Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10: O misterioso Pedro

A manhã de segunda-feira estava abafada e com poucas nuvens no céu, diferente do dia anterior, que foi frio e chuvoso. Eu começava a estranhar o clima de Honorário — e já sentia saudade do meu pai, que havia ido embora na última noite.

Em meio a devaneios e hipóteses — preocupado com o que as pessoas comentariam depois que persegui o motoqueiro —, cheguei à escola e cumprimentei meus amigos na praça verde. Na verdade, cheguei na mesma hora que os três, cada um vindo de um caminho diferente.

Quando nos encontramos, percebi que os olhos do garoto loiro (Pedro) estavam vermelhos, não o vermelho dos vampiros, o que me aliviou bastante, apenas um vermelho normal, de choro. Logo eu me perguntei: ele andara chorando?

— E aí, pessoal — cumprimentei-os.

— E aí, Dio — disse Natsuno, sorridente como sempre.

— Como vai, amigão? — Jhou quase esmagou a minha mão num aperto forte.

— Oi, galera — Pedro forçou um sorriso. Tentou disfarçar, mas era evidente a tristeza em seus olhos. Ninguém ousou dizer nada.

Entramos na escola em meio à multidão de adolescentes e nos dirigimos à sala 2. Sophia e suas duas amigas estavam postadas diante da porta, e um alívio gigantesco tomou conta do meu corpo. Eu disse aos meus amigos:

— Vão indo na frente.

— Certo. — Natsuno me encarou com um tom zombeteiro no olhar.

Os três garotos entraram na sala enquanto eu me aproximava das garotas: Sophia, Ana e Jéssica.

— Oi — falei. De imediato, as três me olharam com certa indiferença, o que me deixou intimidado. Imaginei que estivessem comentando sobre a minha fuga.

— Ah, oi, Diogo. — Sophia deu um sorriso. — Algum problema?

Eu não sabia o que dizer. Na verdade, eu nem sabia por que estava ali.

— É, eu… — Senti que fiquei vermelho, enquanto Sophia olhava atenciosamente para mim, um tanto confusa. — Sophia, eu só queria dizer que… é… eu estava preocupado com… você.

— Só isso? — Ela riu sem jeito, mas um riso de quem gostou de ouvir o que ouviu. — Que fofo!

Isso me deixou sem jeito. “Fofo? De onde ela tirou isso?”

Fiquei muito envergonhado.

— É só isso mesmo? — Ana, sua amiga de cabelos loiros e curtos, indagou com uma certa seriedade.

Confesso que não consegui encontrar as palavras, ao mesmo tempo em que Sophia lançava à garota um olhar de espanto que logo alternou-se para raiva.

Eu me encorajei e respondi:

— Só.

A essa altura, o corredor se esvaziava, já que a maioria dos alunos já havia entrado em suas respectivas salas.

— Tem certeza? — Ana persistiu.

— Ana! — protestou Sophia, e notei que Jéssica, a garota negra do black power, ria de canto de boca.

— O que foi? — Ana fez-se de inocente, rindo também.

Eu estava sem graça. Aquelas garotas estavam zombando de mim.

— Bom... eu vou indo — falei, fazendo menção de ir embora. Sophia foi rápida em dizer:

— Espera. — E pôs-se diante de mim.

Parei. Estávamos frente a frente, olho no olho quando, então, Sophia se aproximou de mim lentamente e se inclinou para frente — pensei que ela fosse me beijar! Mas apenas recebi um beijo na bochecha esquerda, que mesmo assim me deixou enrubescido.

Ela sorriu e disse:

— Fico grata por ter se preocupado comigo. Você é mesmo uma pessoa muito especial.

E ignorando as provocações das outras duas, entrou na sala e tomou o seu assento, acompanhada de suas amigas.

Eu fiquei parado lá, naquele corredor, com o coração parecendo uma metralhadora dentro do peito. O beijo ainda parecia quente no meu rosto. Perguntei-me se algo estragaria o meu dia.

— O que faz parado ainda do corredor?! — Abigail foi como uma resposta para a minha pergunta, de uma forma bem, digamos, ignorante. Eu me recompus e falei, rápido:

— Foi mal, senhorita Abigail. — E entrei, relutante, preparado para os olhares irônicos e os comentários debochados.

O que não aconteceu.

Parecia que ninguém mais se lembrava do que havia acontecido na última sexta, quando "fugi" da escola. Isso era estranho. Normalmente as pessoas comentariam entre si: "Olha lá aquele moleque louco que seguiu aquele motoqueiro!" ou "Vejam! Aquele menino que pulou do primeiro andar da escola pela janela!". Mas nada disso, apenas cumprimentos.

Apesar de confuso, me senti aliviado.

 

Quando deu a hora do intervalo, Pedro levantou-se muito depressa e saiu da sala sem nos esperar. Natsuno e eu nos entreolhamos, mas não dissemos nada, uma vez que o Jhou estava por perto. Não queríamos falar sobre vampiros perto do grandalhão.

Descemos e nos acomodamos em uma mesa vazia no centro do refeitório, percebendo que não estava mais tão lotado quanto nas duas semanas anteriores: havia somente alunos da mesma série que a nossa.

Olhei para a mesa ao lado e lá estava o Riku. Lembrei-me da nossa última conversa, quando ele disse que mataria todos os vampiros que encontrasse pela frente, sendo o Pedro um deles. Eu não poderia permitir — pelo menos não por ora. Precisava saber se o Pedro era do “bem” ou do “mal”. Por mais que parecesse impossível, eu sentia que poderia estar certo, e Natsuno pensava da mesma maneira pelo simples fato de conhecê-lo desde o ano anterior. Não que o Riku se importasse. Sua sede por vingança falava mais alto. Afinal, seus pais foram assassinados por vampiros, portanto era natural que ele sentisse raiva de todos eles a ponto de querer exterminá-los — sem mencionar o fato de também ser um caçador de vampiros.

Por fim, lembrei também de quando respondi que não iria deixar isso acontecer. Com isso, Riku e eu nos tornamos rivais de última hora, e eu faria o máximo para proteger o Pedro, mesmo que ainda não soubesse muito sobre ele.

 

De volta à sala de aula, notei que Pedro já estava em sua carteira, sentado, olhando para frente. Onde ele esteve o tempo todo, eu não fazia ideia. Mas seus olhos novamente estavam avermelhados.

Perguntei:

— Pedro, aconteceu alguma coisa?

— Nada — respondeu ele de imediato, desviando o olhar para baixo.

Eu não podia perguntar sobre vampiros num momento como aquele. Mesmo que perguntasse, duvidava que Pedro admitiria. Ele parecia estar passando por alguma coisa que o afligia muito.

— Se precisar de alguma coisa, cara — disse Natsuno —, nós estamos aqui. Pode se abrir o quanto quiser.

Olhei para ele. Natsuno parecia mesmo não ligar para a origem do garoto loiro, talvez tentando mentir para si mesmo. Ele acreditava mesmo que Pedro era do bem.

— É pra isso que existem os amigos — acrescentou Jhou, determinado, com olhos verdes faiscantes.

Pedro olhou para nós e forçou um sorriso.

— Obrigado, pessoal, de verdade. Mas é sério, não preciso de nada.

Meus amigos e eu trocamos um olhar significativo. Olhei para eles como se quisesse dizer: "Vamos deixá-lo, o Pedro precisa ficar sozinho". Eles entenderam e assentiram.

Tomamos os nossos assentos quando o professor adentrou a sala e observei Riku caminhando em direção à sua carteira. No momento em que ele passou por mim, de relance trocamos um olhar. Senti algo estranho no peito quando vi suas íris tornando-se amarelas por um segundo. Como ele conseguia fazer aquilo, eu não sabia. Perguntei a mim mesmo se os meus olhos também mudavam de cor.

Riku sentou-se no fundo da fileira e eu o encarei. O garoto não demonstrou nenhuma expressão facial, ainda assim parecia ameaçador. Seu pingente prateado em forma de M reluziu o brilho do sol com grande intensidade, mas o maior destaque eram seus olhos cinzentos, semelhantes a nuvens pesadas de uma tempestade.

O restante das aulas foram normais.

 

Quando cheguei em casa, minha mãe estava ao telefone, na sala.

— Oi, mãe.

— Ah, olá, filho — respondeu ela, distraída.

Bocejei.

Ela falou alguma coisa ao telefone e, antes que eu subisse para o meu quarto, disse:

— Dio, é o seu pai. Ele quer falar com você.

— Comigo? — estranhei.

Peguei o telefone ao lado direito do sofá maior, enquanto Sara voltava para a cozinha, para aprontar o almoço.

— Oi, pai, pode falar.

— Diogo — disse ele com a voz muito séria —, por favor, toma muito cuidado, filho.

— Hã, pode deixar...

— É um assunto muito sério. Os vampiros... eu tenho uma leve impressão de que virão te atacar novamente.

— Bem tranquilizador, você — ironizei. — Afinal, eu sou um caçador, não é mesmo?

— Está acontecendo algo fora do normal. — Sua voz levava um tom preocupado, e tive a impressão de que meu pai havia visto ou ouvido algo na tal organização, porque nem no último sábado ele parecia tão preocupado assim. — Aquele vampiro do estacionamento, além de ser dos evoluídos, nem se importou comigo. Ele queria você, filho. E sinto que ele não vai ser o último. O diretor passava longe de ser um vampiro comum, e tem também aquele motoqueiro que você seguiu... — Meu pai suspirou. — Toma cuidado, Diogo, não confie em ninguém. E quanto àquela sua pergunta sobre existirem vampiros do bem... Você tem alguma coisa para me dizer?

Um nervosismo tomou conta de mim e minhas mãos começaram a suar. Tony ainda esperava pela minha resposta, esta que eu não sabia como dar. Decidi responder:

— Não. Nada.

— Beleza. Depois a gente se fala. Agora vou voltar ao trabalho. Fica com Deus e se cuida.

— Certo — eu disse aliviado. — Você também.

Ele desligou.

Troquei de roupa e arrumei o meu quarto, pensando não só na conversa para lá de esquisita que acabara de ter com meu pai, como também na forma estranha com que o Pedro estava agindo. Lembrei daquele vampiro do estacionamento, em sua velocidade aterrorizante. Embora eu o tivesse derrotado, havia levado um soco que me fez esconder da minha mãe o domingo inteiro, já que a marca ficara nítida na minha bochecha até a noite. Se eu tivesse sido um pouco mais ligeiro...

Decidi que precisava treinar. Neste instante o anel ficou quente no meu dedo, então resolvi descer para os fundos da minha casa.

O sol parecia estalar lá em cima, deixando o clima muito mais quente do que deveria ser. Era realmente prazeroso sentir aquele calor. A floresta estava tão quieta que parecia estar num sono profundo. Logo me lembrei de quando persegui o diretor da minha escola. Eu me perguntei quantos outros vampiros estavam por aí, disfarçados, atacando inocentes. Pelo menos agora eu tinha a explicação para as mortes estranhas que passavam diariamente nos noticiários de Honorário — e precisava evitar que mais pessoas morressem; precisava exterminar essas criaturas demoníacas e... assustadoras.

Suspirei. Tudo era novo para mim. E eu sentia que as coisas ficariam ainda mais sinistras.

A minha casa era separada da casa dos vizinhos somente por um muro de tijolos. Entretanto, a floresta era terrivelmente aberta, estendendo-se pelo sul da cidade até onde eu não conseguia ver. Queria poder entender por que meu pai escolhera justamente aquela casa para comprar.

Olhei em volta, certificando-me se não havia ninguém por perto. 

Somente grama e árvores.

Os vizinhos não desceriam para aquela região, isso era óbvio. Então, com a força do pensamento, fiz meu anel se transformar na pequena espada Takohyusei.

Era bonita, a lâmina media cerca de trinta centímetros e reluzia num dourado muito atraente. Ambos os fios eram muito afiados, enquanto o cabo vermelho era marcado com entalhes alaranjados.

Por mais que eu soubesse lutar, nunca havia manuseado uma espada antes. Assistira a filmes, claro, mas aquilo era diferente. Desferi alguns golpes no ar, mesmo assim eu sentia que não a estava usando de maneira correta. Por fim, desisti. Talvez pediria para o meu pai me ensinar da próxima vez que ele viesse. Tony possuía uma espada bem maior e mais pesada, e cortou um vampiro com ela. Portanto, era bem provável que fosse um espadachim experiente.

Fiz a espada voltar a ser anel (novamente com a força do pensamento) e treinei alguns golpes físicos. Chutes, rasteiras, voadoras, socos laterais e socos de baixo para cima. Realmente não tinha graça treinar sozinho, mas eu sentia que precisaria de toda a habilidade possível se quisesse mesmo enfrentar vampiros ou — quem sabe — o Riku; para isso eu precisava me esforçar.

Fiquei a tarde inteira treinando.

 

Terça-feira, 23 de fevereiro: o dia das inscrições.

Fiz minha rotina e fui para a escola. Lá eu encontrei os meus amigos  já na sala de aula. Cumprimentei os garotos do futebol e – bom, de uma forma bem bocó — a Sophia. 

Ana ainda me encarava como no dia anterior, olhar que parecia significar algo. Em contrapartida, ela era alvo de um olhar furioso da Sophia. Eu realmente não estava entendendo o que estava se passando.

— Sophia, algum problema? — perguntei, quando estávamos na porta.

— Não é nada. É idiotice da Ana.

Ana parecia segurar os risos, juntamente com a Jéssica.

— Como assim? — perguntei.

— Deixa quieto.

— Você é muito ingênuo — disse Jéssica revirando os olhos.

— Eu? Por quê?

— Porque... — a garota ia dizendo, quando foi interrompida por Sophia:

— Jéssica! Chega! Já pedi mil vezes!

Cocei a cabeça intrigado. Jéssica e Ana ainda me fitavam e decidi que tentaria descobrir o porquê.

Um professor diferente chegou na sala e dirigi-me ao meu lugar, sem entender absolutamente nada.

Mulheres…

Então me ocorreu que a primeira aula de terça-feira, segundo a relação das matérias que haviam nos passado, era de História, o que significava que…

— Mais um substituto? — estranhou uma das meninas da classe após o rapaz se apresentar.

Começaram a rolar buxixos que a matéria estava amaldiçoada, mas eu sabia bem do que se tratava.

— É hoje, hein Natsuno — disse Marcelo, o líder do grupo dos populares da sala, que se sentava no centro da classe com outros garotos.

— Eu sei — disse Natsuno impaciente, então se virou para mim. — Por que será que adiaram as inscrições, hein Dio?

— Hã... depois explico.

Pedro ainda estava na mesma. Não falava com ninguém, mantinha olhos distantes e meio avermelhados, era como se andara chorando nos últimos dias. Nem a empolgação que cobria a sala por conta das inscrições conseguia animá-lo. Eu começava a me preocupar.

Passaram-se as três primeiras aulas. Os professores mal conseguiram a atenção dos alunos devido à agitação da sala. Na verdade, o início do campeonato era assunto na escola inteira, em todo canto do refeitório era possível ouvir os comentários.

— Vamos ver aonde ele vai — sugeriu Natsuno, quando Pedro levantou-se da nossa mesa alegando que precisava “ir ali” e se distanciou.

— Melhor não — respondi. — Acho que o Pedro quer ficar sozinho.

Natsuno deu uma murmurada e continuamos comendo nossos lanches, no intervalo.

De volta à sala, Pedro estava lá, com o seu rosto de quem havia perdido uma aposta numa briga de galinhas. Dessa vez não falamos com ele, apenas nos sentamos em nossos lugares. Jhou nos contava uma história que acontecera no ano anterior, quando arrumou briga com um garoto do oitavo ano, mas a minha atenção estava voltada mesmo era para outra coisa. Disfarçadamente, eu olhava para a Sophia e suas amigas, percebendo que as três falavam de mim. Pelo que consegui ler em seus lábios, suas amigas tentavam convencê-la de algo e ela negava persistente e impacientemente.

Agora qual era o assunto, eu também queria saber.

Eu decidi me concentrar nas aulas. Ou melhor, tentar. Pelo menos copiei todos os textos que os professores passaram na lousa, enquanto os demais garotos ainda faziam barulho por conta do campeonato.

A aula de Português acabou e veio a quinta.

Depois da quinta aula, chegou a sexta.

Depois da sexta, a hora de ir embora. Mas antes tinham as inscrições.

Em grupo, nós descemos para o ginásio da escola, que ficava em um bosque na parte de trás do colégio,  onde havia o auditório, o campo de futebol e o ginásio. O lugar era amplo e muito bonito, com um belo gramado natural, jardins floridos, grandes árvores e uma singela fonte d'água bem no centro.

Eu nunca havia percebido o quanto a escola era enorme. Na verdade, eu nunca havia reparado que havia um bosque nos fundos. Isso fazia do colégio Martins uma escola bem engenhada.

O entorno do terreno consistia de um enorme muro com uma grade de arame perigosa o suficiente para impedir qualquer invasor, uma vez que havia placas sinalizando que o arame era protegido por eletricidade.

O ginásio era espaçoso e tinha suas arquibancadas abarrotadas de alunos uniformizados que assistiam a uma espécie de apresentação acrobática realizada por meninos e meninas do terceiro ano. Um cartaz dizia que as inscrições seriam abertas após a exibição e a apresentação do novo diretor, portanto nos acomodamos atrás de uma das balizas, próximo ao banheiro, para assistir ao pequeno evento.

— Aquela mulher não dá um tempo nem depois das meio-dia — murmurou Natsuno, referindo-se à senhorita Abigail, que andava em meio aos alunos dando broncas com seus gritos estrondosos.

— Cadê o Pedro? — estranhou Jhou.

Ele não estava por perto.

— Ultimamente ele anda bem esquisito, vocês não acham? — disse Natsuno.

— Será que ele não tá se alimentando direito? — questionou Jhou, recebendo nossos olhares irônicos.

— Vamos procurá-lo — sugeri.

— Não foi você quem disse que deveríamos deixá-lo sozinho, Dio? — advertiu Natsuno.

— Mas se o Pedro não aparecer — argumentei —, ele ficará de fora do campeonato.

Avisei ao Marcelo que iríamos sair à procura do garoto e ele disse que estava tudo bem, guardaria os nossos lugares na fila caso não chegássemos a tempo.

Saímos do ginásio e fomos procurá-lo no bosque vasto e florido, cheio de árvores enormes e plantas bem cuidadas. Havia diversas trilhas de barro que levavam ao campo de futebol ou ao fundo do edifício do colégio.

— O que ele deve estar fazendo? — Jhou levantou a grande dúvida, enquanto caminhávamos pelo gramado. O dia estava quente, com poucas nuvens e um sol escaldante, mas a toda hora brisas refrescantes passavam por mim e me provocavam calafrios.

— Ele anda chorando com frequência nos últimos dias — falei. — Aconteceu alguma coisa que o Pedro não quer nos contar.

Foi Natsuno quem o avistou:

— Olha ele ali!

Pedro estava encostado ao pé de uma árvore de costas para nós, quieto feito uma pedra. Quando percebeu nossa presença, imediatamente enxugou suas lágrimas e virou o rosto.

— O que vocês querem? — perguntou após pigarrear para, obviamente, disfarçar a voz de choro.

— Pedro — disse Natsuno com seriedade —, vai contar pra gente o que é que tá pegando ou vai ficar de frescura?

Pedro desviou o olhar para a linda fonte d'água no centro de uma praça a vários metros de onde estávamos. A praça era rodeada por bancos de mármore, e notei que havia alguns faxineiros sentados ali, conversando, provavelmente esperando a hora do expediente.

— Não está havendo nada.

— É, e eu nasci ontem!

Natsuno, Jhou e eu nos sentamos lado a lado de modo que ficamos de frente para ele. Ele teria que nos encarar de qualquer jeito.

— Pedro — falei, tentando soar mais compreensivo —, pode contar com a gente. Nós somos seus amigos.

Ainda olhando para a fonte, ele perguntou direto:

— Mesmo eu sendo um vampiro?

Isso me surpreendeu. Até admito que meu coração acelerou, mas fiz o máximo para me manter firme, ao contrário do grandalhão Jhou, que perguntou rindo, provavelmente pensando que era alguma brincadeira:

— Vampiro! Hahahahá! Cada coisa, só vocês mesmo. — Porém, ele parou ao perceber que estávamos calados. — Isso é alguma pegadinha?

— Depois eu te explico, grandão — acalmei-o, ainda encarando o Pedro. Jhou não fez perguntas percebendo a situação do garoto, mas era nítido o espanto em sua expressão. Já Natsuno mantinha-se atento ao amigo, que ainda estava abatido, olhando para o nada.

— Você não é mau — falei.

Pedro me olhou como se eu fosse um louco, fazendo com que eu notasse que seus olhos estavam ainda mais inchados que antes

— Não sou mau? O que você quer dizer?

— Você, Pedro — disse Natsuno —, ainda é nosso amigo, sendo um vampiro ou não.

Ele voltou a olhar para a fonte com olhos azuis belos e impressionantes que transmitiam uma paz envolvente.

— Mas não é isso que te deixa assim — adivinhei.

— Não...

— Então o que é? — estranhou Natsuno.

— Pessoal — disse ele —, é sério, preciso ficar sozinho.

Continuamos sentados, fitando-o.

Pedro nos encarou, passando os olhos azuis de um por um, e suspirou. Sabia que não desistiríamos.

— Não vamos sair daqui até você nos contar o que tá havendo, cara — informou Natsuno.

Olhei para ele com certa admiração. Natsuno era mesmo um grande companheiro, mesmo tendo deslizado uns dias antes quando tratou o nerd Kai daquela maneira.

Todavia, o vampiro ainda hesitava, olhando somente para a fonte. Natsuno não se conteve e gritou, bravo:

— O QUE ACONTECEU, CARA%$#?! ESTAMOS AQUI PREOCUPADOS COM VOCÊ E VOCÊ CONTINUA NESSA FRESCURA!!

Pedro levantou-se mais furioso ainda e também esbravejou:

— POR UM DESCUIDO MEU A MINHA IRMÃ MORREU, MERDA!! ESTÁ SATISFEITO AGORA?!!

Após o grito, um momento de silêncio estabeleceu-se entre nós repentinamente, pois a informação pareceu engolir as nossas palavras. Pedro realmente ficou furioso, como eu nunca havia visto antes. E a sua resposta foi impactante também. Natsuno pareceu se sentir arrependido pelo que disse, enquanto Pedro não conseguia conter o choro. Ele suava, de raiva e de culpa. Tornou a se sentar, dessa vez trêmulo.

— Completou três anos no domingo…

Ele escondeu o rosto entre os joelhos e chorou. Decidimos não dizer nada, apenas esperar. Pedro começou:

— Era meu dever buscá-la na escola, pois minha mãe trabalha muito para nos sustentar, sempre trabalhou, pois meu pai nos abandonou muito cedo. A Laura só tinha cinco anos… Ela era tão inofensiva… Uma criança doce e inteligente… Eu a matei.

Um susto envolveu a nós três. Automaticamente, pensei em coisas absurdas, pego pelo assombro da minha imaginação. Mas Pedro esclareceu melhor:

— O farol havia acabado de abrir, mas não havia carros por perto. Eu achei seguro atravessarmos a rua! Mas a mão dela escapou… o caminhão apareceu do nada… Ela não resistiu…

Pedro não disse mais nada, ele não estava em condições. Chorava de maneira silenciosa e dolorosa, com o rosto ainda escondido entre os joelhos, mas era possível notar que ele suava.

Inexplicável descrever a tristeza que eu sentia com a história. Carregar a culpa de uma morte deveria ser uma das piores coisas do mundo. E o pior era que não tínhamos nada a dizer, apenas observar, inúteis e abatidos.

— Ela tá num lugar melhor — tentei consolar.

— Eu creio — disse o garoto com a voz trêmula.

— Já passou, Pedro — foi Natsuno quem criou coragem para falar algo mais ousado, esforçando-se para ser delicado. — Isso é passado, maninho, e temos que viver o presente.

— É difícil. — Pedro suspirou, erguendo a cabeça e esfregando os olhos. — Eu a amava demais.

Decidi falar:

— Pedro, eu nunca perdi alguém assim como você, então não sei mesmo a dor que você está sentindo, muito menos essa culpa, mas eu me mudei para Honorário há duas semanas e senti um vazio tão grande no peito… Pensei que não teria ninguém para conversar ou… desabafar. Eu sei que é diferente, mas infelizmente a nossa vida é assim, cara, Deus sabe o que faz. Até que encontrei vocês três, pessoas que fazem eu me sentir muito bem. Gosto muito das nossas manhãs. Parece clichê, mas o que mudou o que eu sentia foi as amizades que eu fiz, por isso estaremos aqui sempre, beleza? Não temos a capacidade de curar essa sua dor, mas sempre que precisar, pode contar com a gente. Você tem ótimos amigos do seu lado.

Meu coração ficou alegre quando vi que consegui arrancar um pequeno sorriso do garoto. Natsuno e Jhou concordaram, alegando que Pedro era um ótimo amigo e que fariam qualquer coisa para ajudá-lo.

— Obrigado, pessoal — disse ele.

Sorri.

— Amigos? — perguntei aos três, olhando-os, um a um.

— Amigos — disse Natsuno, sorrindo.

— Amigos — Jhou também sorria.

— Amigos — disse Pedro, por fim.

— Para sempre — falei pensando na Zoe.

Agora precisávamos saber como o Pedro havia sido contaminado por vampiros. Mas isso ficaria para depois, pois um forte calafrio na barriga me avisou que alguém estava por perto.

— Ora, ora, ora — disse uma voz fria e familiar —, parece que estamos felizes.

Todos olhamos para ver quem era e não me surpreendi quando meus olhos encontraram olhos tranquilos e cinzentos que pertenciam ao Riku Medeiros. Ele estava a poucos metros de distância, postado diante do gramado verde e bem cuidado.

— Estava demorando — disse Natsuno.

Riku tinha uma expressão tranquila que não condizia com sua personalidade.

— O que você quer? — Jhou estava confuso. — As inscrições não são aqui.

— Como o Pedro é um vampiro — expliquei, sério —, Riku quer exterminá-lo.

Pedro não parecia surpreso, mas Jhou estranhou:

— Como assim?

Ninguém respondeu. Natsuno estava tão preocupado quanto eu. Parecia pronto para qualquer coisa.

Riku ergueu a mão direita e mostrou seu anel prateado, tirando-o do dedo com a mão esquerda. Lentamente, o objeto começou a se esticar, transformando-se numa espada muito parecida com a minha, porém diferente na cor e no tamanho; a dele tinha alguns centímetros a mais.

A lâmina de metal da espada era toda banhada em prata. O fio era duplo e afiado, extremamente reluzente, enquanto o cabo cinza-fosco continha  alguns símbolos entalhados completamente desconhecidos para mim. A espada era tão bonita quanto poderosa, eu sentia isso. Era como se produzisse algo que agitava o meu corpo. Uma sensação estranha, mas que eu já sentira antes.

— Então essa é a Takohyusei do Vento? — Natsuno parecia admirado.

Ele também mostrou seu anel com a mão direita — que eu nunca havia notado —, e o tirou com a mão esquerda. Neste momento o anel também se tornou uma espada de fio duplo, do mesmo tamanho que a do Riku, mudando somente a cor.

A espada do Natsuno era roxa, tanto o cabo quanto a lâmina, e  reluzia à luz do sol devido ao metal polido. Os detalhes do cabo eram dourados e brilhantes, lembrando pequenas fagulhas de raios. Possuía um tipo de gravura representando algo.

Eu estava mesmo surpreso e cheguei a uma conclusão: todo caçador tinha uma espada Takohyusei — ou pelo menos era isso que parecia.

— Isso é comigo, Natsuno — falei dando um passo à frente, determinado.

Saquei o meu anel dourado que imediatamente se transformou na minha espada, porém, por mais incrível que pareça, ela continuou se esticando, parando somente ao ficar do mesmo tamanho que as espadas dos dois garotos.

— O q-quê que é isso? — Jhou estava mais perplexo do que nunca.

Nossas espadas começaram a brilhar produzindo alguma energia boa que, de algum modo, estavam se interligando. Uma aura estranha, linda, tranquilizante. Uma coisa que eu nunca vi antes. Era a mistura de vermelho, roxo e prata, atingindo o vácuo à nossa frente de forma que até o Riku se mostrava curioso. Eu não estava entendendo nada

Tentei não me mostrar abalado, talvez assim não parecesse um idiota. E quando as lâminas cessaram a emissão daquele brilho triplo, falei, fazendo o máximo para parecer confiante:

— Pois é, Riku, eu disse a você que ia proteger o Pedro, não disse?

— Isso não quer dizer nada para mim. — Ele continuava calmo, despreocupado, de certa forma me provocando. Mas eu não cairia.

— É, e por que não?

— Porque eu o matarei junto de você.

Admito que a frase soou bem intimidadora, e acho que meu estômago tremulou. Mas permaneci firme, preparado.

— É o que veremos!

Quando percebi que ele fazia menção de partir ao ataque, eu corri também, decidido e preparado. Íamos na direção um do outro com as nossas espadas empunhadas, prontos para uma colisão de ataques e contra-ataques.

Eu só esperava que tudo desse certo, que Riku não fosse tão forte como aparentava, assim eu poderia vencê-lo e proteger o Pedro.

Caso contrário, eu definitivamente seria um garoto morto.



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