Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 2: Novos amigos e novos inimigos

Uma coisa que eu notei durante minha ida para o segundo dia de aula: poucas pessoas do meu bairro estudavam no colégio Martins. Os que estudavam preferiam pegar um ônibus a andar apenas alguns quarteirões, talvez um quilômetro ou mais.

Preguiçosos.

E tranquila foi a minha caminhada, embora eu olhasse para trás a cada segundo para ver se descobria quem era o indivíduo que andava me seguindo.

Quando cheguei ao colégio, me livrando daquela sensação desconfortável, notei que Natsuno estava sentado em um dos bancos de pedra da praça ao lado de outros dois garotos que não me pareceram familiares. Assim que me viram, os três se levantaram e se aproximaram de mim, fazendo-me perguntar mentalmente se eram seus guarda-costas.

— Fala, Dio! Tranquilo?

— E aí, Natsuno. — Apesar de ainda um pouco desconfiado pelo dia anterior, apertei sua mão. Não era difícil perceber que ele era um cara bem descontraído. — Tranquilo, e você?

— Tudo normal. Maninho, esses dois são o Jhou e o Pedro.

Jhou, o grandalhão musculoso que usava bermuda, tinha pele negra e cabelo crespo muito baixo. Seus enormes olhos, acreditem, eram de um verde-esmeralda vivo e deslumbrante. Ele me cumprimentou e abriu um enorme sorriso.

— Beleza? — E apertou minha mão tão forte que quase gritei. — Meu nome é Jhonatan, mas todo mundo me chama de Jhou

— Hã... certo.

O sinal de entrada tocou e começamos a caminhar.

— O Natsuno nos falou muito sobre você — comentou o outro, um garoto de cabelo claro, curto e bem penteado. Ele era branco e tinha olhos azuis. No momento em que encontrei seu olhar, eu poderia jurar que vi um brilho vermelho faiscar em seus olhos. Ou ainda estava com sono o suficiente para estar alucinando.

— Falou, é? Sobre o quê?

— Eu contei que você é novo na cidade — disse Natsuno. — Que você se sente desconfortável ainda e decidimos que não deixaremos nenhum dos valentões de ontem te bater.

Eu o interrompi, já subindo as escadas:

— Natsuno, eu sei me defender muito bem. É sério, cara, não preciso de ajuda.

Chegamos ao corredor junto à multidão de alunos. Natsuno ia dizendo algo quando nos deparamos com Abigail, a inspetora da escola. Sua cara era tão horrível e ameaçadora que eu me assustei no mesmo instante!

— Por que pararam?! — Ela nos fuzilou com um olhar assassino, acompanhado de uma terrível voz grave para uma mulher.

— Éh... estamos indo para a sala agora... senhorita Abigail — foi Natsuno quem respondeu, gaguejando.

— Já deveriam estar lá!

— Mas acabou de bater o sinal! — falei indignado; e me arrependi quando ela pousou verdadeiros olhos demoníacos em mim. — Senhorita Abigail... — tentei consertar.

— Estou de olho em vocês, seus moleques! Para a sala, AGORA!!

Sem protestar, dobramos o corredor e corremos para a sala 2, todos os quatro.

— Essa mulher é estranha — Pedro ainda comentou, o menos assustado do grupo; tivemos que concordar.

E lá estava ela, na entrada da sala, ainda mais linda que no dia anterior. Sophia era elegante. Seus longos cabelos escuros desciam por suas costas em camadas bem arrumadas. Sua pele branca parecia ainda mais macia, a maquiagem muito leve combinava perfeitamente com seus olhos castanhos. E seu sorriso... Eu não tinha palavras para descrever tanta beleza.

Sem dúvida, uma menina atraente. Tão delicada quanto apaixonante. Logo comecei a me perguntar se ela havia me jogado algum encanto, porque eu estava nas nuvens.

Eu a cumprimentei com um “oi” e ela sorriu, simpática, deixando-me sem jeito — embora fosse nítida uma leve timidez em seu rosto, ou talvez fosse impressão minha.

— Você tá parecendo um cara apaixonado — ironizou Natsuno.

— Apaixonado até demais — riu o grandalhão Jhou, depois murmurou de fome.

A carteira que eu havia tomado como assento ficava perto da janela, bem atrás da de Natsuno; Pedro e Jhou se sentaram ao nosso lado. Sophia sentava do outro lado da sala com suas amigas, perto da porta, encostada à parede. Fiquei observando-as conversar meio paralisado, analisando cada detalhe de seu rosto. Já estava me sentindo um idiota quando o professor entrou na sala olhando diretamente para mim.

O que me chamou a atenção.

Senti um calor percorrer o meu sangue.

Não me lembro de tê-lo visto antes, mas já o vira antes. Em algum lugar, eu só precisava me lembrar.

Ele se sentou e disse:

— Bom dia, turma! — Todos devolveram o “bom dia” e ele se apresentou: — Me chamo Paulo Gomes e serei seu professor de História durante o ano letivo.

Tentei ignorar, mas era impossível não reparar em seu narigão de batata e no bigode grosso e reto. Parecia um daqueles personagens de soldados dos anos 70, uma aparência tão rígida que o fazia parecer um maníaco por política e ditadura.

Uma garota que sentava no centro da sala levantou a mão e perguntou:

— Mas não era o professor Gilberto?

— É verdade — concordou uma morena de Black Power, uma das amigas da Sophia. — Inclusive ele veio ontem.

Acabei notando que a sala estava mais cheia que no dia anterior. Os únicos lugares que estavam vagos eram os dos fundos das fileiras do meio.

— Vocês têm razão — disse o professor. — Mas aconteceu uma coisa horrível com o Gilberto, não quero nem comentar.

Senti que a frase saiu com frieza, e um segundo arrepio tocou a minha espinha.

Paulo deu uma leve olhada para mim e, por um instante, suas íris tomaram um tom completo de carmesim. “Impressão minha” pensei, tentando acalmar um pavor que tomava conta do meu peito. “Devo ter comido algo estragado.”

— Você tá pálido, cara — observou Natsuno me encarando.

— E bota pálido nisso — disse Jhou, arqueando uma sobrancelha. — Parece até que viu um fantasma.

Tentei ignorar os comentários. Realmente eu estava assustado.

O professor encerrou a apresentação e deu início à aula, mandando-nos copiar um texto enorme do livro didático que todos os alunos haviam recebido antes do início das aulas. Como ainda não o tinha, pedi sua permissão para que me deixasse copiar do Natsuno. Paulo me fuzilou com um olhar intimidador e disse que ‘não’ tão severamente que toda a sala olhou, inclusive a Sophia.

Dei de ombros. Não faria questão.

No fim da aula, ele pediu para que todos levassem os cadernos à sua mesa. Fui o único que ficou com a folha em branco, sem a cópia do texto escrita, portanto, foi marcado um zero enorme no meu caderno em caneta vermelha. Trinquei os dentes, irritado com a injustiça, mas voltei ao meu lugar sem falar nada. Natsuno estava tão ofendido quanto eu. Disse palavras de conforto, como:

— O ano tá começando agora, maninho, relaxa, hoje ainda é dia nove de fevereiro. Dá pra recuperar a nota de boa até dezembro.

O problema não era aquele. Na verdade, eu nem me importava com a nota. O motivo da minha raiva era a forma que a recebi. Por sorte, as outras duas aulas antes do intervalo foram tranquilas.

 

No refeitório, notei Abigail olhando para nós quatro parecendo desconfiar de algo, como se fôssemos traficantes de drogas. Chegava a ser desconfortável e engraçado ao mesmo tempo.

No nosso grupo, todos comiam de forma educada, a não ser o Jhou. Sua refeição valia pela minha, a do Natsuno e a do Pedro juntas. Sem falar que ele comia muito rápido, quase sem respirar.

Tocou a sineta e voltamos para a sala. Restavam ainda três aulas antes de irmos embora.

Na aula de Português, tivemos que copiar um texto que a professora escreveu no quadro negro acerca dos diferentes dialetos que variavam de região para região do nosso país.

Em Geografia, respondemos perguntas básicas de assuntos que aprendemos nos anos anteriores, meio que uma recapitulação para nos preparar para o ano letivo. Quem não sabe que Palmas é a capital do Tocantins? (Bom, nessa o Pedro teve que me ajudar).

Biologia foi a última aula, uma matéria que eu odiava. Não entendia por que precisava saber sobre o ciclo de vida de uma planta ou algo do tipo.

A aula estava tão entediante que quase pulei pela janela. Natsuno jogava escondido em seu celular, enquanto notei um Pedro concentrado e um Jhou babando enquanto dormia. O restante da sala conversava bastante, ignorando a professora, que tentava explicar sua matéria. Os mais bagunceiros eram os garotos que sentavam no centro da sala. Provavelmente o grupo dos populares: meninos e meninas que se vestiam bem e achavam que, graças a isso, eram os destaques da escola.

Nem me importei. Meu olhar insistia em pousar em outra pessoa, mesmo eu tentando disfarçar. Sophia prestava atenção na professora de forma graciosa, como se gostasse mesmo de Biologia. Não dizem que os opostos se atraem? Talvez aquilo fosse apenas mais uma prova.

Enfim bateu a sineta da escola, dando fim à enorme e sonolenta maré de tédio. Arrumei minhas coisas e, acompanhado por meus colegas de sala, desci as escadas. Despedi-me de Natsuno, Jhou e Pedro. Depois, aproveitando a oportunidade, aproximei-me de Sophia saindo do colégio,  dirigindo-se a um carro preto estacionado.

Quando cheguei perto dela, perguntei:

— Você mora muito longe daqui?

Eu sei que era uma idiotice uma pergunta daquelas, mas, poxa, não pensei em mais nada naquela hora.

E me surpreendi quando ela parou, virou-se para mim e respondeu:

— Não muito, mas o meu pai insiste que eu vá e volte de carro. Ele diz que é por segurança.

— Entendo. — A julgar pela vergonha que estava sentindo e a sensação fervente nas bochechas, eu com certeza estava vermelho. — Então, hã... é só isso. Nos vemos amanhã, então?

— Sim, eu acho.

— Tchau.

— Tchau.

Ela entrou no veículo, sentou-se em um dos bancos de trás e deu um último tchau antes de fechar a porta. O motorista partiu.

Fiquei observando o carro entrar na avenida, pensando no lindo rosto daquela garota; na sua voz, no seu jeito... Nunca havia sentido algo assim por ninguém antes. Eu precisava saber o que era.

 

O caminho para casa foi um pouco angustiante, já que eu continuava com a impressão de estar sendo observado o tempo todo. Se fosse um ladrão, ele ficaria decepcionado. Eu não tinha celular.

Após o almoço, decidi passar a tarde no tal parque que minha mãe mencionara, localizado a duas quadras a oeste da minha casa. Um parque composto por uma praça bem ampla que tomava um quarteirão por completo. Casas eram substituídas por um gramado belo e bem aparado. Na parte onde havia brinquedos — escorregador, trepa-trepa, gangorra, balanço — algumas crianças acompanhadas dos pais se divertiam. Mais à frente, já na quadra, garotos jogavam bola.

Sentei-me num dos bancos de madeira perto da cerca de arame que separava a quadra da pista para ciclistas — que contornava a praça inteira fazendo variadas curvas — e fiquei assistindo às partidas de futsal. Até me chamaram para jogar também, só que eu não aceitei; não estava com nem um pouco de vontade, nenhum entusiasmo. Sentia muita falta dos meus amigos de Belém, já que os conhecia desde pequeno. Era como se fôssemos uma família. Uma família que eu jamais tive.

Não tinha primos e nem tios por perto, já que a família do meu pai morava em São Paulo. Os pais adotivos da minha mãe (isso mesmo, ela foi adotada) tinham alguns irmãos espalhados pelo norte do país, e tio Michael ainda não tinha filhos. O que fazia com que eu tivesse uma aproximação maior com a turma que morava próximo ao meu antigo lar. Aproximação que foi arruinada após a maldita mudança...

A esperança que restava era eu fazer amizade com o Natsuno e os outros dois, embora fossem pessoas estranhas (e acabei me lembrando que havia me esquecido de interrogar Natsuno sobre sua ligação misteriosa). Pelo menos agora eu conhecia uma garota interessante.

Um sujeito acabou me chamando a atenção. Ele também estava assistindo às partidas, sentado em outro banco a poucos metros. Seu rosto transmitia uma profunda expressão de tranquilidade. Seus cabelos eram bonitos, preciso admitir; escuros e azulados, caídos até o pescoço, mas a mecha branca na testa era o grande destaque. Ele usava uma camiseta regata cinza e tinha uma corrente prateada que brilhava de forma intensa, com um pingente em formato de M que reluzia ainda mais forte.

Por algum motivo, senti que ele também estava solitário. Até pensei em chamá-lo para uma conversa, mas decidi ficar na minha. Talvez sequer tornaria a vê-lo.

Claro que eu estava enganado. No dia seguinte, na sala de aula, quem estava lá, na frente da classe toda?

Pois é, ele mesmo. E a professora — uma mulher esguia, cabelos negros e soltos — o apresentou:

— Bom dia, turma. Esse aqui é o Ricardo Medeiros, seu novo colega de classe. Sejam gentis com ele.

Sem dúvida, era o cara solitário que eu vira no parque, só que uniformizado. Enquanto os outros alunos apenas o olhavam sem nenhum interesse, algo naquele garoto me despertou uma estranha curiosidade. Seu rosto transmitia certa paz, embora seus olhos cinzentos lembrassem as nuvens pesadas de uma tempestade. Mesmo usando a camisa branca da escola, sua corrente prateada estava para fora, com um M que presumi ser a inicial de seu sobrenome: Medeiros.

A professora se sentou em seu lugar e Ricardo caminhou na minha direção, me provocando uma sensação estranha. Seus passos eram leves e silenciosos, como se ele estivesse andando na Lua. Quando chegou perto, apenas passou por mim — me olhando de relance e fazendo o meu coração acelerar, suas íris se tornando amareladas numa fração de segundo.

Pestanejei sem entender.

Ele continuou caminhando e se sentou na última carteira da mesma fileira que a minha, sem tirar o material da mochila e olhando para o lado de fora, obviamente entediado. Mas seus olhos mudando de cor não sairiam da minha mente tão cedo. Ou eu estava enlouquecendo.

— Quem é ele? — perguntou Natsuno, enquanto o restante da sala voltava a fazer barulho. Ninguém respeitava a professora Kátia. Ela escrevia um texto no quadro negro com o título PRECONCEITO RACIAL com uma letra tão feia que me lembrei do meu tio Michael escrevendo.

— Ouvi falar que ele é órfão — comentou Jhou num cochicho. — Veio para Honorário depois que perdeu os pais num acidente horrível! Faz mais de dois anos, pelo que parece.

— Que acidente? — perguntou Pedro.

— Não sei, não me disseram o restante da história.

Fiquei confuso.

Quem não te contou o restante da história, Jhou?

— As meninas lá do meio.

O grandalhão apontou para o grupinho das fofoqueiras no centro da sala, pelo menos cinco meninas que não paravam de conversar em nenhum momento. Como elas sabiam disso tudo, eu não fazia ideia. Apenas tirei minhas coisas da mochila e fiz o máximo de esforço para copiar o texto que a professora escrevia na lousa.

 

No intervalo, enquanto Natsuno, Jhou e Pedro procuravam por alguma vaga no refeitório para nos acomodar, tratei de pegar um lugar na fila do lanche que, graças à nossa rapidez em descer para o pátio, não estava tão cheia.

Os três sujeitos que haviam me encarado dois dias antes passaram perto de mim e fui tomado por um arrepio, ao mesmo tempo em que sentia um calor percorrer o meu sangue. Era uma sensação maligna, familiar. Uma sensação que já estava me irritando.

— Hoje eu tô a fim de bater em alguém — comentou o cara de cabeça raspada.

— Agora que você falou, lembrei que faz tempo que não recebemos os novatos — pirraçou o segundo, o de cabelo loiro e de orelhas grandes. Não era preciso ser um gênio para perceber que tinham a intenção de que eu ouvisse, mas continuei na minha.

Pararam a poucos metros de mim, com o careca tornando a dizer:

— Que tal batermos naquele carinha ali? — Ele apontou na minha direção.

— Não é uma má ideia.

Com isso, os três se aproximaram de mim com olhares melancólicos. Falei, como quem não quer nada:

— Não vou comprar lanche pra vocês. Não adianta insistir.

— Não queremos lanche — disse o loiro das orelhonas.

“Isso eu já sei” pensei em dizer, mas decidi provocar:

— O que querem, então?

Ele sorriu de forma sombria e disse, com olhos cravados em mim:

— Você não vai gostar nadinha de saber.

Eu os encarei. Pensei na minha mãe, indignada em Belém por conta das minhas encrencas. Suspirei.

— Não quero confusão.

Falei a mim mesmo que seria tudo diferente em Honorário.

— E quem disse que pedimos a sua permissão? — O careca chegou mais perto. Seus olhos castanhos carregavam um vasto tom de maldade.

Quando menos percebi, eu estava dentro de um ringue humano. Alunos da fila e do restante do refeitório meio que se organizaram rapidamente para formar um semicírculo, como se fossem acostumados com aquele tipo de coisa. Dentro, eu e os valentões.

— Vamos bater nesse magrelo até ele não aguentar — disse o loiro aos seus companheiros e, pela primeira vez, fitei o do olho riscado, aquele que havia me avisado para não entrar em seu caminho, no banheiro do segundo andar.

“Irônico” pensei. No fim das contas, era ele quem estava no meu encalço, arrumando encrenca.

Os outros dois, assim como ele, eram daquele tipo de caras que participam de gangues de rua, cheios de tatuagens e cicatrizes por todo o rosto, marcas de brigas feias e recentes. O único que tinha uma cicatriz maior, de fato, era o de cabelos castanhos, de longe o mais assustador dos três. E ele não parecia nada amigável.

Dei um passo para trás, sentindo a parede dura em minhas costas. Os grandalhões estavam alguns passos à minha frente, me encarando com malícia no olhar; os outros alunos estavam na expectativa por briga.

O que me restou foi esperar por alguma iniciativa. Sabia que meu momento de paz não duraria muito tempo. Algo na minha pessoa atraía os encrenqueiros da escola. Sempre foi assim. Mas eu treinava artes marciais e sabia me defender muito bem, portanto, não sentia um pingo de medo.

Até que finquei meus olhos nos deles. Fui atingido por um assombro iminente com o que vi.

Por mais que eu pestanejasse com força, a imagem não mudava. Definitivamente, as íris dos folgados tinham um tom avermelhado, algo medonho e sombrio que os deixava ainda mais assustadores! O loiro orelhudo e o cabeça raspada pareciam garotos assassinos prestes a avançar contra mim feito animais ferozes e famintos.

— O que vocês são? — perguntei assustado.

Não era normal uma pessoa ter olhos vermelhos, a não ser que fossem lentes, o que não era o caso. Sem falar que eles não eram os únicos que haviam mudado a cor dos olhos em três dias.

Como resposta, os três sujeitos gargalharam.

— A donzela ficou com medinho? — provocou o careca. — O jogo virou para o nosso lado. Dessa vez, seremos nós os caçadores!

Fiquei sem conseguir me mover enquanto mergulhava naquele mar de sangue. Não sabia dizer o que estava acontecendo comigo. Tentei mexer os braços, mas não obtive sucesso. As pernas também insistiam em desobedecer. Única coisa que eu sentia era o sangue percorrer pelas veias, esquentando, causando uma certa dor interna. Me perguntei se estava imerso num pesadelo.

O valentão da cabeça raspada cessou a risada, gritou alguma ameaça com o punho erguido e o impulsionou na minha direção. Seria impossível tentar uma defesa naquele estado de paralisação. Seu golpe tinha o meu nariz como destino, ou seja, seria um nocaute. Até que:

— Deixem o nosso amigo em paz! — gritou uma voz familiar. No segundo seguinte, Natsuno empurrou algumas pessoas que estavam em seu caminho e pulou para dentro do “ringue”, com o pacato Pedro e o grandalhão Jhou na sua cola.

— Natsuno?

Admito que fiquei surpreso, já me livrando, com alívio, da paralisação. O calvo maluco hesitou quando avistou meus amigos chegando ao meu lado.

Recuou, inseguro. Acho que o fato de o Jhou também ser grandalhão o intimidou.

— Pô, Dio, não precisava demorar tanto pra comprar o nosso lanche! — ironizou Natsuno. Então pousou seus olhos nos grandalhões e fez questão de lembrar: — Eu disse que não deixaríamos esses valentões te bater, não foi? Mas os agradecimentos ficam pra depois.

É, eu tive que concordar.

— Parece que os três patetas estão atacando de novo — Jhou os provocou.

O valentão loiro trincou os dentes e rosnou. O do olho riscado reclamou, com uma fúria que o deixava com um semblante mortal:

— Sempre tem alguém para atrapalhar as coisas!

— Tá nervosinho, Cláudio? — caçoou Natsuno em tom afiado.

— Ah, garotinhos — riu o valentão loiro. — Vocês não sabem com quem estão lidando. — Ele parecia prestes a dar o bote.

O retorno dos meus movimentos fez com que eu me sentisse confiante, e me ocorreu que havia muito tempo que não surgia um grande desafio. Aqueles três poderiam ser uma boa oportunidade. Entrei na brincadeira e disse:

— Acho que com as meninas super poderosas.

A multidão de curiosos caiu na gargalhada. Os três encrenqueiros não pareceram satisfeitos com o deboche. Meu único receio era os meus amigos. Embora Jhou fosse um cara musculoso, Pedro e Natsuno eram tão magros quanto eu. Não dava para imaginá-los entrando naquele tipo de briga. Eu, pelo menos, aprendi a lutar com um faixa preta em karatê.

Cada um dos valentões estalou algumas partes do corpo como: pescoço, braços e ombros. Natsuno apenas deu uns pulos engraçados como aquecimento, o que foi o suficiente para eu notar que ele estava em forma. De fato, uma pancadaria estava prestes a começar.

Alguém que estava no meio da multidão de curiosos gritou:

— BRIGAAA!!

Em seguida, vários outros começaram a gritar em uníssono:

— Briga! Briga! Briga! Briga!...

Eu me sentia um astro do MMA. Aquela era a chance de ganhar a atenção das pessoas e ser visto como um cara descolado. Só precisava derrotar aqueles otários.

No momento em que fizemos menção de partir a uma colisão de ataques, entretanto, uma voz feminina bradou diante da baderna:

— Diogo, não!

Assim como meus amigos, procurei pela dona da voz. Sophia entrava na roda com um olhar preocupado, atraindo a atenção de todos os alunos que estavam por perto.

Cláudio, o sujeito do olho riscado e que havia me barrado no banheiro, repreendeu-a com um olhar assassino:

— Não se meta nisso, pirralha!

Foi incrível como o pátio inteiro ficou em silêncio diante da intromissão. Sophia se mostrou uma menina corajosa (ou ousada) ao se aproximar dos três e advertir:

— Vocês não sentem vergonha de serem babacas?! Querem tanto chamar a atenção, mas não passam de covardes!

Chegava a ser engraçado como os três se sentiam acuados perante sua valentia. Mas então o da cabeça raspada se recompôs e bufou:

— Ninguém aqui pediu a sua opinião!

Então ergueu o punho e tentou atingi-la. Sophia pôs seus braços à frente do corpo numa defesa automática; meu coração disparou; ela seria massacrada pelo brutamontes; eu queria mais do que tudo protegê-la daquele maldito; o golpe acertaria em cheio seus braços delicados; eu já estava lá, bloqueando o enorme punho do filho da mãe como se fosse a coisa mais simples do mundo.

Fez-se um silêncio ainda maior que o anterior. O movimento surpreendeu a todos, principalmente a mim, que demorei um tempo para compreender o que havia acontecido. O olhar no rosto dos meus amigos era de puro espanto, e eu desejei que o refeitório voltasse a gritar, porque ser o centro das atenções era uma coisa que eu odiava.

Mas, apesar de ainda não entender como fizera tal movimento extraordinário e estar morrendo de vergonha, de uma coisa eu tinha a total convicção: não deixaria ninguém tocar em Sophia.



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