Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Um novo parceiro e um novo rival

Eu também sou membro de um Clã Especial — revelou Natsuno, como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Também sou um caçador de vampiros.

Eu o olhei com o cenho franzido. Natsuno definitivamente não parecia com um caçador, nem mesmo tinha cara de quem saía matando vampiros por aí. Agora, esse era um motivo a mais para que eu seguisse na nova “profissão”, já que tinha apenas quinze anos de idade e não possuía a tal experiência mencionada pelo meu pai. Eu tinha uma espada e sabia artes marciais, mas, segundo ele, não era o suficiente. Era difícil imaginar que Natsuno fosse mais forte do que eu.

O dia mantinha-se ensolarado com pouquíssimas nuvens no céu. Não havia ninguém por perto a não ser os pássaros nas árvores. Fazia calor, ainda assim éramos atingidos por uma leve brisa fria que passava vagamente. A única coisa que quebrava o silêncio da tarde era o som dos  insetos e animais pequenos na floresta, que pareciam seguir o mesmo ritmo.

— Qual é, maninho, o gato comeu sua língua?

Natsuno me encarava com seus olhos azuis tão escuros quanto profundos. Ocorreu-me que, quando o vi pela primeira vez, eles haviam ficado amarelos por um momento. (Considerando que os vampiros tinham olhos vermelhos, presumi que essa era a marca dos caçadores).

Eu estava confuso.

— Hã, é, legal — foi a única coisa que saiu da minha boca. Natsuno arqueou uma sobrancelha com ironia. Talvez esperasse alguma outra reação minha.

— Cara, por que você não me disse isso antes? — perguntou.

— Bem, nem eu mesmo sabia — admiti. — E como você soube a meu respeito?

— Eu já tinha minhas suspeitas desde a primeira vez que te vi. Seu sobrenome é Kido e você tem mechas castanhas. Isso é realmente esquisito. — Eu tive que me segurar para não falar dos cabelos roxos dele. — Mas também é a característica principal do seu clã. Só um tolo não perceberia, velho, na moral.

“Ou alguém que não sabe que caçadores e vampiros existem” pensei em dizer, pois pelo menos era a situação que eu havia passado. Mas, pensando melhor, o Natsuno estava certo: as mechas castanhas eram uma característica da minha família. Todos os meus tios e parentes por parte de pai tinham essa mesma semelhança. Isso pelo menos explicava a conversa do Natsuno com o pai.

— Isso explica aquela conversa que eu tive com o meu coroa naquele dia no banheiro — disse ele, o que fez eu desconfiar que o Natsuno lia mentes.

— Entendi...

— E confirmei minhas suspeitas — ele continuou — quando vi você com o seu pai ontem. Cara, eu não sabia que você era filho do Tony Kido! Dio, você não tem ideia de como ele é importante na cidade de Firen. 

Eu não sabia se me sentia importante ou mais confuso. Como não era muito bom em Geografia, nunca tinha ouvido falar sobre a tal Firen antes. Decidi dizer:

— Você está certo sobre esse lance. Eu sou um… um... caçador —  falei com certa dificuldade, pois aquilo ainda era difícil de admitir. — Bem, ainda não cacei, mas meu pai disse que eu sou um caçador, então... eu sou um.

Natsuno sorriu, contente. Era difícil mesmo de acreditar que aquele garoto magrelo caçava vampiros. Perguntei-me se ele não sentia medo nem nada. Optei por não fazer a pergunta em alta voz. Natsuno perceberia que eu era um mero inexperiente nervoso.

Então algo veio à minha mente.

— Natsuno, quando você disse ao seu pai que havia vampiros atrás de mim, você se referia àqueles valentões, certo? Aqueles que queriam arrumar encrenca para o meu lado.

Ele pensou um pouco, mas senti que a sua resposta já estava na ponta da língua:

— Dois deles, apenas.

Como suspeitei.

— E o… Pedro?

Sua expressão mudou. Eu não sabia de onde os dois se conheciam, tampouco se Natsuno sabia sobre ele, mas ele tinha o olhar de quem havia acabado de ouvir uma notícia desagradável.

— O Pedro é um vampiro — disse ele, direto e decepcionado. — Eu o conheço desde o ano passado, quando vim morar em Honorário. No começo fiquei um pouco inseguro, até pensei em armar uma armadilha e tals, mas ele parecia ser um cara tão tranquilo, sabe? Então, comecei a investigá-lo. Dio, eu não acho que ele seja um mal vampiro.

— Mas o meu pai disse que isso não existe — repliquei, tentando não ter esperanças, mas era difícil. — Os vampiros se alimentam do sangue humano.

— Sim, eu sei, maninho. Eu... já encontrei muitos deles antes. — Eu senti que essa frase saiu mais doída que o normal. Natsuno tinha a voz trêmula. — Mas acredito que há exceção pra tudo. O Pedro é um cara diferente, eu sinto isso.

De alguma forma, as esperanças que ele demonstrava me aliviaram um pouco. Eu realmente queria que aquilo fosse verdade. Pedro de fato parecia um garoto bondoso. Era difícil de acreditar que ele estava se disfarçando, pois apesar de não ter conversado tanto com ele, o seu companheirismo era nítido — comprovado no dia em que defendemos o Kai dos garotos do time de futebol da nossa sala.

Eu me senti ainda mais confuso. “E se estivermos errados? E se o Pedro for um assassino?” pensei. Aquilo tudo poderia ser apenas uma máscara, considerando que o diretor havia se disfarçado muito bem, assim como o professor de História.

Suspirei.

— O Riku também é um caçador — disse Natsuno, com uma reflexão repentina. —  E do clã Medeiros.

—  Riku?

Ocorreu-me que eu havia visto o mesmo brilho amarelo em seus olhos quando ele passou por mim no seu primeiro dia de aula.

— E o terceiro valentão, aquele do olho riscado — terminou Natsuno.

Cláudio.

Esse era o terceiro valentão. O mesmo que meu pai havia atropelado. O mesmo que estava investigando sobre um cientista desaparecido. O mesmo que havia perdido a vida se arriscando entre os vampiros...

Expliquei tudo ao Natsuno.

Ele ouviu a história atentamente, palavra por palavra. No final, estava surpreso.

—Caramba, coitado! Mas esse cientista... Meu velho nunca comentou sobre ele comigo.

— Natsuno, há quanto tempo você é um caçador? — eu quis saber.

— Na verdade eu ainda sou um aprendiz. Comecei a caçar há apenas alguns meses, e a organização só aceita maiores de dezoito. — Ele parecia desapontado. — Preciso ralar muito ainda se quiser ser um membro oficial; um Ko-Ketsu.

— O seu pai é um membro, certo? — Natsuno fez que sim. — E ele nunca comentou sobre o Cláudio?

— Comentou, mas eu nunca o tinha visto antes. Não imaginei que ele estivesse infiltrado na nossa escola. Isso explica o fato de ele ter me mostrado os olhos no dia da briga.

“Mostrado os olhos” pensei. Meu pai havia dito que ele escondia bem sua identidade. Senti que uma coisa estava ligada à outra.

Natsuno bocejou e falou:

— Bom, maninho, a conversa foi boa, mas eu já vou indo.

— Beleza.

— Ah, e sobre aquele motoqueiro…?

— Eu o segui, mas ele fugiu. Outro vampiro.

— Entendi. — Ele fez uma expressão estranha, um pouco pensativo, e então se despediu. E quando estava prestes a entrar na floresta, ainda disse, olhando para mim por cima do ombro: — Não precisa se preocupar com a Sophia, cara, faltar é normal.

Entrei em casa imaginando onde Natsuno morava e como conseguiu acessar os arquivos da escola. Ele certamente não era um garoto normal.

Quando entrei na sala, deparei-me com o meu pai postado diante da porta. Parecia estar me esperando.

— Parece que você já tem um parceiro — disse em um tom aprovador.

— Parceiro? — estranhei. — Como assim?

— Aquele garoto, o Natsuno. Ouvi a conversa de vocês.

— Alguma coisa me diz que você já o conhecia.

— O pai dele faz parte da organização e é um grande amigo meu. Ambos são bem parecidos.

— Certo. E onde fica essa organização, afinal? É muito longe?

— Um dia eu te mostro. Tenho certeza de que você vai se surpreender.

O sorriso do meu pai ao dizer estas palavras me deixou curioso. Ele era mesmo um cara cheio de surpresas, e não digo isso pelo fato de ser um caçador de vampiros. Inúmeras vezes meu pai nos surpreendeu com viagens a lugares maravilhosos que eu sequer imaginava que existiam no Brasil. Perguntei-me se a localização da organização tinha alguma coisa a ver com a tal cidade de Firen.

Depois disso nós almoçamos.

 

Eram quase três da tarde e o sol brilhava forte. Eu me surpreendi quando vi o parque repleto de pessoas. As árvores, apesar do sol, eram responsáveis por dar ao ambiente um clima agradável projetando sombras que cobriam boa parte da praça, possibilitando assim que as crianças brincassem tranquilamente pelo gramado.

Zoe? Nem sinal dela. Mas adivinha quem estava lá?

Riku Medeiros.

Embora estivesse sozinho e eu soubesse que ele era da mesma “raça” que a minha, não me senti à vontade para cumprimentá-lo — afinal, ele havia rejeitado eu e meus amigos no outro dia, quando tentamos nos aproximar. Eu apenas me sentei no mesmo banco de sempre, como já estava me acostumando a fazer.

Fiquei observando os caras jogarem bola, quando me surpreendi:

— Preciso falar com você.

Era ele.

Como de costume, Riku não expressava nenhum sentimento de ansiedade ou algo do gênero. Como ele se aproximou sem eu perceber, era um mistério. Com a minha ótima audição, eu ouviria os seus passos, mas isso não aconteceu.

— Falar comigo? — respondi, com o coração acelerado, olhando para o M de sua corrente prateada. — Sobre o quê?

Ele sentou-se ao meu lado. E foi direto ao ponto:

— Você já deve imaginar que eu sou um caçador.

— É, tô sabendo. E você já sabe que eu também…

— Sei.

— Por isso veio até aqui?

— Eu sei que tratei vocês com indiferença no outro dia, mas a verdade é que eu já não confio em mais ninguém. — Riku disse sem delongas. Percebi um leve tom de amargura em sua voz. Seus olhos cinzentos, no entanto, não deixavam transparecer nenhum outro sentimento. Ele olhava para a quadra.

— Por quê? — perguntei. — Aconteceu alguma coisa?

— Eu não vim falar sobre a minha vida. Vim dar um aviso.

Ele me encarou com frieza, intimidando-me de uma forma estranha. Apesar de parecer um garoto tranquilo, pude ver algo especial em seu olhar. Não o brilho amarelo de caçador, ou o vermelho de vampiro, mas um brilho que misturava ódio, vazio e sede. Sede de algo que eu não podia entender, mas que me causava arrepios.

— Meus pais foram mortos por vampiros a sangue frio — disse Riku. — Eles foram assassinados.

Senti como se ele fosse me atacar a qualquer momento, e eu me perguntei se ele era mesmo um caçador de vampiros. Mas, pensando melhor, isso explicava outro ponto. O Jhou dissera que o Riku havia perdido os pais num acidente de carro.

Um mero disfarce para algo ainda pior.

Ainda assim, Riku mostrava-se firme, como se não ligasse para aquilo, mas era evidente o vazio dos seus olhos; por mais ameaçadores que eles fossem, isso fez com que eu me sentisse mal. Com pena, sim, mas era um sentimento diferente. Eu sentia que a culpa de os pais dele terem sido assassinados era minha.

— Sinto muito — lamentei. — Mas... que aviso é esse? O que uma coisa tem a ver com a outra?

— Eu vou ser direto com você, Kido. Eu quero vingança.

— Vingança — repeti.

— Matarei todos os vampiros que eu encontrar, inclusive… o seu amigo.

Ele estava falando do Pedro. Isso significava que Riku também havia percebido. Sabia que o Pedro era um vampiro — e isso me preocupou bastante.

— Eu acho que primeiro deveríamos saber mais sobre ele — argumentei.

— Saber mais? — Riku se levantou de repente e, embora mantivesse uma postura controlada, seus olhos agora transmitiam uma fúria assustadora. — Já sabemos o suficiente: Pedro é um vampiro!

— Mas e se ele for um vampiro do bem?

— Não existe isso!

— Como você sabe?!

Ele me fuzilava com um olhar frio que me provocava calafrios. Riku era tão assustador quanto um vampiro.

— Eu sou um caçador há quase dez anos — disse num rosnado, e meus olhos tornaram a se voltar para o seu pingente prata. — Conheço-os o suficiente para saber que não são confiáveis! Eu fui obrigado a caçar desde criança pelo meu pai, e você não sabe como foi difícil, você não sabe o que é ter uma infância dura, tendo que lutar contra vampiros a toda hora!

Todas as informações haviam me impressionado. Caçador há quase dez anos. Infância dura. E para finalizar: pais mortos por vampiros. Por mais que eu tentasse imaginar como o Riku passou por tantas coisas, parecia impossível. E percebi que a minha vida era maravilhosa comparada à dele.

— Riku — eu persisti —, acho que você deveria dar uma chance às pessoas. Não falo apenas pelo Pedro. Eu falo por você mesmo. Não é porque tudo isso aconteceu que você não pode tentar ter amigos. Acho que ficar sozinho só piora as coisas.

— Não seja idiota. — Sua voz tinha, agora, um nítido tom amargo. — Ter amigos não vai melhorar em nada a minha vida! Perdi meus pais, as únicas pessoas que se importavam comigo. Agora sou obrigado a morar com os imbecis dos meus tios. — Ele praticamente cuspiu essa última frase. — Enfim, eu só vim te dar esse recado para que depois você não venha querer tirar satisfação. Vou fazer algo que vocês deveriam ter feito há muito tempo, você e aquele otário do Kogori. Vou exterminar aquele seu amigo idiota para sempre!

— Eu não vou deixar! — Retruquei por impulso, levado pela raiva. — Você não pode atacá-lo dessa forma, é muito cedo! E se o Pedro for um vampiro... do bem? — Realmente aquilo soava estranho, mas assim como o Natsuno, eu tinha esperanças.

Pela primeira vez, notei o anel prata no dedo anelar da mão direita dele, reluzindo o brilho do sol. Um anel idêntico ao meu. Riku disse:

— Eu aconselho você a não entrar no meu caminho, ou então...

— É o que veremos — eu o cortei de imediato, adivinhando suas próximas palavras; Riku mostrou-se levemente surpreso. — Você vai ter que passar por cima de mim primeiro, Riku. Não posso deixar você fazer isso. É loucura.

— Como quiser. — Ele sorriu, como se estivesse tirando sarro da minha cara, o que não me agradou nadinha. Foi o suficiente para perceber que a aparência do garoto não refletia em nada a sua personalidade. Riku era frio e cruel. — Só espero que não se arrependa depois. Não pretendo poupar força contra você.

Com essas palavras, ele virou-se dando as costas e caminhou, tranquilo, indo embora enquanto eu o olhava admirado e inseguro também. Seu anel reluzia a luz do sol, mesmo de longe.

Suspirei, tomado por um alívio inesperado. Riku parecia ser um cara ameaçador. Ou talvez fosse apenas confiança em si próprio. Não importava, aquilo não mudaria minha opinião. Eu não o deixaria machucar uma pessoa antes de saber sobre ela. Era como prender um suspeito sem ter as devidas evidências.

Por fim, eu decidi ir embora. O sábado ainda prometia.

 

Já era noite quando terminei o meu banho. Vesti a calça que ganhara do tio Michael antes de ir embora de Belém e uma camiseta vermelha que ganhara de presente de aniversário da minha mãe algumas semanas antes, depois desci à sala.

Tony vestia: camisa azul-marinho com uma calça jeans preta e tinha a sua inseparável espada Ko-Kyuketsuki em forma de corrente prateada no pescoço.

Sara vestia: tomara-que-caia branca com uma calça jeans clara, sapatos pretos e brincos de argola.

Estávamos prontos para ir ao cinema.

— Vamos, vamos, vamos — apressou minha mãe, meio agitada. — Não quero chegar lá com os ingressos esgotados.

— Relaxa, apressadinha — debochou meu pai. — Temos tempo suficiente para ir e voltar.

— O pai tem razão, mãe. Ainda tá cedo.

A julgar pela expressão dela de “minha paciência não está das melhores”, para mais prevenções, meu pai e eu decidimos nos apressar. E rumamos ao cinema que meu pai costumava frequentar na adolescência, que ficava a quarenta minutos da nossa casa.

Mal sabia eu que aquela noite não seria uma noite comum. Seria o pontapé inicial para o novo rumo que minha vida estava tomando.



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