Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17: Um dia com o tio Michael

Eu abri os olhos e levei um susto tão grande que... 

— AAAHHH!!!!! — gritei e desabei no chão. Era o assassino do filme "Pânico", com o rosto a poucos centímetros do meu!

O indivíduo tirou a máscara e disse:

— Como de costume, te enganei!

Meu tio Michael e eu soltamos gargalhadas e nos abraçamos.

 

Michael era um homem alto, forte, de pele clara, cabelo curto e encaracolado e o rosto limpo, sem barba ou bigode. Apesar de ter quase trinta e oito anos, não tinha sequer um fio de cabelo branco, e não tinha rugas também, o que lhe dava uma expressão de um cara jovem e sarcástico. Ele usava uma camiseta vermelha cor de sangue, cuja gola tinha formato de V, e uma bermuda jeans que ia até os joelhos. Nem parecia que ele era um adulto experiente, ainda mais um mestre das artes marciais. Michael praticamente me ensinou tudo o que eu sabia. 

Já na cozinha, sua noiva Bruna, uma mulher muito simpática e bonita que tinha cabelos castanho-claros, tomava café junto da minha mãe. Meu tio e eu nos juntamos a elas e eu perguntei, um tanto animado:

— Tio, é verdade que você pretende ficar aqui em Honorário?

— É sim — confirmou ele, mordendo seu pão com mussarela. — Vou passar alguns dias com vocês enquanto procuro uma casa pra alugar, pelo menos até comprarmos o nosso apartamento.

— Mas por que você decidiu sair da casa da vó?

— Você ainda é novo pra entender — disse ele com ironia. — Eu quero construir uma família grande, se é que me entende. Lá não haveria espaço para a mamãe, eu, Bruna e mais dez catarrentos.

— Não exagera, Michael! — protestou Bruna, fazendo-nos rir.

Terminamos de tomar o café e chamei Michael para dar uma volta no parque. Tinha certeza que ele acharia da hora.

 

O dia estava lindo. O clima, ótimo. E como era domingo, o parque perto de casa estava animado. Crianças corriam aqui e ali brincando e se divertindo, fazendo-me recordar da minha infância em Belém, a alegria de passar a tarde inteira com vários amigos e chegar sujo e suado em casa.

Desviando de um pequenino ou outro, nós caminhamos pelo belo gramado da praça, conversando sobre a minha nova vida em Honorário e em como eu começava a me adaptar à nova cidade — pulando, é claro, a parte que envolvia os vampiros. Então meu tio perguntou, com uma ideia repentina na cabeça:

— Diogo, que tal treinarmos um pouco?

— Aqui? — eu estranhei, olhando todas aquelas pessoas à nossa volta.

— O que tem demais? Ficou com medinho?

Eu não gostava de ser provocado, ainda mais em público. Tio Michael era do tipo que fazia as coisas sem se importar com as opiniões alheias. Ou seja: ele treinaria golpes mesmo no meio de uma multidão de estranhos.

— "Medo" é uma palavra que não existe no meu vocabulário — garanti.

— Então bora lutar, não temos nada a perder mesmo…

Eu me preparei e começamos a luta, atraindo os olhares dos outros moradores. Michael tentava me acertar com golpes nos braços e no estômago, como sempre fazia, mas eu desviava e contra-atacava. Sem acertá-lo, evidentemente, porque Michael era faixa preta em várias modalidades diferentes. Mesmo assim eu percebi uma pequena melhoria na minha agilidade desde o nosso último treino, muito embora ainda não fosse o suficiente para acompanhá-lo. Pelo menos agora a luta estava durando alguns minutos a mais. Antes, além de perder de forma rápida e humilhante, eu sequer conseguia atingi-lo. Uma coisa não muito legal. Dessa vez, no entanto, meu tio parecia ter dificuldades para encontrar uma brecha e me derrotar. O perigo real que eu havia passado com os vampiros provavelmente havia me deixado mais ligeiro.

— Melhorou bastante, Diogo — disse ele, um pouco surpreso. — Mas vamos ver o quanto!

Sua intensidade aumentou como se antes ele estivesse lutando sem fazer esforço. Tio Michael era rápido, e não demorou muito para acertar um soco na minha barriga. Depois outro, e outro. Minha sorte era que ele me ensinara a deixar o abdômen duro, senão eu já teria sido derrotado. Comecei a suar e a cansar, mas a minha vontade de lutar só estava aumentando. Usei toda a força e habilidade que conseguia. Os golpes não me acertavam mais. Pelo contrário: agora era eu quem atacava, obrigando-o a recuar.

“De onde tá vindo todo esse poder?” eu me perguntei mentalmente.

Apesar da velocidade dos meus ataques estar maior, tio Michael ainda estava intacto. Eu estava me exaustando aos poucos por estar usando todo o meu poder. Sabia que se continuasse naquele ritmo, perderia a luta por mero cansaço. Meu tio, por outro lado, começava a suar. Percebi uma expressão de surpresa em sua face, mas ele mantinha-se rápido e ágil. Comecei a me esforçar mais, até que explodi:

— AHHH!!

Acertei-o no peito com um soco firme usando toda a força que fui capaz. O ataque fez com que Michael desse alguns passos para trás e tropeçasse ao ponto de cair de bunda no gramado. Ele se levantou rapidamente e veio na minha direção. A essa altura, eu estava exausto e dolorido — meus braços estavam dormentes e a minha barriga doendo. Então, quando Michael direcionou seu punho na minha direção, ele parou. Faltaram centímetros para ele acertar o meu nariz.

Enquanto eu engolia em seco e notava todos os olhares admirados, ouvi palmas. Juntos, meu tio e eu olhamos na direção da quadra e lá estava a Zoe, com um sorriso de aprovação no rosto.

— Você luta muito bem, Diogo — disse ela, e toda a minha dor se transformou em vergonha.

— Bom, eu perdi — falei ficando ereto e coçando a cabeça meio desconfortável. Tio Michael recuou o braço e perguntou:

— Essa é a sua nova namorada?

Ele me olhava  com o típico sorriso que me deixava irritado.

— N-namorada? Que isso, tio! Essa é a... Zoe, uma amiga minha.

Eu estava nervoso, mas a Zoe parecia tranquila, apenas nos observando com seus lindos olhos esverdeados.

— Muito prazer… — disse ela, sem saber o nome do meu tio.

— Michael, tio do Diogo — ele se apresentou com um risinho zombeteiro no rosto. — E o cara que o ensinou a lutar desse jeito.

 

Estávamos os três sentados no mesmo banco, de frente para a quadra cheia, todos em silêncio. Eu no meio, meu tio à direita e Zoe à esquerda. Foi ela quem puxou assunto:

— Então foi com ele que você aprendeu a lutar, Diogo?

— Foi sim — confirmei. — Meu tio é faixa preta em várias modalidades das artes marciais, e me ensinou a lutar desde que eu me entendo por gente.

— O Diogo vivia me enchendo o saco — continuou o meu tio. — Todo santo dia implorava para que o ensinasse a lutar. Onde já se viu um moleque de seis anos querendo aprender Karatê e Kung Fu? Ele dizia que queria ser igual ao Jackie Chan.

Nós três rimos.

— Mas você o ensinou muito bem — alegou a garota.

— Meu sonho é ensinar jovens como vocês a lutar — disse Michael, olhando para o céu com um brilho especial nos olhos castanhos; Zoe e eu sorrimos. — As artes marciais são lutas que não só trabalham a nossa condição física, como também o nosso raciocínio, o nosso intelectual. Um bom lutador sabe bem controlar os seus atos.

Comecei a lembrar do Riku e do Natsuno. Eles haviam provado que sabiam lutar muito melhor do que eu. Perto da dupla, na floresta, eu me senti apenas um lutador qualquer, que muitas vezes tinha de ser salvo por um dos dois. Decidi fazer uma pergunta ao meu tio:

— Tio, você usou todas as suas habilidades de luta comigo?

Ele olhou para a quadra e respondeu, direto:

— Não. — Eu já sabia dessa resposta, e até fiquei feliz por isso. Michael inseriu: — Mas eu não posso negar que você evoluiu. Está mais rápido e forte do que antes. — Ele olhou para mim e franziu o cenho. — Você finalmente conseguiu me atingir com um soco, feito histórico.

Zoe riu na hora.

— Você ri, né? — reclamei.

— Desculpa, não consegui segurar — disse ela.

Sorrimos um para o outro.

— Eu gostaria que você me treinasse mais — falei ao meu tio, que imediatamente estranhou.

— E por que você pretende ficar tão forte?

Ele visivelmente levava um tom de desconfiança na voz. Eu apenas sorri e respondi:

— Coisa pessoal. Você topa?

Ele pensou um pouco e respondeu:

— Topo. Mas fique sabendo que eu não vou pegar leve como antes.

— Como assim?

— Você vai ter que trabalhar muito duro se quiser realmente ficar mais forte. Eu te ensinei a atacar e a se defender; não o ensinei a dar golpes fatais e a ter resistência e força bruta.

— Força bruta? — Zoe perguntou e olhou surpresa para Michael.

— Mas isso é possível? — Eu também estava surpreso.

— Possível é, mas é extremamente complicado. Exige uma dedicação fora do normal. Vai ser preciso se esforçar bastante.

Pensando nos vampiros e na armadilha criada por eles, eu decidi que era isso mesmo que eu queria. Alcançaria os outros dois caçadores e honraria a confiança do meu pai. Salvaria as pessoas inocentes dos assassinos das trevas.

“Até que não é uma profissão tão ruim assim” pensei empolgado. Então lembrei da Sophia, na forma como me ausentei do nosso encontro por causa do ataque dos vampiros. Alguma coisa me dizia que não era a última vez que aconteceria algo do tipo, e mais do que nunca eu precisava estar preparado, ou então continuaria sendo dependente do Natsuno — ou do Riku (não fosse por ele, eu sequer poderia imaginar o que teria sido de mim).

— Já tá quase na hora do almoço — disse o meu tio, ficando de pé e se espreguiçando. — Bora, Diogo? Eu estou faminto.

Nós demos tchau à Zoe e voltamos para casa. No caminho, tio Michael disse uma coisa que me surpreendeu:

— Seu pai já me falou que te contou toda a história.

Eu fiquei de boca aberta.

— Meu pai…? Tio, então quer dizer que você também sabe sobre os… bem, você sabe… esse tempo todo?

— Claro! Como você acha que o seu pai conheceu a sua mãe? Bom, depois eu te conto a história — ele disse percebendo a minha expressão confusa. — O fato é: que bom que você já sabe de tudo. Eu fiquei sabendo sobre os vampiros da sua escola e por isso decidi vir pra cá. Fico feliz que você ainda esteja vivo.

— Vou considerar isso como um elogio.

Michael riu.

— O que eu preciso te alertar é para você ter muito cuidado. Os vampiros são traiçoeiros, e vendo que você é um novato pertencente ao clã Kido, vão procurar sempre uma forma de te envolver em uma armadilha.

— É, eu acho que percebi — falei lembrando dos cinco vampiros que me encurralaram perto da entrada da floresta.

— E os seus amigos normais não podem saber sobre eles, pois o que mais atrai os vampiros é o medo. Não queremos pessoas apavoradas por causa da existência dessas aberrações. Se tornariam alvos fáceis e isso não seria legal.

Foi aí que eu percebi que a vida de caçador seria mais difícil do que eu imaginava. Além de me arriscar lutando contra eles, eu teria que esconder de muita gente sobre o que eu fazia. E essa vida "profissional" claramente atrapalharia minha vida pessoal inúmeras vezes, um probleminha pequeno que se transformava em uma baita chatice. 

Chegamos em casa.

— Mãe, nós estamos famintos — disse eu, entrando na cozinha e bebendo um copo d’água gelada. Michael apenas puxou uma banana da fruteira.

— Andaram treinando de novo? — perguntou ela, habituada com nossos pequenos desafios. Treinávamos e voltávamos para casa com fome. Isso quando não nos sujávamos de barro.

— Sim — disse meu tio. — E, como de praxe, Diogo foi o saco de pancadas. Apenas isso.

Deixamos as mulheres na cozinha e nos jogamos nos sofás da sala, meu tio no maior e eu no menor. Quando liguei a TV, um noticiário importante cortou a programação que estava passando.

— Interrompemos nossa programação por um momento para dar uma estranha notícia — disse o repórter, um homem de terno. — Hoje pela manhã, a igreja de São Marcos foi encontrada repleta de cadáveres. — A câmera focou na parte frontal de uma igreja católica, simples e pequena. — Quem viu os corpos foi este homem que costuma varrê-la nas manhãs de domingo. — Close em um homem baixo, magro e de rosto esquelético, que usava um chapéu velho azul. Ele começou a explicar, apavorado:

— Eu entrei aqui por volta das sete e levei um baita susto: todos os que estavam nos bancos, o padre e o coro da igreja estavam mortos! Nenhum sinal de vida, apenas sangue e mais sangue. — O homem estava com a voz trêmula, nitidamente traumatizado, mas continuou: — Então chamei a polícia.

— O sargento Mário — continuou o repórter, já com a imagem focada em um policial da cidade — deu uma entrevista agora a pouco à nossa equipe.

— A princípio acreditávamos que se tratava de um massacre — disse o policial em tom formal—, mas a perícia analisou os corpos e notificou que todos tinham marcas de mordidas no pescoço. O sangue das vítimas foi totalmente drenado.

— O senhor quer dizer o quê com isso? — indagou o repórter.

— Eles foram mortos por algum animal ou inseto.

— Algo como um morcego?

— Pode ser também — admitiu o sargento. — Mas seria muito estranho morcegos em uma cidade como Honorário agora, pois nunca houve sequer uma única ocorrência relatando a existência deles. Não tenho dúvidas de que seja outra coisa.

Ele acenou em uma despedida e deixou um clima de suspense no ar; um clima assustador, que fazia qualquer telespectador mergulhar em inúmeras hipóteses.

— Ficaremos de plantão por aqui e voltaremos a qualquer momento com novas informações. — O repórter se despediu e o programa que estava passando retornou.

Tio Michael e eu nos entreolhamos, pois sabíamos exatamente do que se tratava.

— Parece que os vampiros estão perdendo o medo dos caçadores — disse ele, um olhar sério que não se via todo dia.

— Tenho que fazer alguma coisa — eu disse irritado. — Isso não pode continuar dessa forma. Muitos inocentes estão morrendo!

— O mundo pode piorar se o Caçador Lendário não for encontrado logo — inseriu Michael, como se não tivesse me ouvido. Seus olhos estavam fixos na tela da televisão.

— Como assim, tio?

— Ninguém sabe ainda quem é o Décimo Primeiro Lendário, Diogo. Seu pai está fazendo de tudo para encontrá-lo, pois somente o Caçador Lendário tem o poder de colocar o mundo em ordem.

— Saquei. O Natsuno, meu amigo, comentou que ele surge a cada quinhentos anos. Como é possível saber se ele já está por aí? Já se passaram cinco séculos desde o último?

— Profecias, meu sobrinho, profecias. Houve uma quebra do ciclo natural de surgimento do Caçador Lendário, pra falar a verdade, então a única coisa que nos resta é saber em qual Clã Elemental ele surgiu, mas não há mais nenhuma outra pista.

Decidi não fazer mais perguntas, uma vez que todo aquele lance de clãs e ciclos me deixavam confuso. E, como se para selar a minha decisão, minha mãe gritou da cozinha:

— O almoço está na mesa!

— Já era hora — disse meu tio ansioso, deixando toda a preocupação de lado de maneira abrupta.

Almoçamos, mas não voltamos a treinar. Tio Michael dormiu o restante do domingo devido ao cansaço da viagem, e eu fiquei à toa, sem nada para fazer, apenas preocupado em como me resolveria com a Sophia.



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