Volume 1 – Arco 4
Capítulo 43: O clã dos índios e o pesadelo real
— Que lugar é esse?
Assim como o restante de nós, o grandalhão Jhou estava zonzo, tentando manter seus olhos focados no cenário à nossa volta. Tive que piscar várias vezes para a minha visão voltar ao normal, e quando voltou, eu respondi o que me pareceu:
— Parece uma... cabana de palha.
Riku foi o primeiro a sair da cabana. Nós o seguimos e nos vimos cercados por árvores e mais árvores, tão espessas que era quase impossível ver o céu lá em cima. A floresta estendia-se para todas as direções com um surpreendente gramado fofo e bem cuidado, tornando-a o que parecia ser uma espécie de jardim gigante. Olhei para trás e lá estava o portal, dentro de uma espécie de palhoça. Ainda era difícil aceitar o fato de que, segundos atrás, estávamos numa casa abandonada em um dos bairros do sul de Honorário.
— Parece que teremos um longo caminho — disse Natsuno.
Assim que falou isso, vultos silenciosos passaram por nós e, de repente, estávamos cercados por dezenas de homens vestidos como se fossem índios, todos com algum tipo de arma branca na mão (lanças, arco e flecha, navalhas e canivetes).
Natsuno, Riku e eu nos preparamos para a luta, enquanto eu podia sentir a tremedeira do Jhou ao meu lado; Pedro mantinha-se calmo, apenas focado.
— O que vocês querem aqui? — perguntou um dos homem que parecia o chefe deles, pois sua roupa era diferente dos demais: os índios usavam apenas um short de couro, enquanto o chefe, além do short, usava também metade de uma camisa velha e um chapéu de palha, sem falar que ele era o mais velho também (pelo menos o único que tinha rugas). E os olhos de todos eram puxados e escuros. Pareciam nativos brasileiros, um pouquinho mais selvagens, mas ainda assim pareciam indígenas.
— Não queremos nada — Riku disse com tranquilidade —, apenas sair daqui.
O “cacique do chapéu de palha”, que estava de frente para nós, nos olhou de cima a baixo com certa desconfiança. Olhei para os meus amigos e reparei num Jhou muito assustado, suando frio e com as pernas trêmulas. Pedro mantinha-se calmo, mas Natsuno estava pronto para a luta.
— Você! — disse o chefe ao Kogori.
Natsuno levou um susto.
— O-o que foi?
— Por que o seu cabelo é roxo?
O garoto soltou um profundo suspiro de alívio e depois deu uma risadinha engraçada.
— Não sei.
Tive que me segurar para não rir, e voltei meus olhos para o cabelo do grupo dos "índios" e todos tinham cabelos castanhos e bagunçados. O cabelo do Natsuno com certeza se destacaria ali.
— Você é filho do Hebert?
Natsuno mostrou-se surpreso por aquele homem saber o nome de seu pai.
— Sim, como você sabe?
O cacique abriu um enorme sorriso:
— Eu e ele somos grandes amigos!
Natsuno parecia tão surpreso quanto eu, e aliviado também. O homem virou-se para o seu bando e disse:
— Podem baixar as armas!
Quase que de imediato, todos baixaram suas lâminas e deixaram a postura de ataque, muito embora mantivessem as expressões sérias.
— Senhor — falei, dando um passo na direção do homem —, desculpe-me por qualquer coisa, mas acontece que estamos com pressa.
Ele olhou para mim e, de repente, me fulminou com o olhar; engoli em seco.
— Você é parente daquela pessoa — disse ele, sombrio e ameaçador.
Olhei sem entender para Natsuno, que parecia confuso .
— Parente de quem? Do meu pai, Tony Kido? — Porque era a única pessoa em que eu conseguia pensar.
— Não, é uma pessoa muito mais perigosa.
Confesso que fiquei assustado. Primeiro que eu nem sabia de quem ele estava falando e segundo: alguém mais perigoso que o meu pai?
— Enfim — falei, tentando ignorar aquilo —, precisamos sair daqui rápido antes que anoiteça.
O olhar demoníaco do homem desapareceu, e ele perguntou:
— Para onde vocês estão indo?
— Para o Monte Zentaishi — disse Riku sem delongas.
O cacique coçou a cabeça por debaixo da aba do chapéu de palha e disse:
— Uh, fica muito longe daqui. — E riu.
— E para qual sentido temos que ir? — perguntou Pedro, abrindo a boca pela primeira vez. Quando o homem fez menção de olhar nos seus olhos para fazer a sua "análise", Pedro desviou o olhar, e eu sabia o porquê.
— Por ali — disse o chefe indígena, apontando para as suas costas.
Meus amigos e eu trocamos um olhar.
— Vocês querem alguma comida ou alguma bebida? — nos ofereceu o homem, ainda.
— Não, senhor — falei, porque o quanto antes saíssemos dali, melhor. — Muito obrigado.
— Ok. — O senhor virou-se para os índios armados e gritou: — Abrir caminho!
Obedecendo, as dezenas de homens sem camisa se moveram para que pudéssemos passar, como se fossem soldados abrindo caminho para a corte.
Começamos a caminhar, sendo eu o primeiro, Riku o segundo e Natsuno o terceiro. Pedro era o quarto e Jhou o último. Olhei para trás e o grandalhão continuava trêmulo, caminhando ao mesmo tempo em que suspeitava dos índios. Ele me olhou e eu sorri, como se quisesse lhe dizer para ficar tranquilo. E acho que deu certo.
— Qualquer coisa, podem nos chamar! — gritou o cacique do chapéu de palha, lá atrás. — Basta usar fogo!
Fiz que sim com a cabeça, mesmo sem entender o que ele queria dizer.
Voltei-me para Riku e perguntei:
— Você sabia o tempo todo que eles não eram inimigos, né?
Riku fez que sim, respondendo:
— Eles são de um clã aliado ao de vocês. Clã Hyraion, mais conhecido como ”O Clã Selvagem”.
Eu não imaginava que existiria um clã de índios no meio da floresta. Foi estranho imaginar indígenas combatendo vampiros. Sorri, continuando a jornada no meio da floresta.
Quanto mais andávamos, mais complicado ficava para se deslocar pela floresta. Além do calor que fazia, vira-e-mexe aparecia algum mosquito zunindo ao meu ouvido. Atrás de mim, Jhou afastava galhos com tanta força que chegava a quebrá-los. Eu me perguntei se chegaríamos a encontrar algum animal silvestre pelo caminho, e como eles seriam.
Depois de mais de uma hora caminhando, enfim chegamos numa cachoeira no meio da floresta. O lugar parecia um pouco com o Rio de Água Pesada, e finalmente pudemos ver o céu, este muito limpo e azul, onde o enorme sol se destacava.
— Que tal pararmos aqui? — perguntei aos outros.
— É um lugar daorinha — disse Natsuno.
Nos sentamos no gramado perto da margem do rio e repousamos. Minha vontade era de me jogar na água e tomar um banho, no entanto eu não tinha levado toalha para me secar. Além disso, era difícil confiar num rio que fazia parte de outro mundo. Acredite, já tive experiências parecidas, e quase morri afogado.
Todos comiam sanduíches ou algo do tipo, a não ser o Jhou. Ele devorava lanches que tinham tamanho família. Presumi que seus pais ganhavam bem, uma vez que o grandalhão dava muito prejuízo com comida.
— Ei, grandão, vai com calma — disse Natsuno, um pouco assustado, observando o grandalhão comendo sem parar; eu apenas sorri.
Riku olhou para Pedro e disse:
— Fique atento, esse lugar é infestado de caçadores.
A frase soou estranha. Se Riku dissesse “esse lugar é infestado de vampiros” talvez eu me sentiria melhor, porque vampiros era o que enfrentávamos casualmente. Nunca me imaginei enfrentando caçadores do mal. Na verdade, nunca sequer havia cruzado com um. Imaginei que deviam ser ainda mais perigosos do que os próprios vampiros.
— Aquele cara quase te descobriu — interveio Natsuno. — E não parecia nadinha tolerante. Pedro, você tem que tomar muito cuidado, maninho.
Pedro parecia pensativo, ou até arrependido de ter nos acompanhado. Riku e Natsuno estavam certos, no entanto eu entendia o lado dele. Queria conhecer Venandi, assim como eu. Era um risco que poderia valer a pena.
— Ele vai ficar bem — foi a única coisa que falei.
— Seria mais fácil se eu conseguisse me camuflar tão bem quanto você, Riku — disse Pedro.
— Como assim? — perguntei.
— Os olhos — disse Riku. — Isso exige muita concentração. Não é pra qualquer um.
Assim que me dei conta do que estavam falando, lembrei-me de Cláudio. Meu pai mencionara que ele conseguia esconder bem a sua identidade, e por isso estava numa missão muito arriscada, infiltrado entre vampiros para tentar descobrir sobre o paradeiro de um cientista.
Meu coração deu uma pontada, enquanto eu me sentia péssimo lembrando da história do falecido caçador. Ele teve um passado triste e muito complicado. Sua mãe enlouqueceu e seu pai, que era o Caçador Lendário, morreu. O garoto cresceu sozinho num orfanato, pensando apenas em treinar para se preparar para a vida, sem amigos ou, sequer, uma vida simples e tranquila, para, no final das contas...
De repente, minha cabeça começou a doer. No mesmo instante eu me levantei e comecei a gritar de dor, do nada!
— AAAAAAAAIIIIII!!!!!!
Coloquei desesperadamente minhas mãos sobre a cabeça, meu corpo tremia por inteiro deixando Natsuno e os outros assustados. Eles tentavam me acalmar, mas nessas horas eu não ouvia mais nada, apenas gritava. A dor estava insuportável.
— AAAAAHHHHH... — continuei gritando, e agora eram os meus olhos que estavam doendo, doendo tanto que eu pensei que iam explodir! Até tudo apagar.
Escondido atrás do tronco de uma árvore grossa, eu espiava de soslaio três pessoas conversando. A claridade do sol invadia o ambiente através dos galhos e das folhas, criando sombras distorcidas perante os três indivíduos que conversavam com uma preocupação que chegava a ser sombria.
Reparando melhor neles, eu quase não acreditei: dois adolescentes corpulentos e um homem magro de bigode estranho e nariz esquisito, semelhante àqueles ditadores dos anos 60 ou 70. Os adolescentes, assim como ele, eram familiares: um loiro e um careca, ambos com cicatrizes pelo rosto e com uma tatuagem no tríceps direito que não parei para ver do que se tratava; o professor de História e os outros dois valentões da minha escola!
Eu não conseguia ouvir o que conversavam. Aliás, eu não ouvia nada. Parecia um daqueles sonhos mudos. Eles vestiam camiseta preta com detalhes azul-escuro, idênticas, a despeito das calças, que eram diferentes. Paulo Gomes, o professor de História, dizia alguma coisa aos outros dois, algo que surpreendeu ao loiro mais do que o normal.
E ficaram mudos por alguns segundos, um olhando para o outro, todos sérios.
De repente, um dos três vampiros desapareceu — era o professor de História.
Estranhei.
Então, do nada, os outros dois olharam na minha direção ao mesmo tempo, um pavor dominando o meu corpo! Correram até mim, e até tentei fugir, mas quando dei meia-volta fui surpreendido pelo professor de História. Ele olhou para mim com a sua cara feia e seus dentes caninos, além dos olhos assustadores que estavam vermelhos.
Ele me empurrou e em seguida fui atacado por trás pelos outros dois. Eles me acertaram com vários golpes, me deixando imobilizado de tanta dor.
Caí no chão.
Os três me espancavam. Eu não conseguia fazer nada. Sentia os olhos inchados e sangue escorria pelo meu nariz. Esperei o momento certo e fiquei de pé num pulo, disparando pela floresta.
Não sei o que me deu forças, mas corri rápido por entre as árvores, ferido e sangrando. Não sabia se os inimigos me seguiam, mas consegui sair da floresta chegando numa rua. Precisava encontrar ajuda antes que os vampiros me alcançassem, ou estaria morto.
Eu já não conseguia mais correr, parecia estar puxando uma carruagem. Meu corpo começava a pesar, significando que em breve eu desabaria. Até que algo me surpreendeu. Só deu tempo de eu ver o farol forte de um carro tomando a minha visão por completo, aproximando-se muito depressa. Não tive mais nada a fazer, a não ser aceitar a morte.
Abri os olhos e, em meio ao embaço, distingui apenas o céu de início. Percebi que estava deitado no gramado, na margem da cachoeira, meu corpo aquecido de forma extraordinária.
Eu estava encharcado de suor.
Rodeado por amigos que tinham expressão de nítida preocupação, eu me sentei, observando os olhares alternando-se para um alívio cômico. Mas naquela situação, eu só conseguia pensar no sonho.
— Você tá bem? — Natsuno e Jhou perguntaram ao mesmo tempo. Até mesmo o Riku parecia um pouco surpreso, embora apenas observasse de longe.
Respondi, ainda com a adrenalina do sonho no meu corpo:
— Sim... O que foi que aconteceu?
— Seus olhos ficaram amarelos, cara — disse Natsuno, ainda preocupado, olhando para mim como quem estava olhando para um fantasma.
— Não são os olhos de um caçador? — tentei ironizar para quebrar o clima desconfortável, finalmente ficando de pé e colocando a mão sobre a cabeça, que latejava.
Pedro olhou para mim, sério:
— Mas dessa vez eles brilhavam sem parar.
Não entendi bem o que ele queria dizer com aquilo, e olhando para o Medeiros, notei algo além de surpresa em seus olhos cinzentos. Eles pareciam... desconfiados.
Depois pensei no sonho. Por algum motivo, ele me soava um tanto familiar. Fui espancado por vampiros que frequentavam a minha escola e meio que me vigiavam, mas que estavam sumidos havia quase três meses.
— Fazia tempo que eu não tinha pesadelos — falei, pensativo. — Mas esse foi diferente… Parecia uma espécie de… premonição.
Eu estremeci por completo.
Notei que Jhou estava trêmulo, portanto o fitei — e encontrei olhos que transmitiam uma tristeza que eu nunca vira antes nele. Ele parecia querer me perguntar algo.
— Jhou, qual o problema? — perguntei.
— Por que... v—você disse o nome do meu... pai?
— O nome do seu pai? — perguntei confuso. — Como assim?
— Quando você estava tendo o "pesadelo" — explicou Natsuno, numa expressão de quem estava lembrando — você não parava de gritar "Rodrigo", "avisar" e "pen-drive".
E foi aí que eu me toquei. A floresta com a agressão covarde dos vampiros, a fuga e o encontro com o farol daquele carro... Não era eu apanhando, e sim o Cláudio!
E o pensamento que veio a seguir fez eu me perguntar se o mundo era pequeno ou se era o destino que havia tramado tudo aquilo. O tal Rodrigo, o cientista desaparecido, era pai do Jhou?