Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 9: Uma simples ida ao cinema

Chegamos ao cinema depois de vários minutos de carro pelas vias movimentadas de Honorário. Era incrível o quanto a cidade era bem iluminada, semelhante a um formigueiro brilhante, formigas estas que seriam os faróis dos carros das avenidas e as luzes acesas no interior dos inúmeros arranha-céus espalhados por todos os lados. E o enorme cinema, cujas letras garrafais que brilhavam em neon colorido acima do edifício escreviam CINEMA DE HONORÁRIO, fazia parte daquele universo todo.

O estacionamento ficava na entrada lateral ao cinema inclinada para baixo que levava a um amplo saguão repleto de carros e motos. Meu pai estacionou em uma das poucas vagas disponíveis, descemos e entramos no elevador, indo então para o térreo.

— Caraca! — eu disse de queixo caído, assim que a porta do elevador se abriu. — Nunca vi nada igual.

E era verdade. Em Belém, embora fosse uma cidade linda, onde morávamos não havia lugares tão grandes e cheios como aquele, um centro comercial tão agitado que mais parecia uma pequena cidade — e olha que estávamos apenas no hall de entrada.

Nós começamos a andar em meio àquilo tudo; passando por multidões de pessoas que entravam nos diferentes estabelecimentos que consistiam de salões de bilhar, bares escuros, restaurantes e até mesmo algumas livrarias. O cinema tinha todo um clima clássico e peculiar devido aos seus cartazes de filmes espalhados por toda parte e uma iluminação LED que alternava entre azul, vermelho e amarelo em intervalos de minutos, além do piso ser todo em carpete vermelho. Apesar de movimentado, o Cinema de Honorário era aconchegante.

Nos aproximamos de uma placa no centro do hall que tinha uma planta do complexo.

— Vamos comprar as pipocas e refrigerantes aqui — disse meu pai, apontando num lugar do mapa, no segundo andar. — É onde vende os melhores combos do cinema. Querida, você compra os ingressos?

— Claro.

— E eu, pai? — perguntei. — Fico com a minha mãe ou vou com você?

— Vem comigo, assim você me ajuda com o lanche.

Então, enquanto Sara ficava na enorme fila da bilheteria, no primeiro andar, eu e meu pai comprávamos as pipocas, refrigerantes e chocolates no segundo.

Pensei na minha mãe. Ela finalmente iria comer besteiras sem reclamar, pois sempre foi aquele tipo de pessoa que preservava a saúde em primeiro lugar, evitando qualquer tipo de fritura ou guloseima. Bom, aquela era uma ocasião especial, então não haveria escapatória.

Não demorou muito para eu sentir um arrepio estranho — quer dizer, não era mais tão estranho quanto antes. Olhei para o meu pai, que me olhou de volta, muito sério. Não falamos nada, mas foi como se disséssemos um para o outro:

"Você sentiu isso, pai?”.

“É, filho, parece que teremos companhia".

Dei uma olhada discreta a nossa volta. Nada de suspeito, apenas pessoas comuns se divertindo por toda parte.

Fiquei preparado para tudo. Tirei o meu anel dourado do dedo e o coloquei no bolso da calça. Compramos a pipoca e nos dirigimos até minha mãe, que era a terceira da fila e já havia escolhido o filme. Compramos os ingressos e finalmente adentramos na sala do cinema, seguindo por uma fila enorme por corredores escuros e abafados. A sala estava cheia, a luz ainda acesa e o telão apagado.

Nos acomodamos em uma das fileiras de poltronas do fundo, um lugar perfeito para uma visão ampla. Depois esperamos o filme começar.

 

— Gostaram do filme? — perguntou meu pai enquanto saíamos do auditório.

— Eu achei ótimo! — respondeu minha mãe rindo, provavelmente lembrando-se de algumas das cenas engraçadas do filme.

— Eu também — completei. — Eu me diverti bastante!

Eu estava realmente feliz. Sempre que meu pai vinha nos visitar eu me sentia daquela forma. Quando estávamos os três juntos aproveitávamos bem a companhia um do outro, sempre com algo diferente. Apesar da ausência frequente de Tony Kido, ele nos compensava com ótimos passeios em família que variavam a cada mês. No mês anterior, por exemplo, havíamos ido ao Aquário Jacques Huber. E em dezembro, fizemos trilha na Floresta Nacional dos Tapajós.

De qualquer forma, após o filme, fizemos algumas compras de roupas, sapatos e um relógio de pulso para mim. Até considerei comprar um celular novo, mas desisti, pois certamente ficaria preguiçoso de novo vendo memes no Facebook e jogando.

O nosso ponto de alimentação da vez foi o McDonald’s, cujo restaurante possuía um aspecto mais casual talvez para se encaixar ao ambiente do cinema. Mais uma vez minha mãe estava comendo besteiras, embora com certa moderação, ao contrário do meu pai, que contava mais uma das inúmeras histórias engraçadas do tio Michael, provocando muitas gargalhadas de todos e me fazendo lembrar que ele era o melhor pai do mundo.

Mas toda aquela calmaria teria fim.

 

Enquanto descíamos ao estacionamento de elevador, olhei a hora no meu novo relógio de pulso: 23h43. Um grito:

— Preciso fazer xixi!

Minha mãe retornou ao cinema enquanto meu pai e eu seguimos em direção ao carro, quando ouvimos um barulho.

TUM!

Parecia batida.

— O que foi isso? — perguntei assustado. Estávamos exatamente no centro do estacionamento, não muito longe do nosso prisma. De ambos os lados havia fileiras de carros estacionados.

Tony e eu olhamos em volta, procurando saber de onde viera aquela "batida".

— Será que…

Ele nem precisou completar sua frase para termos certeza: um vampiro estava na nossa frente!

Era alto e cabeludo, com a pele muito pálida e vestido de regata branca, parecia um típico assassino psicopata que gostava de sorrir enquanto matava. Seus longos cabelos desciam desarrumados por suas costas, tornando sua aparência ainda mais macabra.  Mas por que ele estava em cima do capô de um carro, eu não fazia ideia. Eu só conseguia encarar seus olhos vermelho-sangue e suas presas caninas.

—  Um evoluído — ouvi meu pai comentando.

O vampiro mudou seu sorriso para uma gargalhada irônica, e então o analisei com mais precisão: veias grossas saltavam de seu rosto e o deixava ainda mais feio (mas nada superava o meu pacato diretor).

— Olá, refeição — disse ele.

—  O que você quer? —  perguntou meu pai, irritado.

O vampiro tinha os olhos cravados em mim, fazendo cada pelo do meu corpo eriçar. Coloquei a mão no bolso para ver se o anel ainda estava ali, sentindo-a trêmula. Por um segundo desejei estar mais preparado. Ele estreitou os olhos em mim e respondeu:

—  O seu sangue!

Tony Kido sacou sua corrente prateada que imediatamente se transformou na imponente espada e se preparou.

—  Você veio ao lugar errado!

— Você acha?

O vampiro sequer parecia se importar com a bela e lendária Ko-Kyuketsuki. Eu finalmente puxei o anel e o transformei na espada vermelho-dourada, sentindo um ânimo maior, embora minhas pernas começassem a tremer.

—  Você ainda não me respondeu! — vociferou meu pai. — O que você quer?!

Eu o olhei sem entender. Uma pergunta daquelas era no mínimo estranha, considerando que os vampiros... se alimentavam do sangue humano. Felizmente, exceto por nós três, não havia mais ninguém por perto, pelo menos não por enquanto.

O vampiro tornou a gargalhar, me causando arrepios. Ele provavelmente não costumava usar shampoo ou condicionador, visto que seus cabelos pareciam maltratados e imundos. Eu me perguntei onde ele morava. Talvez debaixo de uma ponte?

—  Seu sangue — voltou a dizer, lambendo os lábios. —  Eu vou estraçalhá-los sem piedade!

Engoli em seco. Talvez percebendo que eu estava trêmulo, meu pai se colocou na minha frente para me proteger. Por algum motivo eu pensei no Pedro. Como sequela, acabei pensando no Riku e na forma como fui convicto em dizer que o enfrentaria se fosse necessário.

Eu sou um caçador há quase dez anos, dissera ele. Assim como o Natsuno, Riku estava um passo à minha frente, talvez dois, ou três. De qualquer forma, ele caçava desde criança, portanto, imaginei que se estivesse no meu lugar, provavelmente não sentiria o medo que eu estava sentindo.

E eu não poderia aceitar aquilo.

—  Pai —  falei andando de forma que agora era eu quem estava adiante, tomando uma decisão um tanto maluca; encarei sério o indivíduo, respirando fundo e tentando conter o medo que me dominava —, deixa que eu me viro com esse esquisito aí.

—  Diogo...

— Confia em mim — garanti de imediato, olhando-o nos olhos, determinado. — Quero provar que posso ser um bom caçador.

Precisava provar. Aquele poderia ser o primeiro vampiro que eu enfrentaria de verdade e precisava saber o quanto eles eram perigosos. Ou isso, ou nunca estaria preparado para caçar.

O momento de surpresa do meu pai ainda durou alguns segundos, mas ele relaxou os ombros, sorriu e disse:

—  Então vai, filho, acaba com ele! Mostre a esse otário a honra que nós, do clã Kido, temos!

Eu assenti. E quando me virei para o vampiro!

PLAFTCH!, um punho cerrado atingiu o meu rosto. Fui lançado a alguns metros no ar e acabei batendo as costas contra uma das colunas do estacionamento, caindo no chão feito cocô. Por sorte não bati a cabeça. Meu pai gritou:

—  Diogo!

O vampiro estava cara a cara com ele; olhando-o nos olhos com um sorriso de divertimento, mas o ignorou. Veio em minha direção correndo feito um predador assassino. Eu ainda me levantava com dores fortes nas costas. Em algum momento havia perdido a espada, provavelmente enquanto voava, mas vi que o anel estava no meu dedo e me senti confuso.

O vampiro chegou perto e me desferiu um soco. Rolei para o lado e o vi atingindo a coluna em cheio, causando uma pequena rachadura. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, o vampiro se virou muito rápido, agindo com extrema sutileza e me derrubando com uma rasteira.

—  Você é muito fraco, aprendiz de caçador! —  Ele riu com seus dentes afiados enquanto seus olhos vermelhos me fuzilavam com frieza e maldade.

—  Fraco? Vou te mostrar quem é fraco!

Sacando minha espada outra vez, eu o ataquei de baixo para cima, mas a criatura desviou com facilidade da lâmina num salto ágil para trás. Mesmo assim eu consegui fazer um corte em sua perna esquerda, provocando um pequeno sangramento que logo manchou o piso.

Eu me levantei sem perder tempo. O vampiro veio em minha direção com outro ataque, e pude ver garras onde estariam suas unhas, mas desviei e dei-lhe uma joelhada forte no estômago. Em seguida, desferi vários socos na cara e na barriga com golpes que aprendera com o meu tio, fazendo-o ficar sem alternativas a não ser recuar. Aquela minha agilidade, no entanto, estava fora do normal. Era como se a espada estivesse me dando força.

Enquanto eu  batia, seu nariz sangrava com as pancadas e ele gritava de dor, até que deu um salto-mortal para trás, como se fosse a coisa mais fácil do mundo. Minha mão ardia com a sequência de ataques contra o que parecia ser um osso mais resistente, mas eu não podia desperdiçar tempo: corri em sua direção com a espada empunhada, erguendo-a enquanto me aproximava — e quando cheguei perto o suficiente, o vampiro tentou me acertar com um chute, mas desviei para a direita, peguei impulso na lateral de um carro com a perna esquerda e acertei-lhe um forte chute na cara.

— Argh! — gemeu ele, caindo no chão com a pancada, ferido com todos os meus ataques, e eu parei em pé ao seu lado, respirando ofegante. O vampiro estava imóvel.

—  Quem é o fraco agora? — fiz questão de dizer, recuperando o ar e olhando para ele. E estremeci vendo a horrível criatura que, devido à cara inchada e o nariz sangrando, tinha uma aparência ainda mais abominável.

Por mais estranho que pudesse parecer, eu comecei a sentir pena dele. Nunca havia batido em alguém daquela forma, e causar dor era o que eu menos queria, já que violência não precisa ser resolvida com mais violência. Definitivamente, aquilo não era para mim.

—  Eu sei que é difícil —  disse meu pai, colocando a mão no meu ombro. — Eu passo por isso todos os dias, acredite. É complicado ter que assassinar essas criaturas que um dia foram homens normais, vítimas desse vírus maldito que veio para acabar com a humanidade. Mas vampiros não têm sentimentos, apenas querem matar e saciar a sua sede. Se não os matarmos, pessoas inocentes irão morrer.

O vampiro ainda olhava para mim, seus olhos escarlates penetravam em minha mente. Ele sorriu melancólico.

Eu suspirei e o matei, enfiando a espada Takohyusei em seu peito, na região do coração. Enquanto gritava de dor, seu corpo se esfarelava, deixando apenas rastros de sangue no chão.

Deixei escapar um longo suspiro ofegante — um suspiro de alívio, de cansaço, não sei. Depois senti o suor escorrer por algumas partes do meu corpo, por dentro da camisa vermelha.

Olhei para o meu pai, que já tinha o frasco cristalino vermelho em mãos para recolher os restos da criatura. Tirei a espada do monte de areia bege enquanto o observava colocar todo o pó no vidro. A espada ensanguentada tornou-se o mesmo anel dourado, limpo e brilhante que eu usava no dedo anelar da mão direita.

O rosto espancado do vampiro não sairia da minha mente. Eu não acreditava que havia chegado tão longe, agindo com tanta crueldade. Quando meu pai matou o diretor da escola, eu não senti nenhum remorso, nenhum sentimento de piedade, mas isso porque ele tivera uma morte rápida, partido ao meio pela lendária Ko-Kyuketsuki. Dessa vez foi diferente.

—  Agora você entende o quanto essa profissão é complicada —  disse Tony ao colher o último grão. Ele se levantou, colocando o frasco num dos bolsos da calça jeans, e se voltou para mim. — Vai demorar um tempo até você se acostumar, talvez alguns meses, mas nunca hesite. Eu sei que é difícil matar alguém, e até entendo o que você sentiu. Ser um caçador de vampiros não é tão fácil assim.

Eu assenti. Tentei pensar em coisas positivas: no vampiro matando pessoas, devorando mulheres, emboscando crianças em becos escuros. Ok, não eram coisas tão positivas assim. De qualquer modo, isso me ajudou a não sentir tanta pena do vampiro. Decidi que era melhor não pensar em nada.

—  Esse vampiro não era um vampiro comum. —  Tony mostrou-se sério e pensativo.

—  Como assim, pai?

—  A velocidade dele. Os vampiros comuns não são tão rápidos. Esse era diferente. A aparência também mostrava isso. Aqueles pelos e as veias grossas...

—  E o que será que ele queria?

Essa era a outra questão.

—  Não sei. Normalmente os vampiros nem sonham em ver um caçador por perto, ainda mais dois membros de um clã como o nosso. Tem algo a mais nisso tudo.

Se eu já estava assustado antes, as coisas só pioraram. Lembrei que ele havia dito a mesma coisa do diretor, sobre não ser um simples vampiro. Considerando que aquele motoqueiro havia me atraído para um beco apenas para me dar um aviso, presumi que eu era o alvo principal deles, afinal, o vampiro cabeludo havia ignorado o meu pai para me atacar. E pareceu bem motivado.

— Vocês ainda não tiraram o carro? — A voz da minha mãe soou a distância, e pela primeira vez na vida eu agradeci mentalmente por ela ter demorado.

— Diogo, entra no carro — disse meu pai com urgência. — Depressa! 

— Por quê? — estranhei.

— Veja no espelho.

Ele apontou para o retrovisor do carro mais próximo.

Fazendo o que ele mandou, percebi que havia uma marca feia de um soco no meu rosto, bem na maçã esquerda, resultado do primeiro ataque do vampiro.

— Vixe — falei.

— Vamos tentar esconder esse nosso encontro da sua mãe, para não estragar a noite dela. Digamos que… ela nunca foi de acordo em deixar você caçar.

Eu fiz que sim e apressamos os passos até o prisma preto, onde entrei muito rápido, antes que minha mãe chegasse perto.

— Demorei, amor? — perguntou ela assim que alcançou o carro.

— Um pouco — respondeu meu pai com uma risadinha —, mas tá de boa. Vamos?

 

Eu fiquei pensativo a noite inteira, desde o banho até a hora de dormir. A adrenalina ainda teimava em envolver o meu corpo, afinal foi o primeiro vampiro que enfrentei. E de pensar que lutar, apesar do que senti depois, foi tão prazeroso.

Pensava no vampiro e na forma como o matei. Havia sido muito diferente de qualquer outra briga que eu já arrumara antes, já que o deixei com o rosto meio desfigurado. Nunca imaginei que poderia deixar alguém naquele estado, muito menos um vampiro.

Vampiros não têm sentimentos, dissera meu pai, talvez, para fazer eu me sentir melhor, o que me fez pensar também no Pedro. Eu sou um caçador há quase dez anos, foram as palavras do Riku. Conheço-os o suficiente para saber que não são confiáveis!

De fato, tudo indicava que o garoto fingia ser quem era. As circunstâncias apontavam que ele era mesmo apenas um vampiro disfarçado. Assim como meu pai dizia, era um mero predador atrás de sangue —  somente de sangue. Eu realmente queria pensar que ele era um cara bom e honesto, mas depois de tudo —  de todos aqueles assassinos quererem me devorar —  ficava difícil acreditar.

De uma forma ou de outra, a única coisa que eu não tinha dúvidas era que a próxima semana seria uma semana agitada, e eu só torcia para tudo dar certo.



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