Volume 2 – Arco 5
Capítulo 61: O garoto que é tratado como um lixo
— Vieram almoçar de novo? — estranhou o seu Juca, quando retornamos à Lanchonete Lendária depois de alguns minutos. Agora, estávamos acompanhados por outros dois garotos: Yago e Léo. Ele observou a aparência nada convencional do segundo e exclamou: — Santo Deus! O que foi que aconteceu?
De fato, parecia que Léo havia acabado de voltar de uma briga de facas; as roupas dele estavam rasgadas em alguns pontos e o seu cabelo estava todo desgrenhado. Além, claro, do cheiro de suor.
— É uma história um pouco longa — falei.
O velho homem mirou a outra ala da lanchonete — repleta de mesas — provavelmente para constatar se o movimento do almoço já estava no fim, afinal, já eram quase três da tarde. Ao constatar que sim, gesticulou para que nos sentássemos nas banquetas do balcão.
— Sou todo ouvidos — disse, apoiando-se em seu banco semissentado.
Eu, então, comecei.
Primeiro falei do encontro que tive com o garoto-cachorro, há mais ou menos duas semanas. Poupei detalhes irrelevantes, como o fato de Billy ter entrado em minha mochila no dia e quase ter me metido numa baita encrenca com a Abigail. Fui direto ao ponto da conversa que tive com o Léo e expliquei que, em seguida, fiquei internado após a fuga do vilarejo infestado de vampiros.
Procurei muito pelo garoto nos dias seguintes, em todas as ruas possíveis dos bairros próximos ao colégio Martins, mas nenhum sinal dele. Até aquele momento.
Jhou, Natsuno e eu estávamos prestes a nos despedir numa das esquinas do bairro, após almoçarmos na lanchonete, quando ouvimos alguém gritar. Perseguimos o som do grito e nos deparamos com Yago quase fatiando o menino ao meio. Eu só consegui pensar numa coisa: pedir para que Jhou tentasse segurar o místico descontrolado enquanto eu cuidaria do resto.
Jhou cumpriu bem sua missão, correndo e agarrando o menino-cão firme por trás. Minha tarefa era desarmar Yago a fim de evitar algo trágico. Felizmente, minha mira funcionou: desferi meu Punho de Fogo, não para acertar o amigo, mas para impedi-lo de matar o pobre garoto que só estava fora de si.
— Pois é, foi por pouco — concordou Yago, coçando a cabeça e dando um sorriso meio envergonhado. — Eu deveria ter procurado outra forma de me proteger. Claro, eu não pretendia matá-lo. Mas com certeza ele sairia prejudicado. Mais uma vez, peço que você me perdoe, Léo.
— Tudo bem — disse o garoto timidamente.
— Um místico que tem o Modo Ataque… — disse seu Juca pensativo, repousando seus olhos curiosos sobre Léo. — Não encontro um há bastante tempo. Digam-me, o que vocês fizeram para fazê-lo retornar à forma humana?
— Isso daí foi com o Yago — respondeu Natsuno. — O Dio disse que teve que nocauteá-lo na primeira vez, mas não somos tão rudes quanto ele, não é, grandão? — Natsuno falou olhando para Jhou, que não soube o que dizer. Ele então concluiu: — O Yago tinha uma técnica secreta.
Yago sorriu sem jeito. Explicou que sua tarefa foi mais simples que a nossa. Precisou apenas pressionar a lateral do pescoço do garoto com os dedos, onde ficava a artéria carótida, para desacordá-lo.
— Eu pensei que isso só funcionava nos filmes — comentou Natsuno, aparentemente encantado com o ato.
— Não exatamente — disse Yago.
— Interessante — seu Juca assumiu. — É uma coisa que parece simples, mas que envolve muita técnica. Tem que saber a força correta para não causar danos permanentes à vítima. Não é pra qualquer um.
Houve um pequeno silêncio entre nós. O mais desconfortável era o Léo, que olhava timidamente para baixo. Seu Juca decidiu que quebraria o clima com sorvete grátis. Ele mesmo iria preparar. Enquanto isso, perguntei:
— Por que você sumiu, Léo? A gente ficou preocupado.
Não obtive resposta. O pobre garoto parecia estar com a mente em outro lugar. Alguma coisa o preocupava.
— Léo? — insisti.
— Desde aquele dia… — ele começou, mas sua voz não seguiu adiante.
Decidi esperar. Seu Juca serviu o primeiro sorvete ao garoto que agora parecia segurar o choro. Estava caprichado; uma taça de vidro cheia até o topo com sorvete de morango, cobertura de caramelo em abundância e um pedaço de chocolate bem no centro. Os olhos castanhos do Léo brilharam e ele lambeu os lábios.
— Esqueci de perguntar se você gosta de sorvete de morango — disse seu Juca.
— Eu amo!
Um pouco mais animado, o garoto deu cinco colheradas fáceis.
— Parece que você tem um novo concorrente, Jhou — brincou o velho cozinheiro.
Todos demos risada.
Fiquei grato pela ajuda do cozinheiro. O pequeno gesto havia aberto o caminho.
Depois que todos foram servidos, Léo começou a falar:
— Eu comecei a ser perseguido… Vocês viram o monstro em que me transformo. Eu machucho pessoas, destruo coisas… Eles querem me matar por causa disso!
Ele deu uma pausa, nas palavras e no sorvete. A aflição retornou ao seu semblante. Notei as mãos do garoto tremerem levemente, talvez de raiva, ou de medo. Léo era apenas um pré-adolescente que, em sua forma humana, não passava de um menino inocente e desamparado.
Lembrei-me das palavras do garoto quando nos encontramos pela primeira vez, de que seus amigos e professores o rejeitavam e chegaram até a chamar a polícia para ficar de vigia. Léo, inclusive, havia sido expulso da escola.
— As coisas pioraram muito desde aquele dia — continuou Léo, dessa vez se esforçando para sua voz não falhar. — Todos os dias a minha família é atacada pelos nossos vizinhos, que jogam pedras na nossa casa e gritam xingamentos. Eles dizem que meus pais geraram uma criança monstruosa…
— Que maldade! — falei, assustado.
— Isso é horrível! — concordou Yago.
— Eles não estão errados — interveio o garoto. — Eu sou mesmo uma aberração. Machuquei muita gente nos últimos meses e isso é imperdoável. Mas a minha família… Eles não têm culpa. A minha irmãzinha tem só seis anos! — Seus olhos se encheram de lágrimas.
— Eu não gosto de injustiça! — bradou Jhou com a voz dura. — Isso me deixa com raiva! — Ele cerrou os punhos, indignado, assim como todos nós. — Você devia chamar a polícia!
— Já tentamos, mas não adianta. Meu pai não está conseguindo nem sair de casa pra ir trabalhar. A situação está feia, e é tudo minha culpa.
— Você não tem culpa, Léo — assegurei imediatamente, repousando a mão sobre o ombro do garoto. — Já lhe contei sobre o meu tio, que sofria o mesmo que você e acabou dando a volta por cima. Você também vai conseguir!
— O tiozão Michael é da hora — concordou Natsuno. — Nem parece que se transforma num tigre. O Dio tá certo, cara. Há uma saída pra esse seu B.O.
Léo não parecia animado. Era compreensível; eu não conseguia imaginar que atitude tomaria se minha mãe fosse reprimida por minha culpa. Definitivamente, não deixaria as coisas como estavam.
— Temos que resolver isso — decidi, determinado a ajudar Léo com todas as minhas forças. — Você pode ter causado alguns estragos, mas isso não dá o direito a ninguém de cometer essas atrocidades. Vamos dar um jeito nesses vândalos.
— Demorou! — concordou Natsuno, ficando de pé prontamente. — Tô contigo, Dio. Vamos dar uma surra naqueles otários!
Jhou também saltou da banqueta, feito um soldado pronto para a batalha.
— Não faremos dessa forma — apressei-me em dizer. — Violência não leva a nada.
— Na verdade, só piora as coisas — disse seu Juca. — Vocês precisam pensar numa estratégia eficiente.
Nós assentimos. Natsuno e Jhou sentaram-se novamente.
— Que horas eles costumam aparecer? — perguntei ao garoto.
— Sempre por volta das duas da tarde. Eles aparecem todos de uma vez. Já virou rotina.
— Certo. Amanhã a gente cuida disso. Por hoje, tenho outros planos.
Seu Juca e os outros garotos ficaram curiosos, mas não disseram nada. Quando finalmente finalizamos os sorvetes, despedi-me do cozinheiro e dos meus amigos e chamei Leonardo para conhecer Michael. O garoto ainda utilizou o celular do seu Juca para ligar para a sua mãe e avisar que estava com um amigo e que em breve voltaria para casa.
Tentei puxar vários assuntos no percurso entre a lanchonete e meu bairro. Era difícil tentar conversar com uma pessoa que está preenchida pela mais pura tristeza. E os olhares que nós dois recebíamos das pessoas pelas quais passávamos, que obviamente estranhavam o estado físico do garoto, não ajudavam nem um pouco.
Minha mãe não disfarçou o olhar de surpresa quando entramos na sala. Ela imediatamente me lançou um olhar indagador, enquanto eu lhe apresentava o mais novo amigo. Ela então sorriu e o cumprimentou gentilmente:
— Prazer, Léo. Eu sou a Sara, mãe do Diogo.
— Ele é um místico igual ao tio Michael — expliquei. — E está passando pelo mesmo problema que ele passou. Você sabe se o meu tio vem hoje, mãe?
Ainda de olhos no garoto-cachorro, mas agora com um olhar pesaroso, a mulher respondeu:
— Ele passou aqui mais cedo e levou o Billy pra floresta. Tome um banho, Léo, e vista uma roupa do Diogo. Seus pais sabem que você está aqui?
Leonardo assentiu devagar, completamente acanhado. Eu o levei até o piso superior e troquei de roupa enquanto o garoto tomava um banho. Ele foi até muito rápido, como se tivesse medo que alguém reclamasse da demora embaixo do chuveiro.
Depois nos despedimos da minha mãe, entramos na floresta e nos encaminhamos ao Rio de Água Pesada.
— A sua mãe é bem legal — dessa vez, foi Léo quem puxou o assunto, o que já era um começo.
— Não é querendo ser convencido, mas todo mundo diz isso. Ela é uma mulher com um coração gigante. E seus pais, como são?
— Tranquilos, até. A minha mãe é meio reclamona, briga bastante comigo e com a Martinha, mas é uma guerreira. Já o meu pai é um homem bastante ocupado, então não sobra muito tempo pra ficarmos juntos. No geral, ele é bem sério e rígido.
Eu me identifiquei um pouco. A ausência do meu pai também me causava sentimentos de abandono, apesar de ele ter seus motivos.
De repente fomos alertados por um grito de fúria e, em seguida, latidos. Trocamos um rápido olhar e começamos a correr, chegando na margem e nos deparando com uma cena no mínimo inusitada: um homem-tigre jogando um cachorro vermelho e enorme para longe. Billy pousou em pé e rosnou. Tio Michael também rosnava.
— A brincadeira está emocionante? — chamei-lhes a atenção.
Michael se deixou desabar no chão e Billy latiu, avançando na minha direção. Até tentei recuar, mas era tarde: quase fui esmagado pelo peso do cão vermelho, que encheu meu rosto de baba numa só lambida.
— Ai caramba, cansei! — exclamou tio Michael, deixando sua forma animalesca ir embora e soltando um suspiro.
Billy, ainda em cima de mim, encolheu-se num piscar de olhos e correu para ser acariciado pelo menino-cão.
— E aí, Billy — disse Léo ao acariciar o cachorrinho. — Eu também senti a sua falta!
Meu tio se levantou e também se aproximou.
— Você deve ser o Léo — disse sério, fazendo com que o garoto o olhasse preocupado. — É ele mesmo, Diogo?
— O próprio — respondi.
Dei risada da maneira com que meu tio fitava o místico, com olhar rígido e braços cruzados. O homem-tigre quebrou o clima ao dar um sorriso e estender a mão ao assustado menino.
— Te procuramos pra caramba! Onde você se meteu?
Apertando-a hesitante, Léo respondeu:
— Tive uns problemas nas últimas semanas. Foi mal…
Sentamos na grama e Léo explicou tudo. Eu também narrei os acontecimentos que me levaram a reencontrá-lo. E o restante da tarde foi preenchida pelos conselhos e histórias do Michael, que contribuíram muito para que Léo sentisse esperança; o homem-tigre tinha uma emocionante história de superação que fez o garoto-cachorro derramar algumas lágrimas, provavelmente lembrando-se de tudo o que estava passando.
Eu não conseguia conter a felicidade. Encontrava-me sorrindo em diversos momentos, observando que estava conseguindo cumprir com meu objetivo. Além disso, era curioso presenciar a conversa de duas pessoas cujo poder os fazia se transformar em metade animal: um tigre e um cachorro.
No fim das contas, ficou decidido que tio Michael não viajaria comigo para o Canadá, embora meu pai tivesse insistido para que ele fosse. Aproveitaria as próximas semanas para ensinar Léo a controlar seu poder e, quem sabe, aprender artes marciais.
***
Nota do autor:
Ei, fiquem ligados que hoje mesmo tem capítulo bônus para compensar o atraso no lançamento!