Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 21: O primeiro passo: Rio de Água Pesada

Eu estava na parte funda do rio e isso não soava muito normal. O fluxo da água passava entre as minhas pernas, que me puxava mas dessa vez eu estava atento. Michael, por outro lado, empalidecera feito uma folha de papel, olhando como alguém que olhava para um fantasma.

De repente, eu afundei alguns centímetros e meu sangue gelou devido ao medo de me afogar de novo; felizmente, eu consegui boiar. A água não parecia tão pesada como antes, portanto, bem devagar e com certa dificuldade, eu nadei até a parte rasa do rio. Tio Michael foi para a margem e resmungou algo sobre ter se molhado a toa. Finalmente eu conseguia ficar de pé. Decidi me "instalar" perto do ponto inicial, onde a água chegava à metade das minhas coxas.

— Bom trabalho — disse ele, afinal, saindo do estado de perplexidade.

— E agora? — perguntei ansioso. — O que eu tenho que fazer?

Michael caminhou pelo gramado alto até uma rocha encravada no chão e se sentou, tirando em seguida um livro de dentro de sua mochila. O folheou e respondeu:

— Apenas ficar aí até… — olhou no relógio — às seis.

A resposta não me agradou nadinha.    

— E que horas são agora? — perguntei, encarando-o de cara fechada; meu relógio não funcionava mais devido ao afogamento.

— Exatamente… uma e vinte e oito.

Essa segunda resposta acabou comigo. A única coisa que pude fazer foi aceitar.

Meu tio se entreteu na leitura, me deixando de lado, enquanto eu lutava para conseguir me manter de pé naquele rio. O tempo foi passando e o sol quente ia secando as minhas roupas. Não que isso fosse importante. Eu só pensava na imagem que vira quando estava no fundo do rio. 

O anjo.

A garota era bonita e disse ser meu anjo da guarda. Mas que tipo de anjo aparecia debaixo d'água? Eu até pensei que ela poderia ser uma caçadora, embora parecesse mais um espírito. Ou uma miragem. Ou eu estava enlouquecendo.

E como não tinha respostas, voltei a me concentrar em ficar de pé.

 

Já havia se passado muito tempo quando meu tio decidiu parar de ler. Guardou o livro na mochila e tirou um sanduíche embrulhado em um papel-toalha, começou a comer dando mordidas enormes e mastigando de boca aberta, fazendo uma expressão de quem estava adorando o lanche. Eu tentei não pensar em comida, mas a minha barriga protestou com um longo e barulhento ronco:

ROOONGH!!

— Ai — choraminguei, sentindo o estômago vazio. Michael nem se importou, ainda mastigando com prazer. — Ei, tio — falei com a minha melhor cara de dor —, que horas são agora?

Ele olhou em seu relógio de pulso e respondeu, de boca cheia:

— Duas e meia.

— Ainda?

Michael continuou me ignorando, enquanto eu ainda ficava me segurando de pé naquele rio pesado, morto de fome.

 

Mais algum tempo havia se passado, quando meu tio comentou, contudo sem qualquer interesse na voz:

— Faz tempo que não chove, não é, Diogo?

— Legal — falei exausto, sem qualquer ânimo.

E um barulho ensurdecedor de trovão ribombou no céu.

Ergui meus olhos, assustado. De tão cansado eu nem reparara que o céu estava escuro. Tio Michael tirou um guarda-chuva preto pequeno de sua mochila e o armou. Assim que o abriu, começaram a cair gotas das nuvens pesadas, e percebi que o tempo havia mudado muito. As gotas geladas caíam, aparentemente, só naquela região da floresta, onde nós estávamos  — eu me equilibrando no rio e ele sentado numa rocha, de boa. Minhas roupas tornaram a se molhar, enquanto eu sentia os pingos agonizantes na pele, pingos que eram mais gelados do que a água do rio. Decidi perguntar ao Michael, olhando-o com desânimo:

— Que horas são?

— Três e quarenta e seis — respondeu ele, com uma suspeita voz divertida.

— Como o tempo passa devagar — murmurei.

A chuva começou.

 

Os últimos pingos caíram e vários pombos voaram por cima de mim em sentido oeste, em grupo, todos em uma altura consideravelmente baixa. E, por coincidência ou não, um deles defecou na minha franja, cujo esterco desceu pela minha testa, me deixando irritado.

— Tinha que acontecer isso?

— Faz parte — ironizou meu tio, rindo da minha cara.

Michael pegou um jornal de dentro de sua mochila e começou a ler, ainda sentado na rocha perto da margem, cruzando as pernas.

— Que horas são agora? — perguntei, ainda suspirando de raiva e limpando a testa; ainda tinha um pouco de dificuldade para me equilibrar no rio.

— Quatro e doze.

Fiquei  ainda mais impaciente.

Michael bocejou e decidiu parar de ler, guardando o jornal em sua mochila e tirando dela um pano grande de cor azul — que logo percebi ser uma rede — e caminhou para a dupla de árvores mais perto, armando-a e dizendo, esfregando os olhos:

— Vou tirar uma soneca.

— O que mais você tem dentro dessa mochila? — Eu realmente estava impressionado com a quantidade de coisas que Michael trouxera.

— Só mais algumas coisas — foi a última coisa que ele disse antes de se deitar e dormir. 

“Ele dorme rápido” pensei inocente. Aproveitei que meu tio estava apagado e decidi me agachar, pelo menos para descansar um pouco, mas logo me assustei:

— Posso estar dormindo, mas ainda estou de olhos em você, Diogo! — advertiu ele, em tom de bronca, mesmo com os olhos permanecendo fechados.

Apenas resmunguei e continuei de pé. Minha barriga roncou pela milionésima vez, e eu estava exausto. Percebi, no entanto, que eu não precisava me esforçar tanto para continuar de pé. Parecia que eu estava em uma superfície qualquer, sem precisar ter cuidado para não cair.

Bocejei.

 

O sol se pôs e o céu começou a escurecer, atribuindo tons de roxo e laranja. Estava prestes a anoitecer.

— EI, TIO!! — gritei bem alto, acordando Michael imediatamente que, devido ao susto, caiu da rede e bateu forte a cabeça no chão. Ele olhou para mim com muita ira nos olhos e bradou, expulsando para longe alguns pássaros que estavam em um galho de uma árvore:

— POR QUE ME ASSUSTOU DESSE JEITO?!

— Acho que já está na hora de a gente ir! — Apontei para o céu.

Ele se levantou e certificou seu relógio, dizendo, mais calmo:

— É, você tem razão.

— Que horas são? — perguntei, encarando-o com os olhos semicerrados.

— Seis e vinte. 

Agora era eu quem estava furioso.

— E POR QUE VOCÊ NÃO COLOCOU UM DESPERTADOR PARA TOCAR NA HORA CERTA?! — berrei, com toda a voz que tinha. — APOSTO QUE VOCÊ TEM UM NA DESGRAÇA DESSA SUA MOCHILA!!

Tio Michael coçou a cabeça e disse com um risinho bobo, sem jeito:

— Pois é, eu tinha esquecido.

Inspirei a maior quantidade de ar possível, enchendo os pulmões, e os esvaziei, tentando me acalmar.

— Pode sair daí, Diogo. — Michael assumiu uma súbita expressão séria. — Terminamos o seu treino por hoje.

Suspirei.

Caminhei até a margem e saí da água, percebendo de imediato que a gravidade estava menos pesada que o normal. Até me surpreendi.

— Incrível — falei a mim mesmo, surpreso. Comecei a dar alguns pulos, confirmando que eu realmente estava mais leve e ágil.

— O que achou do resultado? — Tio Michael perguntou com um ar de satisfeito.

— Ótimo! — respondi, ainda surpreso. — Qual será o passo de amanhã? — Eu o olhei ansioso.

— Relaxa, você está entusiasmado demais.

É, de certa forma meu tio tinha razão. O resultado daquele treino foi impressionante e finalmente eu percebi a intenção de ter que me equilibrar naquele rio pesado. Ou melhor, no Rio de Água Pesada.

— Vamos ou não? — perguntou Michael, desarmando a rede.

— Vamos.

Assim que começamos a andar em direção à minha casa, meu estômago roncou como nunca, um ronco tão forte que senti a terra estremecendo.

— Que fome!

 

Assim que pisamos no gramado atrás de casa, um cheiro ótimo de comida inundou as minhas narinas.

Corri até a porta dos fundos e invadi a cozinha, onde minha mãe e Bruna aprontavam o jantar.

— Estou faminto! — disse com água na boca; o cheiro era de carne cozida e batata (eu amo carne cozida e batata). Estava com tanta fome que nem percebi meu tio Michael passando por mim em direção à sala.

— Ainda vai demorar um pouco até que a comida fique pronta — lamentou Bruna, o que foi como um golpe para mim.

— Enquanto isso você poderia tomar um banho — sugeriu minha mãe, viajando seus olhos de carvão sobre mim, enquanto Bruna concordava com a cabeça; eu realmente estava sujo, suado e fedido.

Cocei a cabeça sem jeito, mas elas tinham razão.

Feito um raio, passei pela sala, subi a escada e me direcionei ao banheiro no final do corredor, de frente para o meu quarto.  Quando vi que a porta estava trancada, fiquei perplexo e decepcionado: meu tio estava no banho!

— Primeiro os mais velhos — gritou ele de dentro do cômodo.

Bufei de raiva.

 

Ainda eram nove e meia da noite quando fui para a cama. Tinha sido um dia cansativo, no qual eu me declarei para a Sophia, conversei com um espírito angelical e tive um treino duro na floresta com o tio Michael. Realmente um dia inesquecível, mas ainda faltava a resposta da garota. Eu não sabia o que fazer para que ela me perdoasse. Parecia que algo a impedia de ficar comigo. Inúmeras vezes eu me perguntei se Sophia estaria gostando de outro, o que não fazia muito sentido. Afinal, ela tinha aceitado sair comigo; na escola eu percebia seu olhar diferente, desde o primeiro dia de aula. De qualquer forma, precisava resolver logo o problema, ou então viraria uma bola de neve.

Adormeci exausto.

Porém, no meio da noite, tive outro pesadelo.

Eu andava sozinho pela floresta sombria, cuja escuridão predominava à minha volta com sombras gigantescas produzidas pelos troncos enormes e sinistros das árvores. A mata densa chegava aos meus joelhos, e o céu se escondia por causa das folhas e galhos acima da minha cabeça.

Eu não entendia por que estava ali, mas pressentia que algo iria acontecer. De repente, ouvi o barulho do mato se mexendo. Olhei à minha volta assustado.

Senti calafrios, enquanto o mesmo barulho persistia. Dessa vez consegui distinguir de onde saía; olhei para a direita e vi um arbusto espesso, repleto de galhos.

Tentei ignorar e continuei caminhando.

— Diogo — disse uma voz masculina e autoritária, vindo de algum lugar.

Parei, apavorado.

— Quem está aí? — murmurei relutante,  tateando pelo meu anel; mas ele não estava no meu dedo.

Eu engoli em seco.

— Queremos você! — disse a mesma voz, dessa vez em um sussurro; apesar de não a ter ouvido com clareza, percebi que a conhecia perfeitamente. — Venha até nós. Venha!

— Cale a boca! — gritei, tentando parecer firme, mas minha voz falhou miseravelmente.

Silêncio. 

Eu estava bastante tenso e atento ao perigo, olhava para todas as direções com um péssimo — terrivelmente péssimo — pressentimento. A escuridão da noite predominava, e eu não tinha minha espada Takohyusei por perto, sentindo-me então desprotegido.

O sujeito deu gargalhadas horripilantes. Percebendo que vinha de cima, olhei para o alto de uma árvore que se erguia uns seis metros acima, cujas folhas balançavam com a brisa noturna. E eis que surge uma figura.

O indivíduo veio na minha direção de braços abertos e com a boca arreganhada, expondo seus dentes pontiagudos e me encarando com olhos carmesim. Seu rosto esquelético tinha uma expressão demoníaca, porém ele desceu tão de repente que eu não tive outra reação senão gritar — e suas presas sanguinárias vieram ao meu encontro.

— AAAAHHHH!!!!!! — Eu acordei tão aterrorizado que, quando menos percebi,  já estava no chão.

O alívio tomou conta de mim ao mesmo tempo em que eu ficava preocupado. Eu nunca mais tivera pesadelos, mas parecia que eles queriam voltar… E aquele vampiro eu havia reconhecido: era o diretor da minha escola!

— Diogo, você está bem? — perguntou tio Michael, assustado, entrando no meu quarto e acendendo a luz.

— Foi apenas um pesadelo — respondi, tentando focar minha visão turva enquanto me levantava, embora meu coração estivesse a mil batidas por segundos; meus olhos ardiam.

— Hahahahá! — riu ele de imediato, gozando da minha cara. Eu me senti constrangido.

— Tio, dá o fora! Eu... eu quero dormir.

— Tá bem — disse ele, parando de rir. — Qualquer coisa pode me chamar. — Michael tinha um tom zombeteiro na voz; apagou a luz e saiu do quarto.

Ignorei a provocação ao máximo e me deitei, tentando dormir. Não foi difícil, porque eu ainda estava muito cansado, além de preocupado.



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