natsuno no processo.

Natsuno também me surpreendeu. Consegui apenas vislumbrá-lo se levantar e avançar na direção do Pedro rapidamente. Suas pernas brilhavam — então entendi que ele estava utilizando seu Raio Veloz para ganhar velocidade e proteger Jhou da nova investida do vampiro.

— Socos… — começou a gritar, porém ele foi atingido por um chute na cara antes que concluísse o que quer que fosse pronunciar. O golpe foi tão forte que o coitado caiu a vários metros de onde Pedro e Jhou estavam.

Eu estava apavorado. Pedro possuía uma agilidade muito fora da curva, mesmo para os nossos padrões. Ficou comprovado na forma em que ele chutou o Natsuno — parecia que seus movimentos eram automáticos e não respeitavam as leis da física. Como poderíamos detê-lo?

Rosnando e de olhos bem arregalados, Pedro girou o corpo e deu as costas para o Jhou. Eles estavam na parte direita do meu campo de visão enquanto Natsuno se levantava na parte esquerda. Me levantei sem tirar os olhos deles, aliviado por Pedro aparentemente ter desistido do grandalhão, embora eu não soubesse o motivo.

Então entendi.

— Essa doeu — reclamou Natsuno. Ele passou o dorso da mão no nariz e percebeu seu próprio sangue. Olhou aquilo assustado e, em seguida, encarou pálido o nosso amigo vampiro. — Pedro…

Era tarde. Pedro se jogou na direção dele, feroz, com as unhas prontas para rasgá-lo e com um sorriso cheio de dentes pontudos escancarado na face. Eu me vi num beco sem saída. Não queria machucá-lo, não era culpa dele. Pedro não pediu para nascer vampiro!

Avancei observando Pedro se aproximar de um Natsuno que somente recuava mediante o que assistia: um vampiro descontrolado e faminto voando em sua direção. Não daria para eu chegar a tempo, precisava agir da forma que eu não queria. Concentrei energia interna no meu braço direito. Era a única forma de deter o Pedro sem matá-lo. Eu só esperava que o meu golpe não o machucasse tanto.

— Punhos de…

Não precisei concluir. Um flash dourado despontou de algum lugar e atingiu o garoto-vampiro ainda no ar. Quando meus olhos conseguiram processar o que raios havia acontecido, observei o pai do Natsuno, com muito esforço, imobilizando Pedro no chão, que rosnava e babava feito um verdadeiro animal selvagem. Hebert precisava utilizar os braços e as pernas para conseguir conter o garoto.

— Natsuno, Jhou, voltem para a pousada! — Hebert ordenou, e teve que gritar para fazer os dois se mexerem, pois era impossível não olhar para o vampiro se debatendo assustadoramente: — AGORA!

Não houve debate nem objeção. Os dois garotos correram floresta abaixo e desapareceram de vista.

Eu observava a luta corporal do garoto-vampiro e tentava fazer ligações entre a criatura demoníaca que via e o meu amigo de bom coração, que sempre dava ótimos conselhos e evitava brigas ou encrencas. O contraste era devastador. Não havia qualquer resquício do Pedro que eu conhecia naquele vampiro de aparência esquelética. Pedro não era agressivo. Ele não se movia ou agia daquela forma. Nós jamais seríamos atacados por ele.

— Diogo, preciso que você o faça desmaiar!

Senti a garganta seca. Desmaiar um amigo? Eu não tinha coragem.

— Depressa! Ele está dando trabalho!

— Mas…

— Esse não é o Pedro que você conhece! — Hebert trincou os dentes e uma veia saltitou na lateral de sua testa. — Se você quer que seu amigo volte, faça o que estou mandando!

Pedro parecia um demônio. Se você olhasse bem, era possível que ficasse paralisado mergulhando no vermelho-sangue dos seus olhos. Eles eram malignos e horripilantes. Os mesmos que me assombraram por dias quando cheguei em Honorário. Os olhos de um assassino.

Eu me aproximei devagar, tentando tomar coragem durante o pequeno percurso. Não dava. Eu não conseguia. Apesar da criatura feia e descontrolada diante de mim, eu só conseguia pensar no meu amigo. E se eu acabasse o deixando com alguma sequela?

— Eu… não consigo — falei.

Hebert estava encharcado de suor. Imobilizar Pedro estava demandando bastante esforço. Eu conseguia ver a raiva nos seus olhos. E mesmo com a difícil tarefa de paralisar um vampiro raivoso, ele desvencilhou um dos braços e golpeou o queixo do garoto, rápido e forte. Quase que imediatamente, Pedro apagou.

Eu suspirei, embora sem saber se estava realmente aliviado. Apesar de as coisas terem se tranquilizado, meu receio era que Pedro despertasse de repente e tornasse a nos atacar.

Hebert saiu de cima do garoto e se levantou, limpando a neve da roupa.

— Não será a última vez que algo do tipo irá acontecer — disse com uma raiva contida na voz. Nem ao menos me encarou. — Pretende fraquejar sempre?

Eu o observei colocar Pedro sobre seus ombros. Queria dizer alguma coisa, perguntar se o garoto ficaria bem, ou até mesmo me desculpar. Desisti quando Hebert me lançou um olhar rígido. Nem parecia o sujeito descontraído que eu já estava habituado.

— Venha comigo — disse ele.

Após alguns minutos se esgueirando por entre as árvores, chegamos a uma cabana de madeira. Era velha e o telhado estava repleto de neve, como se ninguém o limpasse há anos. Não havia sinal de vida por perto, o que me fez presumir que pouca gente — ou talvez ninguém — soubesse da existência daquele lugar.

Em silêncio, Hebert abriu a porta da frente, acendeu a luz do pequeno cômodo e, cuidadosamente, deitou Pedro no único sofá presente. Depois se jogou em uma cadeira e suspirou.

— Feche a porta — disse ele um pouco mais calmo; eu ainda estava estagnado na entrada.

Fechei a porta dando fim ao vento gelado da floresta e me aproximei do sofá. Ficamos em silêncio por alguns minutos, uma tensão que me deixava desconfortável. Hebert estava pensativo. Pedro, ainda com aparência vampiresca, dormia silencioso. Era a primeira vez que eu via sua verdadeira identidade.

— Você não pode hesitar como fez naquela hora — disse Hebert de repente.

A imagem do meu amigo descontrolado e nos atacando não saía da minha cabeça. E mesmo assim eu só conseguia sentir pena.

— Eu sinto muito…

— Não adianta sentir. Tem que agir.

Apesar de tranquilas, as palavras do Kogori soavam duras e gélidas. E ele pareceu perceber isso, pois passou a selecioná-las melhor:

— A triste realidade, Diogo, aceitemos ou não, é que Pedro faz parte da raça que devemos caçar.

— Eu jamais faria isso! — falei de forma instintiva, encarando Hebert com surpresa. — Ele é nosso amigo!

— Eu sei, eu sei, relaxa. Não estou dizendo nesse sentido. Quero dizer que, se caçamos os vampiros desde os tempos antigos, é porque há uma razão para isso. Eles são assassinos, não têm sentimentos e não se importam se vão matar um adulto ou uma criança. Entende a gravidade disso?

Hebert sinalizou para que eu olhasse para o Pedro — a pele do garoto recuperava a cor e as pontas das orelhas dele se encolhiam de forma que ficassem arredondadas, retornando ao que eram antes — e continuou:

— Infelizmente, o Pedro tem metade dessa genética. O que significa que ele não medirá esforços para machucar quem quer que seja quando o seu lado vampiro for despertado. Quando isso acontecer, só existem duas formas de pará-lo: o nocauteando ou o…

— Deperizando — concluí.

Hebert fez que sim, então perguntou:

— O que você prefere?

Não havia como discutir. Ele estava mais do que certo e eu precisava aceitar que devia agir quando necessário. Mesmo que para isso tivesse que machucar um amigo.

Pedro acordou. A princípio apenas murmurou de dor, sem abrir os olhos ou se levantar, o que fez eu me sentir mal. Quando ele abriu os olhos — que, para meu alívio, não estavam mais vermelhos — demorou ainda alguns minutos para processar onde estava e o que havia acontecido.

— Consegue se levantar? — perguntou Hebert depois de algum tempo.

Apesar de ter balançado a cabeça em afirmativo, o garoto pareceu meio zonzo ao ficar de pé. Fiz menção de ajudá-lo, mas ele gesticulou que não era necessário. Mas a verdade, pelo menos foi o que eu presumi, era que ele não confiava em si próprio.

Fizemos o longo percurso até a pousada em silêncio absoluto. A floresta fazia contraste com o restante da estação de esqui por estar totalmente inabitada. Não havia nenhum tipo de trilha, nem sequer dava para ver a vila lá embaixo. Presumi que Hebert explorou muito aquela região, senão, qual seria a explicação para saber onde situava uma cabana isolada?

Já na pousada, Jhou — com o ferimento estancado — e Natsuno — quieto feito uma pedra — estavam sentados diante da lareira, que crepitava. Quando nos viram, rapidamente se levantaram, os olhos apressados em encontrar Pedro.

— É você mesmo? — quis saber Natsuno. Seu nariz estava maior que o normal, resultado da pancada que levou do nosso amigo vampiro.

— Que pergunta idiota, Natsuno! — disse Hebert.

Jhou ainda parecia assustado, por mais que tentasse disfarçar. Ele não sabia para onde olhar — ora olhava para mim, ora olhava para a janela ou para a lareira. Não parecia estar sentindo dor, o que significava que o ferimento não foi tão grave quanto pareceu.

— É só por precaução — riu Natsuno em uma tentativa clara — e fracassada — de quebrar o clima sobrecarregado.

Pedro foi logo dizendo:

— Peço desculpas pelo que fiz, pessoal. Eu não queria… Eu juro…

Seus olhos lacrimejaram e o garoto abaixou a cabeça. Lancei um olhar significativo para os meus amigos, que felizmente entenderam o recado. Jhou e Natsuno se aproximaram.

— Não precisa se desculpar com a gente — comecei dizendo —, nós entendemos a situação.

— É, cara — disse Natsuno. — O que passou, passou. Bora esquecer isso e bola pra frente.

Jhou engoliu em seco e finalizou:

— Você nem ficou tão assustador assim. Os vampiros daquela casa mal assombrada… sabe aquela que encontramos na nossa jornada ao monte… hã, como era o nome?

— Zentaishi? — sugeri.

— É, isso! Quer dizer, aqueles vampiros eram mais, hã, assustadores. Bem mais — enfatizou.

Nem o Hebert aguentou; todos demos risada. Jhou murmurou algo como “Que merda que eu tô falando?” e também riu.

Hebert pediu para que nos sentássemos e colocou mais lenha na lareira. A pousada estava quente e aconchegante, diferente da floresta lá fora ou da cabana abandonada. Falei a mim mesmo que não voltaria para a pista de esqui tão cedo, não depois do ocorrido.

— Vocês vão ter que tomar muito cuidado de agora em diante — começou Hebert, ocupado em sua tarefa, de costas para nós. — Os vampiros mestiços perdem a sanidade ao sentir o cheiro de sangue, uma coisa que pode ser controlada com o tempo, é verdade, com muito treino e esforço, portanto evitem levar o Pedro em “aventuras” enquanto ele ainda não consegue conter sua natureza. — Hebert deu meia-volta e também se sentou, os olhos passeando por cada um de nós. — Isso é para o bem de vocês.

— Eu não queria ser assim — lamentou Pedro. — Sinto como se tivesse um animal dentro de mim, aprisionado, obcecado por ser liberto. O sentimento é horrível.

Ninguém soube o que dizer em alusão à frase. Lembrei das palavras do Pedro quando tocamos no assunto pela primeira vez e perguntamos se ele sentia vontade de beber sangue humano.

Como falei, eu não necessito, mas ainda assim, às vezes, sinto vontade de provar, fora sua resposta. Eu só não imaginei que essa vontade faria sua personalidade mudar de forma tão drástica.

— O lado bom é que você não é um vampiro por completo — interveio Hebert com um pequeno sorriso. — Conheço alguns vampiros mestiços que só usam as habilidades de morcego como vantagem em batalha.

— Há outros como eu? — surpreendeu-se Pedro.

— Pô, com certeza! E estão por toda parte. Pena que nem todos têm a consciência igual a sua. Fico imaginando como as coisas seriam mais fáceis se a organização Ko-Ketsu fosse reforçada por vampiros mestiços. — Hebert mirou Pedro com um interesse novo e disse, mais para si mesmo do que propriamente para nós: — Quem sabe, no futuro, não tenhamos o nosso primeiro? Acho que vou conversar com o Tony a respeito disso.

Se ele estava realmente sendo sincero ou se só queria fazer o garoto se sentir melhor, eu não sabia dizer. O fato é que funcionou; Natsuno, Jhou, Pedro e eu trocamos um olhar triunfante. Todos sabíamos que o Pedro era capaz de lutar pelo bem e a frase do Hebert havia aberto margem para que pudéssemos sonhar.

— Até lá, temos obstáculos a ultrapassar — disse Hebert voltando a si. — Controle-se, Pedro, para que pessoas não se machuquem. Dizem que a melhor forma de manter o autocontrole é explorando todos os limites do intelecto. Embora eu não saiba exatamente o que isso quer dizer.

Ainda assim, o garoto tornou a ficar calado. Alguma coisa o estava incomodando. Não dissemos nada por vários minutos, até mesmo o Hebert não sabia como continuar o sermão. E novamente me veio a sensação de estar sendo observado.

— Algum problema, Pedro? — foi Natsuno quem tomou coragem para perguntar.

Pedro ficou em silêncio por mais alguns instantes, então começou a falar:

— Naquela hora, quando eu perdi o controle… Não foi a primeira vez que aconteceu algo parecido, eu confesso, mas sempre eram apenas recaídas rápidas que eu conseguia conter. Dessa vez foi diferente. Não consegui fazer nada para me segurar. E eu me lembro de tudo!

— Isso não é tão ruim — interveio Hebert. — Pior seria se você não se lembrasse, daí abriria margem para desconfiarmos que houve outros descontroles que você não se recorda.

— O problema não é esse. — Pedro olhou para nós, com lágrimas escorrendo e olhos realmente tristes. — Acontece que a sensação de estar daquele jeito… é a melhor sensação que já senti em toda a minha vida.



Comentários