Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 2 – Arco 5

Capítulo 57: Guga, o garoto que ninguém vê

Não havia como não acordar de bom humor após uma noite tão memorável. As cenas do encontro me impediram de pegar rápido no sono, fazendo com que eu acordasse quase na hora do almoço no domingo.

— Agora é se preparar para a parte difícil — disse a mim mesmo. Sandro Macedo seria esta parte. Sophia prepararia o terreno para que nós dois tivéssemos uma conversa; o problema era que eu não fazia ideia do que falar. A presença dele me deixava intimidado, foi como me senti na primeira e única vez que nos encontramos. Meu pai, no entanto, dissera que Sandro era gente boa. Mas até que ponto?

De qualquer forma, eu me levantei sorrindo, escovei os dentes sorrindo e almocei sorrindo. Talvez observando a minha alegria excessiva, minha mãe comentou que o encontro deveria ter sido bom.

“Só faltou o beijo”, pensei em responder.

Depois decidi ir ao parque, o melhor lugar da cidade para colocar os pensamentos em dia e reviver os bons momentos. Devido ao sol escaldante do início da tarde, a quadra estava deserta e a praça pouco movimentada. Sentei-me num dos bancos e fiquei repassando as cenas da noite anterior em minha cabeça durante vários minutos. Automaticamente, começava a sentir saudades de Sophia; de sentir o seu cheiro, o toque de suas mãos, de ver seu sorriso de perto. Não via a hora de poder estar ao lado da garota todos os dias.

Passado algum tempo, Zoe surgiu de algum lugar e sentou-se ao meu lado.

— Oi, Diogo.

— Olá, Zoe…

Fiquei surpreso pelo aparecimento da garota. Antes que eu perguntasse se Zoe estava bem, algo me incomodou na parte de trás do pescoço. Respondi com um tapa, deduzindo ser um inseto. Então percebi que Zoe segurava o riso.

— O que foi? — estranhei.

— Nada.

Senti outro incômodo, mas agora no cabelo. Dei outro tapa, dizendo a mim mesmo que odiava moscas. Zoe parecia fazer um esforço ainda maior para não rir. Muito suspeito.

— Zoe, o que está rolando?

— Eu já falei que nada!

Continuei a encarando, pois sabia que a garota estava escondendo alguma coisa. E, pela terceira vez, o que quer que fosse me incomodou, agora com um tapinha na nuca.

Olhei para trás e não vi ninguém, só algumas poucas crianças brincando na sombra de algumas árvores. Até que ouvi um ruído próximo. Era como se alguém tivesse deixado escapar a risada por uma fração de segundo. Estreitei meus olhos para o chão e notei o gramado se mexendo. Imediatamente, fiquei de pé e esbravejei:

— Eu sei que você está aí! Não adianta se esconder! Eu te vejo! — menti.

Foi aí que segurei o fôlego, quando a imagem de um garoto se materializou do nada exatamente onde o gramado estava se mexendo.

O garoto — que outrora aparentemente estava invisível ou algo do tipo — ofegava e transpirava, embora desse muita risada. Ele olhou para a Zoe e a garota também riu. Então ele disse, estendendo a mão:

— E aí, meu mano, eu sou o Gustavo, mas pode me chamar de Guga. Tudo na paz?

Tratava-se de um adolescente um pouco mais alto que eu, e que usava um boné marrom por cima de volumosos cabelos castanhos. Ele vestia camiseta preta e segurava um skate de lixa desgastada. Mas o grande destaque eram seus olhos esverdeados, característica natural dos místicos.

Apertei a mão dele e, embora receoso, sorri. Finalmente estava conhecendo o tal amigo invisível da Zoe. 

 

A primeira coisa que notei enquanto nós três dávamos uma volta pelo bairro: Guga usava gírias com muita frequência. Algumas expressões eram difíceis de entender, como “truta” e “mó cota”, mas outras já tinham algum significado devido a minha convivência com os garotos do colégio Martins. Nada que atrapalhasse tanto a conversa; o místico era carismático, conversava bem e, curiosamente, não saía de cima de seu skate — disse que ele era um amigo fiel e companheiro de diversão.

Até que me dei bem com o Guga ao compartilhar histórias engraçadas e travessuras que já havíamos cometido. Zoe comentou que a nossa personalidade era parecida e sorriu, alegando estar feliz por ver seus dois melhores amigos fazendo amizade.

— Aquele ali não é o Natsuno? — estranhou a garota ao avistarmos um garoto de cabelo roxo se aproximando.

Natsuno acenou de longe e apressou os passos. Após eu lhe apresentar o Guga, ficou surpreso:

— Dio, você tá dizendo que ele pode ficar invisível?

— Sim.

— Maneiraço!

Guga deu um sorriso tímido.

— Você tem ideia do tipo de coisa que pode fazer? — Natsuno parecia não ter pensamentos muito inocentes. — São um milhão de possibilidades! Cara, eu queria ter essa sorte.

Todos rimos. A verdade era que não daria muito certo.

— Nem tudo são flores, tá ligado? — disse Guga. — É uma habilidade da hora, mas é osso. Não aguento ficar invisível por muito tempo. Usar esse poder me deixa quebrado.

— E o que você faz por aqui em pleno domingo? — perguntei ao meu melhor amigo. Era difícil Natsuno aparecer na minha casa. — Vai falar que temos uma caçada?

— Não que eu saiba — disse Natsuno. — Eu estava indo à Lanchonete Lendária, mas não queria ir sozinho, daí vim te chamar.

— Lanchonete Lendária? — estranhou Guga. — É top?

— Orra! Nunca ouviu falar?

O místico fez que não.

— Lá é muito bom — garantiu Zoe, então olhou para Natsuno. — Nós também podemos ir?

— Ué, claro que sim! A gente pode até assustar o seu Juca com o seu poder de invisibilidade — disse para Guga, que deu risada.

— Quem sabe? — respondeu ele. — Vai depender das minhas energias. Gastei muito ao assustar o Diogo.

— O Dio caiu na sua? — Natsuno tinha uma expressão debochada. Guga fez que sim e Zoe novamente riu. — Pô, Dio, ainda bem que não era um vampiro.

Eu não tive nada a dizer a não ser concordar. E seguimos rumo à Lanchonete Lendária.

 

— E aí, Diogo! — disse Jhou assim que o sino da estreita porta do bar da lanchonete soou e nós entramos. — Pensei que você não vinha. Estou faminto!

Acenei num cumprimento e Natsuno comentou:

— Que novidade.

Pedro e Jhou estavam sentados à mesa um de frente para o outro provavelmente aguardando o que quer que tinham pedido. Atrás do balcão, o barman Leandro lavava alguns copos enquanto conversava com o fiel cliente Edson, um japa que parecia ser viciado em café. Outros dois homens bebiam cerveja no balcão, um pouco isolados.

Natsuno, Zoe e eu nos acomodamos ao lado de Jhou e Pedro, ansiosos para ver a reação deles ao caírem na pegadinha que Guga, invisível, estava armando.

— O que há com vocês? — estranhou Pedro. Provavelmente percebeu que segurávamos o riso. Era difícil controlar.

— Nada — disse Natsuno. — Vocês dois pediram quais lanches?

— Lanches? — disse Jhou. — Nós almoçamos. Agora é hora da sobremesa!

— O Jhou pediu alguns pedaços de bolo de chocolate para nós dois — respondeu Pedro. — Seu Juca foi buscar na outra ala. — Ele ainda continuava desconfiado. Era como se Pedro tentasse identificar o cheiro que estava sentindo.

— E por que vocês não se sentaram lá? — perguntei para tentar despistá-lo.

Jhou apontou para o conjunto de portas de vidro que davam acesso a um amplo salão repleto de mesas e cadeiras, como se quisesse responder que não havia como; todas as mesas estavam ocupadas por pessoas, que almoçavam. 

— Ah sim…

— Galera, tem algo de errado — concluiu Pedro.

Começava a ficar difícil segurar o riso. Eu já conseguia imaginar a reação do grandalhão Jhou ao ser assustado por Guga. Ele provavelmente ficaria pálido ao pensar que se tratava de um fantasma.

De repente:

— O que está havendo aqui?

Edson estava postado diante da mesa, encarando nós cinco e o vácuo ao lado da Zoe. Sua expressão era rígida feito uma pedra.

— Ali! — Pedro apontou para o vácuo. — Tem alguém ali, eu tenho certeza!

— Como assim? — apavorou-se Jhou.

— Apareça! — exigiu Edson, olhando fixo para o lugar apontado por Pedro. — Eu também sinto sua presença. É um místico!

Guga se materializou, ofegante e de olhos arregalados. Edson estreitou seus olhos puxados sobre o garoto, que apenas acenou para ele sem jeito.

— Esse é o Guga — apressei-me em dizer. — Amigo da Zoe.

— Salve, rapaziada. — Guga voltou-se para um Pedro surpreso e um Jhou trêmulo.

Edson simplesmente deu as costas e retornou ao seu assento no balcão, acompanhado pelo olhar curioso de Leandro. Pedro disse:

— Você quase nos enganou. 

Guga deu um pequeno sorriso.

— Era pra ser uma pegadinha. Por pouco não deu ruim — disse ele, lançando um olhar para Edson. — Quem é aquele cara?

— Um caçador veterano — respondi em tom baixo. — Ele é sério daquele jeito, mas é gente boa. Pedro, Jhou, esse é o Guga. E ele pode ficar invisível, como vocês viram.

— Loucura — disse Jhou. — Eu sou forte!

Percebendo que Guga não entendeu, expliquei:

— O Jhou também é um místico. Ele tem super força.

— E super fome — acrescentou Natsuno.

Nós conversamos um pouco até que seu Juca apareceu com quatro fatias de bolo de massa preta com cobertura de leite em pó. Três para o guloso Jhou e um para o modesto Pedro.

— Olá, crianças! Diogo, como vai? Natsuno me contou o que aconteceu. Está melhor?

Eu fiz que sim, alegando que não sentia mais dores. Expliquei para Guga o que havia acontecido, deixando o garoto impressionado. E seu Juca me elogiou pela coragem, embora com conselhos adicionais para não nos arriscarmos tanto.

E o restante da tarde foi tranquilo. A todo momento eu me encontrava pensando em Sophia e no desafio que teria pela frente — e começava a me achar incapaz de falar com o pai dela. Cogitei pedir conselhos para a Zoe, mas considerando que a garota pudesse ter sentimentos por mim ainda, achei que o ideal seria nem sequer mencionar o assunto.

No dia seguinte, Natsuno chegou cedo ao colégio Martins e estranhou quando viu que eu tinha chegado primeiro. Eu estava sentado num dos bancos da praça quando ele se aproximou. Perguntou, sonolento:

— Por que você chegou tão cedo, Dio? Caiu da cama?

— Ah, e aí, Natsuno. Eu não consegui dormir direito essa noite.

Natsuno sentou-se ao meu lado.

— O que te aflige, meu jovem gafanhoto? Percebi que você está esquisito desde ontem. Quer me contar algo?

Suspirei. Meu peito guardava um medo muito grande, só não tanto quanto minha ansiedade.

— A Sophia quer que eu fale com o pai dela. Nós pretendemos ter um relacionamento — expliquei, ao notar a confusão no rosto do Kogori.

—Um relacionamento? Então você deu uns beijos nela, né safadinho? — Natsuno assumiu uma expressão sarcástica.

— Não exatamente. Faltou pouco. — Eu ainda me sentia frustrado. — Pelo menos descobri que ela também gosta de mim.

— Quem não sabe disso? Pô, Dio, só não vê quem não quer! A Sophia é caidinha por você, eu te disse na primeira vez que nos falamos, não lembra?

Eu me lembrava. E no fundo, também sabia disso, mas custava a acreditar pelo fato de a garota ser muito diferente de mim. Sophia era linda, popular e extrovertida; simplesmente o meu oposto.

— Fica frio, cara — continuou Natsuno. — Se o Sandro não aceitar, o máximo que vai poder fazer será proibir você de se aproximar dela. Te matar ele não pode, já que seu pai é chefe dele.

— Isso não está ajudando, cara. — Decidi que precisava falar sobre outra coisa. — E aí, está preparado para a semifinal de amanhã?

Natsuno ergueu uma sobrancelha, talvez pela mudança repentina de assunto, então decidiu responder:

— Preparado não, mas tô ansioso pra caramba! Não imaginei que chegaríamos tão longe. Dio, me responde uma coisa.

— Sim?

— O que aconteceu realmente naquela noite do hospital?

— Que noite?

Natsuno também estava mudando de assunto, mas para uma área um pouco mais complicada. E ele se referia ao dia em que Shin tentou matar a garotinha no hospital.

— Você sabe exatamente do que estou falando! Você foi jogado pela janela e… voltou. Como? Eu ouvi você gritando enquanto caía lá embaixo. Tô com essa pulga atrás da orelha desde aquele dia.

Como se estivesse vivenciando de novo, lembrei-me detalhadamente de todas as cenas. Lembrava da horrível sensação de ver o chão se aproximando diante de meus olhos e a pressão de uma queda em plena madrugada; o frio na espinha, a dificuldade para respirar, o coração acelerado. 

“Então senti dois braços envolvendo o meu tórax e a velocidade da queda diminuir. O chão ainda se aproximava, mas dessa vez devagar. Alguém havia me salvado e me repousou na calçada do hospital com delicadeza. Era difícil saber qual sensação era maior: o pavor ou o alívio.

Virei-me para o indivíduo que me impedira de ter uma morte horrível.

— Yasmim?

— Você está bem? — perguntou ela, um pouco ofegante e de olhos sérios e verdes. Eles cintilavam diante da escuridão da noite. Não deveria estar tão escuro, eu percebi, mesmo que fosse madrugada. O interior do hospital estava apagado assim como as luzes dos postes da rua em que estávamos.

— Eu… eu acho que sim.

Demoraria algum tempo para que meu peito se acalmasse. Não fosse por Yasmim, eu não estaria em pé para contar histórias. E observei atentamente a linda garota, que tinha a mesma aparência de quando me salvou do afogamento, no fundo do Rio de Água Pesada. Ela tinha asas brancas e extensas que balançavam com a brisa da noite. Seu corpo bronzeado trajava um vestido tomara que caia rosa-choque que tinha um charmoso contraste tanto com o amarelo de seu cabelo quanto com o verde de seus olhos. Mas dessa vez ela não parecia um espírito.

Apesar da voz rouca e serena, as palavras de Yasmim foram firmes:

— Você não pode morrer.

Entendi aquilo como uma exigência. Yasmim me salvara pela terceira vez — embora a segunda não ameaçasse de fato minha vida — e mesmo assim o mistério continuava:

— Quem é você, Yasmim? E por que me salvou?

— Eu já te dei a resposta — sorriu ela.

— Meu… anjo da guarda? — Eu me lembrava dela dizendo isso, na primeira vez que havíamos nos encontrado. — Então quer dizer que você vai me salvar sempre?

— Sempre que estiver ao meu alcance. Mas isso tem que ficar entre nós. Nós estamos aqui para te proteger, mas a tendência é ficar mais complicado. Ainda assim… eu prometo fazer o meu melhor!

Embora eu não tivesse entendido o que significava “nós”, fiquei admirado pelo olhar firme e determinado da garota. Fazia eu me sentir seguro e protegido. Yasmim possuía uma presença diferente, algo divino. Uma aura que transmitia uma paz que parecia querer penetrar meu coração.

Ela olhou preocupada para cima, a janela quebrada do quarto onde estavam Shin, Natsuno e a menininha internada. O suficiente para eu voltar a mim.

— Eu preciso voltar lá — falei preocupado. — Yasmim, você consegue…?

A garota anuíu com a cabeça. Eu não queria saber qual a sensação de voar, muito menos dar trabalho para o anjo da guarda, mas era a maneira mais rápida de chegar lá em cima e evitar que o pior acontecesse.

Yasmim me abraçou por trás e alçou voo, me deixando um pouco envergonhado pelo toque. Decidi que precisava me concentrar e me preparar para o retorno ao quarto. Os dois garotos não entenderiam nada e Natsuno provavelmente me questionaria sobre o que havia acontecido. O mais importante, no entanto, era ajudá-lo a manter a pequena garota a salvo e acabar com a raça do Shin.”

— Um dia, talvez, você vai saber — decidi responder ao Natsuno, que ainda esperava pela resposta.

Natsuno me fitava com incerteza. Por fim, apenas suspirou e deu de ombros, dizendo:

— O importante, maninho, é que você não morreu, e eu fico feliz por isso. Acho que todo mundo tem algum segredo guardado, né? Faz parte.

Eu poderia até concordar, mas de uma coisa tinha certeza: eu era privilegiado por ter um anjo da guarda só para mim.



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