Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: Sem querer, eu aborreço o meu diretor

Não vi mais os três valentões por vários dias, o que achei bem estranho. Quanto ao Natsuno e sua conversa com seu pai, decidi deixar de lado. Única coisa que queria era paz, ficar longe de qualquer encrenca, muito embora fosse difícil esquecer os pesadelos que andava tendo com frequência. Todos envolviam sombras me perseguindo.

— Cara, você tá péssimo — disse Natsuno com uma sobrancelha erguida.

— Não tive uma noite muito boa — expliquei, mas decidi que não comentaria sobre os pesadelos. Poderiam pensar que eu apenas estava com medo depois da quase-briga da semana anterior, o que não era verdade.

A sineta soou. Meus amigos e eu entramos no pátio principal do colégio e estranhamos um amontoado de alunos perto de uma das paredes próximas à escada. Nos aproximamos e avistamos um anúncio num cartaz com letras tão grandes que eu pude ler mesmo em meio à multidão:

 

48° CAMPEONATO DE ESPORTES DA ESCOLA ROBERTO MARTINS

INÍCIO: 1º DE MAIO

TODOS OS ALUNOS QUE IRÃO PARTICIPAR DO EVENTO DEVERÃO COMPARECER AO GINÁSIO AMANHÃ (19/02/2016) ÀS 12h30 PARA AS INSCRIÇÕES.

A DIREÇÃO

 

— Eu tô muito ansioso pro começo do campeonato — confessou Natsuno, mostrando-se empolgado.

— É campeonato de quê? — perguntei.

— Cada sala pode inscrever vários times diferentes — explicou o pacífico Pedro. — Um time para cada modalidade diferente. Por exemplo: vinte garotos da nossa sala decidem montar um time de futebol, enquanto dez meninas decidem montar outro de handebol; outra parcela se divide entre xadrez, basquete, atletismo, vôlei etc. São vários times num só.

— Entendi.

— Ah! — ainda lembrou Jhou, como se algo tivesse acabado de passar por sua cabeça. — Podemos também participar de duas modalidades diferentes ao mesmo tempo! Mas só duas.

— E as salas campeãs de algumas modalidades representarão a nossa escola no Torneio da Cidade entre escolas — inseriu Natsuno; a essa altura, já estávamos entrando no corredor que levava à sala 2, fazendo com que um dos meus pesadelos ressurgisse em meu cérebro.

Afastei o pensamento.

— Que legal — admiti. Mas, na verdade, eu não estava nem um pouco entusiasmado. Não tinha amizade com ninguém na sala, a não ser com o Natsuno, o Pedro, o Jhou e, de uma forma estranha, com a Sophia. Eu poderia me inscrever pelo menos no xadrez, pois presumi que não precisava de equipe.

— Fica de boa, Dio — Natsuno pareceu perceber o meu desânimo. — Você não vai ficar sozinho nessa. A gente chama você pro time de futebol.

Desde pequeno eu amava futebol, e até era bom jogando. A questão era que quem estava me chamando era o Natsuno, não os outros garotos.

— Sem problemas, cara — forcei um sorriso, agradecido pela consideração. Natsuno, até o momento, mostrava ser um grande amigo, embora ainda houvesse aquele incidente do banheiro.

Nesse instante, mais uma vez percebi que não tinha tanta sorte na escola. Havia uma pequena elevação de altura entre o piso do corredor e o piso da minha sala. Uma pequenina rampinha minúscula exatamente na entrada. E adivinhem o que aconteceu?

Tropecei ali e caí no chão da sala, atraindo todos os olhares possíveis.

Foi um baita mico. Senti meu rosto aquecendo de forma apressada e aquela sensação desconfortável de ser, mais uma vez, o centro das atenções. Vários alunos riram em deboche, enquanto outros apenas me olhavam com sobrancelhas arqueadas. Eu não sentia dor, apenas não fiquei tão contente em cair daquele jeito na frente da classe inteira.

Mais rápido que meus amigos, uma mão me surpreendeu, estendida para mim. Ergui os olhos e Sophia se mostrava preocupada e penosa.

— Você está bem? — perguntou, após me puxar. Era muito suave o toque de sua pele. Ela sorriu.

— Estou... — falei envergonhado. — Obrigado.

Era como se o mico pago fosse esquecido no fundo da minha mente. Eu olhava para Sophia com o coração acelerado, feliz pela ajuda, feliz por ela não ter caçoado de mim. Foi então que percebi que ainda segurava a mão dela.

Recolhi, muito rápido, sem jeito. Sophia corava, enquanto suas duas amigas comentavam algo entre si.

— Você vai participar do evento da escola? — perguntei, cortando o clima desconfortável, no qual nenhum dos dois conseguia disfarçar o constrangimento.

— Sim — disse ela, recompondo-se aos poucos. — Vou jogar no time de handebol das meninas. E você?

— Não sei ainda. Talvez eu jogue no futebol.

— Pelo menos você sabe chutar uma bola? — brincou, finalmente tirando a tensão do ar.

— Se for uma redonda…

Caímos na tímida gargalhada, Sophia com um sorriso lindo. Meu coração batia tão forte que parecia que eu ia morrer de tanta adrenalina. Toda vez que chegava perto dela eu sentia a mesma coisa. Era uma sensação tão boa e agradável… 

A professora chegou na sala, passando por mim.

— Até mais — despedi-me dela, indo para o meu lugar.

— Até.

Então eu me sentei lembrando então dos meus amigos e do mico pelo qual havia passado. Eu esperava que as pessoas não se lembrassem disso por muito tempo.

Chegando à minha carteira, fui recebido por um sorriso sarcástico do Natsuno.

— O que foi? — perguntei, sem graça.

— Nada.

 

Já tinha acabado a primeira aula e a professora já havia saído quando a senhorita Abigail apareceu na sala, com a mesma roupa de sempre, assustando a todos com sua aparência horrível e assustadora.

— Aula vaga! — avisou, com o seu tom grave e ignorante.

Todos, de imediato, se entreolharam e pularam de alegria, fazendo muita baderna. Um erro terrível.

— SIIILÊEENCIOOOO!!! — berrou a inspetora com fúria, sua voz tão forte que pensei ter sentido o chão tremendo. Acho que dava para ouvi-la da sala do diretor! Num piscar de olhos a sala estava quieta, os alunos em completo terror. — Assim é melhor!

Com ira nos olhos, a velha rabugenta saiu fechando a porta atrás de si numa forte batida.

Um grupo de meninos logo se reuniu no fundo da sala e um amontoado de meninas se formou em outra parte. Enquanto todos ajeitavam suas cadeiras, juntei-me a Natsuno, Pedro e Jhou, formando um círculo onde havia vários garotos sentados, um de frente para o outro.

— Vamos montar o nosso time — disse Marcelo, o líder do grupo dos populares. Cabelos longos e bem penteados, sua feição era a de um cara descolado e metido.

— Mas um time forte — lembrou outro garoto, o mais baixinho da turma. Tinha cabelos muito curtos e pele parda. — Eu vi que as outras salas não estão pra brincadeira não!

— Nós precisaremos de, no mínimo, vinte e três jogadores na primeira fase — acrescentou Natsuno. — Assim os nossos treinos coletivos serão mais completos e também no caso de alguém se machucar haverá um substituto.

— Verdade — concordaram alguns.

— Com certeza! — disseram outros.

Eu era o único que não falara nada ainda. Praticamente todos os garotos da sala estavam reunidos ali, com exceção de alguns caras que estavam amontoados mais para o centro da classe, também se organizando — provavelmente, algum time de vôlei ou basquete —, e um garoto de óculos que sentava algumas carteiras atrás de Sophia, na fileira da porta. Percebi ele olhando na nossa direção disfarçadamente. Quando nossos olhos se encontraram, ele se voltou para o seu celular, de uma forma um tanto desajeitada.

Aquilo foi engraçado.

— Um, dois, três, quatro… — Marcelo começou a contagem, verificando quantos garotos havia no grupo. Ele não contou comigo, o que me deixou um pouco frustrado. No final, deu dezenove garotos.

— Precisamos de mais quatro pessoas — disse Pedro.

— Mas quem? — disse um menino narigudo.

Natsuno me olhou com olhos motivadores, como quem quer te impulsionar a abrir a boca. Entendi a mensagem e falei ao grupo:

— Eu quero fazer parte do time.

Todos me olharam atenciosos, alguns me analisando dos pés à cabeça, talvez tentando tirar alguma conclusão a meu respeito, levando em consideração o mico que paguei minutos mais cedo. Fiquei sem jeito. Pensei que iam me dizer um “não” bem grande, mas apenas recebi um simples:

— Pode ser. — Foi Marcelo quem autorizou.

Quase não acreditei, pois eu não fizera amizade com ninguém do grupo, nem mesmo falava com eles.

— Você joga em que posição? — perguntou com pouco interesse.

— Eu… — gaguejei — sou… é… meio-campista. Um meia-atacante, aquele que auxilia o ataque o tempo todo —  falei como se eles não soubessem.

Ninguém ligou muito para a minha resposta.

— Agora precisamos de mais três pessoas — lembrou alguém.

— Ah! — gritou o mais baixinho da turma. — O Thiago disse para não se esquecerem dele.

Thiago era o garoto que havia faltado. Nunca reparei nele, mas Natsuno me contou rapidamente que era um ótimo lateral esquerdo.

— Eu também vou — disse alguém que estava fora do grupo.

Todos olharam para a direção da janela — e me surpreendi quando vi que era o Riku, o dono da voz. O garoto permanecia em seu devido lugar no fundo da minha fileira, com um olhar sereno. Os garotos do time assentiram, surpresos. Riku era aquele tipo de cara que não é de fazer amigos, mas que, de alguma forma, é respeitado.

Ele não falou mais nada, apenas continuou olhando para o lado de fora pela janela, seu rosto mostrando pouco interesse. O que se passava em sua cabeça, eu não fazia ideia.

— Já temos vinte e dois — observou um garoto.

— Tá faltando só mais um — concordou outro.

Demos uma ampla olhada em volta da sala, os vários grupos reunidos por toda parte, mas parecia que não havia mais ninguém interessado.

Parecia.

Eu olhei atento para o japonês de óculos — entretido em seu celular, fingindo que não estava rolando nada na sala. Notei que ele nos olhava de esgueira. Ninguém mais notou além de mim, fazendo com que eu me sentisse na obrigação de convidá-lo.

— Vamos chamá-lo — sugeri.

O grupo inteiro olhou na minha direção com cara de: você tá falando sério?

— Que foi? — perguntei. — Foi apenas um palpite.

— Por que chamaríamos um nerd? — Marcelo me encarou com desdém.

Isso fez com que a minha timidez se transformasse em indignação num segundo, especialmente por ter todos aqueles olhares voltados para mim, por isso retruquei:

— Qual o problema?

Qual o problema? — perguntou Marcelo. — Ele é o problema!

— O Marcelo tem razão — disse Natsuno, também me encarando. — Ele — apontou para Kai, que eu notei que agora tremia, muito tenso — não vai ajudar o nosso time em nada.

A arrogância em sua voz me causou decepção, e fiquei surpreso por ter ouvido algo assim do cara que me recebera tão bem. Ainda assim, me mantive firme, pois não podia deixar que excluíssem uma pessoa daquela forma.

— Vocês estão o deixando de fora só porque ele é muito... tímido — repliquei, tentando encontrar, sem sucesso, uma palavra adequada para se encaixar no garoto.

Por um lado, eu até entendia o grupo. Nerds geralmente não têm certas habilidades para praticar esportes. Dava para ver no rosto dele. Entretanto, eu não gostava de ver ninguém sendo deixado de lado. Kai não merecia aquela rejeição, ninguém merecia. Mas parecia que nenhum dos jogadores da sala se importava.

— Eu acho que o Diogo tem razão — disse Pedro, surpreendendo não só a mim, como o restante do grupo. — Eu acredito que nenhum de nós chegou a ver o Kai jogar futebol, pois ele não se enturmava com ninguém na Educação Física ano passado. Não podemos tirar conclusões precipitadas de uma pessoa. E se ele nos surpreender? Lembrando que não há nenhum craque aqui em nosso meio. Ou eu estou enganado?

A pergunta intrigou os garotos, que ficaram pensativos por um momento, sem palavras. Pelo jeito, o Pedro era bem respeitado.

— Vocês dois tem razão — Marcelo então admitiu, quebrando o pequeno silêncio. — Quem sabe ele nos ajude — ironizou.

Os outros, ao invés de rir, ficaram surpresos com sua atitude. Era evidente que Marcelo não tinha cara de quem gostava de esbanjar generosidade por aí. Tiveram que concordar, por fim.

Fiquei feliz e preocupado ao mesmo tempo. Feliz porque havia conseguido colocar o Kai no time. Preocupado porque eu sequer conhecia o garoto, muito menos se ele sabia jogar bola. “O importante é que ele vai ter uma chance” pensei esperançoso.

Marcelo o chamou:

— Ei, Kai. Vem assinar a lista.

Kai se mostrou surpreso. Olhou para os caras do grupo com seus olhos castanhos e puxados. Ele se sentava poucas carteiras atrás da Sophia, na última fileira do canto, portanto, era difícil saber se ele ouvira a nossa discussão.

— Eu? — perguntou tímido, guardando o celular num dos bolsos de sua calça e ajeitando os óculos. — É alguma pegadinha?

— Não — falei, tranquilizando-o para que o garoto olhasse para mim, pois os demais murmuravam algo entre si em deboche. — Queremos você aqui.

— Mas por que iriam querer alguém como eu?…

— Você vem ou não vem? — Natsuno o apressou, olhando para o garoto de forma impaciente e irônica.

— Eu… hã… preciso pensar.

Não precisava ser um gênio para saber que ele estava inseguro de si. Kai não tinha coragem de responder, como se estivesse com medo de ser zombado. Era pressão demais para ele.

— Tudo bem — falei, afinal, tentando ajudá-lo a não ficar nervoso.

— Amanhã você nos dá sua resposta — completou Pedro, uma ajuda muito bem-vinda; o nerd consentiu com a cabeça, ainda sem jeito.

 

Um clima chato se formou entre eu e meus amigos durante o intervalo. Ficamos alguns minutos sem dizer nada, apenas comendo os nossos lanches. Até que tomei coragem para perguntar:

— Por que você agiu daquela forma?

— Você não entende, cara — respondeu Natsuno, sem dar tanta importância à minha pergunta, comendo o seu hot dog de duas salsichas.

— E por que não? — insisti.

— Tá legal, eu vou responder.

— Estou esperando.

Natsuno me olhou impaciente e disse devagar:

— Ele é um nerd.

Nunca me ocorreu que ele poderia ser do tipo de cara que desprezava as pessoas sem se importar com seus sentimentos. Eu tinha um amigo em Belém que sofrera o mesmo tipo de preconceito que o Kai estava sofrendo, e eu via de perto o quanto era difícil para ele.

— Ele é um ser humano, cara, assim como eu e você!

— Os nerds não jogam bola, Dio. — Natsuno suspirou. — Eles servem apenas para estudar e para esses jogos de raciocínio.

— Isso é preconceito.

— Isso é a realidade — replicou ele, voltando a comer seu cachorro-quente.

Olhei para os outros dois garotos: Pedro e Jhou. Por mais que não haviam falado nada até o momento, era notório que o Pedro estava do meu lado e o Jhou concordava com o Natsuno. Por um lado, eu não tirava a razão deles.

— Eu sei que é difícil de aceitar, Natsuno, mas pô, você nem imagina o que o Kai está sentindo. Eu percebi que ele queria muito se reunir com a gente, talvez porque se sinta sozinho. Você não sabe o quanto isso é zuado.

— E você sabe?

De fato, talvez não soubesse mesmo, mas tinha uma ideia. Meu maior medo antes da bendita mudança era de não fazer amigos em Honorário, o que felizmente não aconteceu. Conheci boas pessoas em menos de uma semana. O Kai, ao que parecia, não tinha ninguém para lhe fazer companhia e, considerando que ele estava sentado sozinho até mesmo no refeitório, deduzi que sua vida era imersa em solidão.

Eu precisava defendê-lo.

— A solidão é um dos sentimentos mais chatos que existe — afirmei, olhando nos olhos de um Natsuno impaciente que tinha a atenção voltada para o seu lanche. — Você não sabe como é porque tem um monte de amigos. O Kai não. Imagine um mundo onde você não tem ninguém por perto; um mundo onde você é zombado o tempo todo, excluído o tempo todo! — Ele finalmente me olhou, porém de cara fechada. — Tenta imaginar, Natsuno, um mundo onde não há quem te proteja. Um mundo onde você é negado e as pessoas te evitam. Onde só há sofrimento devido ao julgamento de pessoas que não reconhecem suas qualidades por causa da sua timidez. Ou melhor, veem suas qualidades como se fossem coisas idiotas!

Eu não sabia ao certo se era por isso mesmo que o Kai passava, contudo, era pelo que eu vi o meu amigo de Belém passar. O nome dele era Henrique, um garoto branquelo de olhos claros. Tinha um talento natural para desenhos e escrevia histórias também. Eu ficava encantado quando via seus mangás, e sempre o motivei a procurar uma editora. Na escola, no entanto, ele era desprezado pelos outros garotos. Chamavam-no de albino por causa da cor de sua pele, fato que o abatia em proporção gigantesca. Inúmeras vezes eu arranjei encrenca por defendê-lo, até ele tomar uma atitude e começar a se defender sozinho. A partir daí o garoto conseguiu se soltar mais e fazer mais amigos.

Com o Kai deveria ser quase a mesma coisa. Ele com certeza possuía suas qualidades “ocultas”, escondidas por medo de ganhar mais desprezo. Isso era o tipo de coisa que eu odiava.

Percebi a expressão no rosto do Natsuno mudar. Ele parecia estar refletindo sobre sua atitude. Eu só não entendi por que percebeu que estava errado tão rápido.

— Eu... prometo que vou pedir desculpas a ele — disse baixo, seus olhos azul-escuros voltados para a mesa de madeira. — Você tem razão, maninho. Eu acho que peguei pesado.

Ouvir aquilo fez eu me sentir satisfeito, embora ainda não entendesse a rápida mudança de atitude. Talvez Natsuno possuísse um coração de manteiga, afinal.

Comemos o resto do lanche em silêncio, e notei um Natsuno pensativo, o que fez eu me perguntar se havia falado algo demais.

Já na sala, vi Natsuno pedir desculpas ao Kai, que aceitou de boa, alegando que já era acostumado com aquele tipo de coisa e que nem se importava mais. Ficou nítido que ele disfarçava sua mágoa.

Natsuno voltou ao seu lugar e ficou no mundo da lua, me trazendo uma certa desconfiança. Até tentei puxar assunto, comentando sobre o campeonato da escola e um filme que passaria na televisão, mas ele permaneceu quieto até a hora de ir embora.

Natsuno não nos esperou, sendo um dos primeiros a sair da sala, apressado. Por algum motivo eu senti que ele queria ficar sozinho, então respeitei.

— O que houve com ele? — perguntei ao Pedro e ao Jhou que andavam comigo pelo corredor movimentado.

— Natsuno nunca te contou sua história? — estranhou Pedro.

— Ele só disse que o pai é policial e que mora com a avó. Por quê?

— Bom, eu acho que você tocou na ferida dele. Porque o Natsuno também se sente sozinho.

Pensando nas brincadeiras e ironias do Natsuno, achei impossível acreditar naquilo. Então me ocorreu que ele nunca comentou sobre a mãe.

— Ele perdeu a mãe quando tinha quatro anos de idade — explicou Pedro —, e o pai é um pouco ausente por conta do trabalho. Por isso ele mora com a avó. Além disso, ano passado o Natsuno perdeu dois grandes amigos num único acidente, no qual somente ele sobreviveu. 

Por essa eu não esperava. Fiquei sem palavras e senti uma pena profunda do meu amigo.

        

Depois do almoço, minha mãe e eu fizemos as compras no mercado que havia perto da nossa casa. Em nenhum momento eu consegui me animar, pensando não só na história do Natsuno, como também na solidão que eu percebi nos olhos do Ricardo — ou Riku, como ele mesmo preferia — quando o vi pela primeira vez. O Jhou havia dito que ele perdera os pais num acidente de carro e imaginei o quanto ele se sentia sozinho; e eu pensando que deixar os meus amigos de infância para trás era a pior coisa do mundo.

Cheguei em casa e assisti a um episódio de Prison Break, depois decidi ir ao parque, ver como estava o movimento. Minha mãe havia saído momentos antes, dizendo que passaria no salão de beleza — afinal, o meu pai viria nos visitar —, e me perguntei se ela também não se sentia sozinha, já que também não conhecia ninguém na nova cidade.

Então o meu coração se alegrou, quando notei a Zoe sentada no banco que eu já estava me acostumando a ficar. Fazia dias que eu não a encontrava. Ao ver seus brilhantes olhos esverdeados, as palavras pareciam ter sumido da minha mente.

— Oi — disse ela, sorrindo. — Pode se sentar, se quiser.

Cocei a cabeça sem jeito. Aqueles olhos eram encantadores. Cintilavam com uma paz profunda que simplesmente tranquilizava minhas preocupações. Claro que eu não tive coragem de falar isso em voz alta. Apenas me sentei.

E, como havia acontecido da outra vez, ficamos um bom tempo em silêncio. O engraçado é que, quando se está nervoso, pequenas coisas chamam a atenção: como os pássaros voando perto da árvore do outro lado da quadra, os rapazes gritando enquanto jogavam bola, o sol sendo coberto parcialmente por uma nuvem.

Mais uma vez, foi a Zoe quem iniciou a conversa:

— Preocupado com alguma coisa?

“Com muitas” era o que eu queria dizer, pensando nos últimos dias. Acabei respondendo:

— O de sempre.

— Ah, sim. Se quiser, pode se abrir comigo. Eu não mordo. Às vezes é bom desabafar.

Forcei um sorriso, mas percebi que ela estava certa. Eu não tinha ninguém para conversar, por isso estava guardando tudo para mim. Uma hora iria explodir.

— Hoje eu estava refletindo sobre a solidão — decidi dizer, fitando o jogo de futebol sem nenhum interesse, apenas pensando na história do Natsuno. — Sabe, é tão complicado quando não temos quem mais amamos por perto. Acredito que seja difícil perder um pai ou uma mãe.

— Sem dúvida — respondeu Zoe, muito tranquila. — Eu falo isso por experiência própria. Mas... por que essa reflexão? É a mudança de cidade que está te deixando assim, tão pensativo?

— Também. Mas hoje eu percebi que as coisas poderiam ser piores. Um amigo meu perdeu a mãe quando ainda era criança e apesar disso ele é um cara bem extrovertido. Discutimos hoje por causa de uma atitude chata que ele tomou, e acabei tocando na ferida. Foi duro vê-lo daquela forma. Mas sabe, eu nem sabia sobre a mãe dele! Nunca perguntei, já que ele está sempre alegre.

— Pode ser que ele use essa personalidade alegre para disfarçar o que sente. Não é algo tão raro assim. É difícil saber o que se passa no coração de uma pessoa, especialmente quando você acaba de conhecê-la. Tente ajudá-lo.

No momento em que Zoe sorriu, encontrei-me encarando seus olhos mais uma vez, encantado com o brilho aconchegante que eles transmitiam.

E então pensei nos outros dois garotos: Riku e Kai. Eu não tinha dúvidas de que ambos se sentiam só, mas interessante era que cada um lidava com isso de uma forma diferente: Riku era frio e arrogante, enquanto o pobre Kai era apenas um garoto desajeitado, que tinha medo de se expor, assim como o Henrique, meu amigo de infância que também passou por isso.

No final das contas, notei que o ser humano é mais complicado do que parecia, e que até mesmo a Zoe se sentia só. Ela mesma havia falado, na nossa primeira conversa.

— A minha sorte é que agora eu tenho você — deixei escapar, sem perceber o que havia dito, deixando Zoe encabulada. Mas ela sorriu e disse:

— Parece que você está confiando mais em mim. Isso é bom.

Desviei o olhar para a quadra, sem jeito. Minhas bochechas queimavam, e eu não sabia o que dizer.

“Eu vou dar só um aviso: não entre no meu caminho” a voz daquele grandalhão soou na minha mente mais uma vez, fazendo-me lembrar da cena do banheiro. Por consequência, acabei recordando da conversa do Natsuno com o pai por telefone, mencionando sobre mim e sobre... vampiros.

Vampiros...

Numa explosão de lembranças, pensei nos olhos vermelhos de todas aquelas pessoas da escola: os três valentões, o professor de História, o Pedro e o diretor. As sombras dos meus pesadelos também vieram à minha mente, sobretudo a do único que teve a presença de uma sombra de olhos verdes.

Levantei do banco num impulso e, olhando para a Zoe, senti um medo enorme tomando conta do meu corpo. Aqueles olhos que tanto me encantavam agora me deixavam apavorado, pois eram os mesmos olhos! Sem entender, ela também ficou de pé.

— Diogo, o que foi?

Zoe ficou espantada, e fez menção de me tocar. Recuei alguns passos sem parar de fitar os seus olhos. Um calafrio percorreu o meu corpo.

— Não é nada... — falei com o coração acelerado. Decidi que precisava ir embora. Já estava enlouquecendo!

— Conta pra mim o que aconteceu — suplicou a garota, ainda assustada. — Por que está agindo assim?

Pensei na sombra colocando a mão na minha cabeça. Minha cabeça começou a doer. Forcei para não gemer de dor, o que parecia impossível, portanto, eu disse tchau à Zoe muito rápido e fui embora, deixando-a sem entender. Eu só precisava de um tempo.

Cheguei em casa e corri para o chuveiro. Somente a água quente caindo sobre o meu corpo conseguiu me acalmar, fazendo-me perceber a idiotice que havia feito com a garota. Aquela mudança de cidade não estava mesmo me fazendo bem.

O banho durou cerca de dez minutos. Após vestir a roupa, desci à cozinha sentindo um cheiro maravilhoso. Quando meus olhos encontraram a minha mãe, fiquei de boca aberta.

— Mãe? É você mesmo?

Ela sorriu.

Minha mãe estava linda embora se vestisse de uma forma simples. Trajava um vestido longo preto de alças finas que moldava perfeitamente seu corpo atlético e combinava com seus olhos. Minha mãe não era feia, quero que fique bem claro. Acontece que dona Sara não se arrumava com frequência, tampouco despertava a atenção dos outros homens — o que era bom, já que era casada com o meu pai. Mas, dessa vez, ela havia se superado.

Em cima da mesa, havia tudo e mais um pouco: arroz de forno, feijoada, frango à milanesa, salada, macarrão ao molho, farofa temperada. Era tanta coisa... Claro que o meu pai comia feito um leão, mas aquilo era exagero.

— Como foi o seu encontro? — perguntou ela, ajeitando os pratos na mesa.

— Encontro? Que encontro?

Ela me olhou com um sorriso que eu conhecia muito bem e disse:

— Vi você com uma menina no parque. É a sua nova namorada?

— Ela... é só uma nova amiga — falei nervoso. Quando minha mãe fez menção de dizer mais alguma coisa, a campainha soou.

— É ele! — exclamou ansiosa.

Corri para o portão e o abri. Parado na calçada feito um sargento militar, com um sorriso discreto e um olhar que transmitia pura inteligência, lá estava o meu pai.

— Cheguei atrasado?

Tony Kido me deu um abraço apertado, como sempre fazia.

— Chegou na hora certa — respondi. — Pensei que não ia acertar a casa.

Ele riu.

— Você cresceu alguns centímetros. E o seu cabelo está maior. Tá precisando de grana pra ir ao cabeleireiro?

— Você não perde a mania de me zoar, né coroa?

Também ri. Embora ficássemos tanto tempo distantes um do outro, meu pai e eu possuíamos sempre a mesma aproximação. Por ser alto e musculoso, ele tinha uma postura rígida e costumava vestir roupas escuras, entretanto, era um homem simpático e honesto. Sua barba rala o fazia parecer mais novo, por mais estranho que isso soe, e seu cabelo, apesar de menos volumoso que o meu, tinha a mesma característica bizarra de toda a família: era escuro, só que pontas castanhas demarcavam as mechas. Os fios brancos também faziam parte, e sua pele era bronzeada como se meu pai morasse na praia.

No momento, Tony Kido vestia um casaco preto e calças jeans escuras, combinação que faria qualquer um confundi-lo com um agente da polícia. Num dos dedos da mão esquerda, a aliança dourada de casamento, semelhante a que minha mãe usava (óbvio) e que ele não tirava por nada, assim como não tirava a corrente prateada de seu pescoço. Uma corrente que ele tinha desde que eu me entendia por gente. Ela reluzia até mesmo à noite e combinava com sua camisa branca por baixo do casaco. Juro que ele carregava a corrente para todos os lugares: pizzaria, parque de diversões, boliche, shopping e, acredite ou não, até mesmo na praia. Agora o porquê, eu não fazia ideia. A única coisa que sabia era que essa corrente era um presente — ou uma herança — de um falecido amigo dele.

Minha mãe surgiu de repente e o envolveu num abraço demorado. Virei o rosto quando eles se beijaram, e então meu pai disse:

— Como você está linda, Sara!

— Cara, você tinha que ver o quanto ela estava ansiosa pra te ver — delatei, meio que me vingando. Tony e eu demos o nosso típico olhar e nos divertimos quando minha mãe reclamou:

— Filho!

— Que foi, mãe? Não é verdade? — Eu dei de ombros, notando que ela estava vermelha. Meu pai apenas deu uma risada divertida.

E aquele foi o melhor jantar dos últimos três meses.

 

A temperatura havia caído de maneira drástica, ou talvez a sensação de frio fosse maior por haver uma floresta nos fundos da minha casa. De qualquer jeito, fechei a janela do meu quarto antes de me deitar e tentei o máximo possível não pensar nas coisas bizarras dos últimos dias. Alguma coisa não estava certa. Adormeci rapidamente e, quando dei por mim, já estava dentro de outro sonho que, a princípio, pensei ser um sonho comum.

Como eu disse: pensei.

Minha mãe sorria enquanto me servia com um copo de suco, já que estávamos reunidos num pequeno piquenique no gramado do parque do meu bairro. Meu pai tinha um pedaço de bolo nas mãos. Vestia uma roupa mais leve que o normal: camisa branca e bermuda jeans. E sorria bastante.

O sol escaldante iluminava cada parte da praça com alegria — uma alegria que logo teve fim. Eu não conseguia pronunciar nada, diferente dos meus pais, que continuavam conversando como se eu sequer estivesse por perto, sorridentes e satisfeitos, como um casal que havia acabado de se conhecer.

— Somos só nós dois, meu amor, e mais ninguém — disse minha mãe. — Sem filhos, do jeito que sempre queríamos.

— Perfeito — concordou meu pai. — Sem preocupações, chateações, sem ninguém para atrapalhar as nossas vidas.

Os dois sorriram um para o outro.

E eu não conseguia entender nada. Pensei ser alguma brincadeira, mas eles realmente não me notavam, fazendo-me sentir um aperto muito forte no peito. Meus pais estavam alegres, felizes. Eu sequer participava dessa felicidade. Então as lágrimas começaram a descer pelo meu rosto sem controle.

Algum tipo de energia começou a percorrer meu sangue. Um sentimento de tristeza aumentava dentro de mim; um sentimento forte, amargurado. Quando menos percebi, estava com uma espada nas mãos.

“De onde saiu essa espada estranha?” eu me perguntei, mas logo a dúvida se transformou em ódio. Apertei forte o cabo preto e ergui a lâmina vermelha, que parecia refletir a luz do sol para todos os lados, transmitindo uma sensação maligna.

E a desci contra os meus pais, cortando-os na horizontal. Até tentei gritar para o meu eu do sonho não fazer aquilo, mas já era tarde — a lâmina passou através do corpo dos dois com agressividade, espalhando sangue por todo o gramado. 

Acordei dando um salto da cama, caindo de bruços no chão. Meu corpo parecia querer transbordar adrenalina e, talvez por conta disso, eu não senti dor alguma, embora estivesse tonto. Minha mente girava enquanto eu tentava focar a visão no quarto, sentindo uma presença diferente, e o grito do meu pai pareceu me despertar.

— Diogo!

Se era ele mesmo ou apenas uma voz na minha cabeça, era difícil saber. Minha cabeça palpitava e os meus olhos ardiam — e então consegui distinguir uma pessoa no meu quarto, entre a cama e a janela, com olhos vermelhos cravados em mim.

Ele se virou e pulou sobre a janela. Levantei ignorando a tontura e o segui, pestanejando e cambaleando. Olhei lá para baixo e consegui ver o estranho mergulhando na floresta, aparentemente desesperado.

Eu não poderia deixá-lo fugir.

As dores e a tontura foram embora de forma súbita quando pulei. A adrenalina do meu corpo estava tão poderosa que eu sentia que poderia fazer qualquer coisa, portanto, não tive problemas ao aterrissar no gramado dos fundos da minha casa. Corri na direção da floresta, seguindo o sujeito enquanto desviava de alguns arbustos, tentando não tropeçar em algum tronco perdido.

Precisava saber quem era o filho da mãe — suspeitava que era a mesma pessoa que andava me vigiando em todos os lugares e, de uma forma que não sabia explicar, era o motivo dos meus pesadelos. Ou poderia ser apenas um ladrão mesmo.

— Diogo! — tornei a ouvir a voz do meu pai, tendo certeza que não era coisa da minha cabeça, mas não ousei olhar para trás. Qualquer descuido e eu poderia perder o cara de vista, ou até mesmo tropeçar em alguma coisa.

A floresta ficou densa. Suas árvores tinham os troncos grossos e galhos baixos, dificultando ainda mais a corrida. O único ruído possível de ouvir era o dos grilos ao redor e o das folhas pelas quais eu e o sujeito pisávamos. Apesar de o ambiente estar escuro, alguma coisa me permitia enxergar, mesmo que de maneira parcial, portanto conseguia saltar por sobre as raízes com facilidade. Nem parei para pensar que pudesse haver algum animal silvestre por aquelas bandas.

Desviei de um tronco e por pouco não perco o equilíbrio, fazendo o meu coração acelerar. Meu pai ainda gritava por meu nome, mas eu não podia parar. Estava alcançando o estranho. O meu corpo parecia quente. Eu consegui identificá-lo!

Embora estivesse vendo-o apenas de costas, ele vestia o mesmo terno do outro dia e tinha o mesmo penteado. Eu estava perseguindo o Pacheco, diretor do colégio Martins, não havia dúvidas, que abria passagem por entre os galhos e avançava com desespero. Quando eu já estava perto o suficiente, tentei um movimento ousado: joguei meu corpo em sua direção e o agarrei pelas costas, caindo sobre ele no chão de barro da clareira, confirmando minha suspeita.

— Peguei você! — falei.

O diretor, no entanto, se levantou com facilidade, fazendo-me voar alguns metros e cair de qualquer jeito no chão. No momento em que o fitei, senti um calafrio que nunca havia sentido antes, encarando as suas íris cor de sangue como se estivesse mergulhando num profundo rio sangrento.

Eu não conseguia me mover, observando-o gargalhar. Ele tinha uma aparência horrível, totalmente diferente de quando apareceu no meio da briga no outro dia. Sua pele era pálida como papel se destacando na escuridão, contrastando com seus olhos carmesins. O homem sério e inteligente parecia, agora, um demônio psicopata, que sorria com dentes pontiagudos. Possuía, agora, sobrancelhas finas e olhos fundos, arregalados feito bolas de pingue-pongue. As maçãs de seu rosto pareciam inchadas, deixando-o com uma aparência esquelética.

— Foi mais fácil do que eu pensei — sibilou ele, lambendo o lábio inferior e fincando seus olhos nos meus, aparentemente se divertindo com o meu pavor.

— O-o que você... é? — gaguejei, sentindo meus braços cada vez mais trêmulos. Minha cabeça voltava a doer, enquanto eu encarava aquelas íris escarlates. 

— Não pude controlar a minha tentação… — disse o diretor, sem parar de lamber os lábios, agora me analisando dos pés à cabeça com uma frieza assustadora. — Quero você!

O demônio abriu sua boca e tornou a expor seus caninos, dentes enormes e afiados que se assemelhavam a lâminas. O problema era que isso não o deixava mais bonito — muito pelo contrário.

Recuei alguns centímetros e o observei saltar na minha direção, rápido como um felino na intenção de me dar uma mordida! Só deu tempo de eu fechar os olhos e me encolher, torcendo para aquilo ser apenas mais um daqueles pesadelos.

— AAAAAAAAARGH!!!!! — Sua voz maligna soou muito próximo ao meu ouvido, arrepiando cada pelo do meu corpo, confundindo ainda mais a minha mente.

Só percebi que não estava morto quando notei que meu coração ainda batia — tão forte que pensei que meu peito iria explodir. Abri os olhos hesitante e o vi bem na minha frente, partido em dois, esbanjando um sangue escuro no chão de terra numa cena nojenta: era possível ver as suas tripas!

O diretor Pacheco estava morto, com os olhos arregalados. Um corte vertical preciso o abriu da cabeça ao cóccix, e o meu estômago embrulhou vendo os seus órgãos expostos numa mistura de ossos e sangue.

Eu estava confuso e apavorado. Notei minhas pernas trêmulas ao ficar de pé. Virei-me num susto após perceber que havia alguém do meu lado — um homem robusto de costas para mim, vestindo um pijama vermelho listrado e empunhando uma enorme espada de lâmina ensanguentada.

— Desculpe-me por ter chegado atrasado, filho — disse ele. — Acho que estou fora de forma.

Meu pai deu meia-volta e baixou sua espada. Encarou sério as duas metades do corpo que um dia fora o diretor da minha escola.

Minha mente parecia não querer processar o que meus olhos estavam vendo. Pisquei várias vezes, esperançoso de que aquilo fosse um mero pesadelo. Mas parecia a mais pura realidade. Foi difícil fazer com que as palavras voltassem à minha boca. E, quando voltaram, perguntei:

— Pai, o que foi isso? Você poderia, hã, tipo assim, me explicar... o que está acontecendo aqui?!

Eu definitivamente estava precisando de um psicólogo. E dos melhores.



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