Caçador Herdeiro Brasileira

Autor(a): Wesley Arruda

Revisão: Ângela Marta Emídio


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: Um "tranquilo" primeiro dia de aula

Se, por ventura, seu sonho é ser um caçador de vampiros ou algo do tipo, eu logo aviso: não é a melhor profissão de todas, pois você pode acabar se dando mal…

— Eu tô falando pra você. Ele tem mechas castanhas e tem o sobrenome Kido — sussurrava alguém na cabine logo ao lado. — Não, ele não tem anel. Ah, sei lá! Talvez seja a minha chance de deixar de ser um aprendiz. Sim, está. Ele está aqui.

Fiquei estático com a última frase, tomado por um pequeno pavor. Ainda tentava processar a situação enquanto terminava de urinar. A pessoa que pensei que seria um novo amigo (mas que estava tendo uma conversa misteriosa sobre mim com alguém) havia me descoberto, como se os grandalhões me encarando na entrada não fossem o suficiente.

Meu corpo ficou trêmulo. Não entendia o que estava acontecendo.

— É, caiu na mesma sala que eu. Ele está lá agora.

Então compreendi que Natsuno, na verdade, não tinha ciência que eu estava na cabine bem ao seu lado. “Aqui” significava a nossa escola, para meu alívio.

— Eu não sei, coroa — continuou ele —, mas tem vampiros por aqui. E parecem estar atrás dele.

“Esse cara deve estar delirando” acabei concluindo. Ou ensaiando para alguma peça escolar. Decidi que precisava voltar para a sala antes dele, ou seria visto. Porém, quando saí da cabine e fechei a porta, meu sangue gelou ao me deparar com uma muralha. Uma muralha de cara fechada.

Direcionou o punho na minha direção e acertou em cheio a porta atrás de mim, seu braço musculoso esticado ao meu lado enquanto ele me fuzilava com os olhos.

— Eu vou dar só um aviso: não entre no meu caminho.

Era um dos tais grandalhões da entrada. Cabelos castanhos e um corpo atlético, sua marca era uma cicatriz que riscava seu olho esquerdo — um corte branco e profundo.

No mesmo instante, Natsuno emergiu da cabine ao lado e franziu o cenho ao nos encontrar.

— O que é que está havendo aqui? — perguntou. Seu olhar alternava-se entre mim e o grandalhão. — Acho que aqui não é lugar para um... romance escondido.

Você deve estar se perguntando o que era que estava acontecendo. Deve querer saber quem é Natsuno e o tal grandalhão da cicatriz. Talvez queira saber, principalmente, quem eu sou.

Vamos lá, vou recapitular tudo; como fui parar naquela situação esquisita e um tanto constrangedora. Só que, antes de trazer detalhes, preciso deixar um conselho de amigo: se é o seu primeiro dia de aula em uma nova cidade, não encare valentões, não se apaixone pela garota mais popular da escola e não ouça conversas estranhas que envolvam você no banheiro. Guarde isso.

De qualquer forma, eu era o novo aluno da Escola Estadual Roberto Martins, um lugar repleto de pessoas, eu diria, curiosas. Nem foi necessário esperar uma semana para descobrir isso.

Vou explicar melhor a que me refiro nos próximos parágrafos e, depois, tire suas próprias conclusões.

 

Tudo começou no momento em que pisei na esverdeada praça em frente à escola algumas horas antes, na hora da entrada. Fui tomado por uma sensação estranha. Solitário por ter deixado meus amigos de infância para trás, eu agora precisava construir uma nova vida em uma nova cidade, Honorário, localizada no Estado de São Paulo. E logo reparei com o canto dos olhos que havia três alunos jogando olhares discretos na minha direção. Disfarcei olhando para os lados, percebendo que se tratava de grandalhões de aparência intimidadora. Então fiz a coisa mais óbvia que um novato magricela como eu deveria fazer: encarei-os de volta.

Nunca fui de arrumar encrenca, mas também não fazia o meu tipo ceder a opressores. Eu conhecia bem aquele tipo de camaradas.

O cruzamento de olhares durou apenas alguns segundos, pois a sineta da escola soou e os grandalhões desapareceram em meio ao mar de alunos que vestiam a camisa branca padrão da escola.

— Parece que lá vem coisa — falei comigo mesmo.

Lembrei da pequena conversa que tive com minha mãe no café da manhã.

Bom dia, filho, está ansioso para o seu primeiro dia?, perguntou ela, com um sorriso lindo estampado em seu rosto e olhos de carvão fixados em mim. Dona Sara era uma mulher jovem e bonita.

Ah, claro que sim, falei sem conseguir evitar a ironia.

Ignorando meu deboche, ela persistiu:

Tenho certeza que você vai fazer muitos amigos.

Só espero que não queiram me bater.

Não se preocupe, eu sei que vão gostar de você.

Aham. Assim como os valentões da outra escola?

Meu corpo parecia ser um imã para atrair os alunos mais briguentos do colégio. Agora o porquê, era difícil saber, embora eu já estivesse acostumado.

Em Belém, por exemplo, era perseguido de forma constante e mesmo que eu utilizasse minhas habilidades de luta apenas para a defesa, os professores pareciam ver com outros olhos.

Mas eu tinha a melhor mãe do mundo. Muito compreensiva, ela sabia quando eu estava certo ou errado. O único conselho que Sara insistia em me dar era: tente ficar longe de encrencas.

Falei a mim mesmo que não lhe daria trabalho na nova cidade.

Voltando à conversa que tive com minha mãe antes de sair de casa, lembrei de sua resposta para o meu pequeno sarcasmo: “assim como os valentões da outra escola?Ela disse:

Não, assim como os seus amigos da outra escola.

Uma tristeza tornou a preencher o meu peito por lembrar que fui obrigado a deixá-los para trás. Não é fácil romper laços com pessoas que você demorou anos para ganhar a intimidade e a confiança.

Filho, eu sei que você sente falta dos seus amigos e queria ficar lá...

Eu só não consigo entender o porquê dessa mudança repentina. Nós estávamos tão felizes em Belém, não entendo por que tivemos que sair de lá.

Diogo, eu já expliquei mil vezes que o seu pai está aqui a negócios.

Ah, qual é? Precisava mudar a família toda?, Acabei dando uma mordida mais forte que o normal na coitada da torrada. Esses negócios não devem ser tão longos assim!, disse de boca cheia.

Nós não sabemos. Sara desviou o olhar, curvando os lábios.

Subi as escadas e cheguei ao corredor do primeiro andar ainda imerso na pequena conversa. O trabalho do meu pai era um mistério, apesar da aproximação que havia entre nós. Ele sequer deu as caras no dia da nossa mudança, apenas enviou alguns subordinados para nos auxiliar.

— Ei, sai do caminho! — reclamou um aluno.

Como não sabia para onde ir, fiquei parado no meio do corredor. Havia dois caminhos diferentes para se seguir, o que não ajudava muito. Os outros alunos passavam por mim sem sequer me dar atenção. Eu não podia culpá-los, já que estava sem coragem para barrar alguém para pedir ajuda ou, de repente, um mapa. Sempre fui um cara tímido.

E foi aí que uma menina apareceu ao meu lado, para a minha surpresa:

— Está perdido? — perguntou, com um sorriso bonito.

Bonito até demais.

E embora fosse uma garota que não fazia o meu tipo (sempre gostei de morenas do cabelo cacheado), algo nela me chamou a atenção.

A menina era uma típica patricinha: tinha cabelos lisos e escuros que desciam por suas costas em camadas, sua pele era clara e macia e eu confesso que ela tinha um corpo... chamativo, digamos assim. O uniforme escolar ficava perfeito em suas medidas, deixando-a mais linda e atraente. Seu sorriso generoso transmitia uma enorme sinceridade, mas o destaque era seus olhos; eles brilhavam de maneira radiante a ponto de fazer eu me sentir vivo.

Ok, ela era uma patricinha bonita e simpática. Uma patricinha que me deixou sem palavras. Tão sem palavras que ela ainda esperava pela minha resposta, aparentemente estranhando a minha atitude. Consegui recuperar a fala, no entanto, gaguejei feito um tolo:

— É... eu...

— Não sabe qual é a sua sala — sugeriu ela, me olhando com um ar de ironia, como se o fato de eu ficar envergonhado a divertisse.

— Isso — respondi, tentando me mostrar firme. — Sou novo aqui.

— Pode deixar que eu te ajudo.

Ela sorriu mais uma vez.

Pegou o papel que estava na minha mão e leu. Depois disse:

— Que coincidência! É a mesma sala que a minha!

A garota bonita parecia feliz. Por fazer uma caridade, talvez.

— Legal. — Eu senti que fiquei vermelho.

Ela me explicou o caminho e disse:

— Encontro você lá mais tarde. Preciso falar com uma amiga antes. Dentro de alguns minutos começa a aula. — Quando já estava saindo, ainda acrescentou: — E cuidado pra não se perder por aí, Diogo. — E sorriu graciosa, entrando no corredor à direita.

Confesso que não consegui tirar os olhos dela, ainda nas nuvens, tentando entender que sensação estranha foi aquela. Era a primeira vez que sentia algo do tipo. E ela havia gravado o meu nome que estava no papel! 

De repente, um arrepio estranho percorreu o meu corpo.

— Você é um cara de sorte — disse uma voz atrás de mim.

Esse era um garoto meio exótico. Apesar de termos quase a mesma altura, não éramos nada parecidos — com destaque para os seus cabelos roxos, volumosos e desarrumados. Ele vestia o uniforme padrão da escola e seus olhos de um tom azulado escuro eram cativantes. Pelo seu sorriso travesso, deduzi que era um tipo de cara animado e, talvez, sarcástico.

Olhei para ele e pensei ter visto as íris de seus olhos ficando amareladas por um instante, mas logo voltaram ao normal, fazendo-me engolir em seco.

Perguntei:

— De sorte? Por quê?

— A Sophia é muito popular entre os alunos, apesar de ser uma menina certinha e reservada.

“Sophia” pensei. Esse era o nome dela.

— E o que isso tem a ver? — arqueei uma sobrancelha, tentando disfarçar a curiosidade que surgia aos poucos.

— Ela simplesmente é uma mina que não dá bola tão fácil pra ninguém!

O camarada parecia entusiasmado, como se tal fato fosse uma façanha incrível.

— Então você quer dizer que...?

— Ela gostou de você.

— Bobagem — falei, incrédulo. Era muita areia para o meu caminhãozinho. — Eu me chamo Diogo. Diogo Kido. — Estendi a mão, por educação.

— Meu nome é Natsuno Kogori, prazer! — Ele a apertou e sorriu. Foi impossível não perceber a pequena coincidência que havia ali: ambos tínhamos sobrenomes estranhos. Bom, o nome dele também era estranho, então ele estava em vantagem, se é que podemos chamar isso de vantagem.

— Até mais, cara, eu preciso ir pra minha sala — finalizei me justificando.

— Sua sala é a 2, não é?

— Sim. Por quê?

— É a minha também. Vamos?

— Hã, vamos.

Pois é, eu já estava fazendo um novo amigo sem nem mesmo fazer esforço. Devo admitir que sempre tive facilidade no assunto. A questão seria a cena do banheiro, que viria em breve.

Prosseguindo rumo à sala 2, Natsuno me explicou que os corredores da escola formavam uma espécie de quadrado, com salas de um lado e escadas do outro. Ele cumprimentou seus amigos quando chegamos ao nosso destino, enquanto eu tomei o assento da janela para tentar distrair a mente apreciando a praça lá embaixo.

— Novato Diogo, meu amigo, seja bem-vindo ao inferno — disse ele, sentando-se na carteira logo à frente. — Brincadeira. Mas, e aí, tá ansioso?

— Oh, demais! Eu amo a escola. No sentido figurado.

— É, eu te entendo.

Não houve lição devido ao começo do ano letivo, por isso Natsuno e eu aproveitamos o tempo para conversar sobre nossos passados.

Ele falou pouco de sua vida. Disse apenas que seu pai era policial e que morava com a avó. Percebi seu tom de voz um pouco triste enquanto falava dessa parte. Depois ele voltou a ficar animado quando falou sobre o time de futebol da sala, das belas garotas da escola, de suas travessuras do ano passado etc. No final, Natsuno disse que aquela sala era praticamente a mesma do nono ano, com pouquíssimas mudanças.

Ah, e sobre o seu nome, acontece que uma geração distante da família do Natsuno era de origem japonesa, por isso o "Natsuno" e o "Kogori". Uma baita coincidência, pois eu passava pela mesma situação. "Kido" também era um sobrenome japonês, mas meus pais decidiram escolher um nome comum para mim, embora Diogo fosse um nome estrangeiro.

Quando chegou a minha vez de falar, também contei pouco sobre a minha vida. Disse apenas que sentia falta da minha antiga cidade e dos meus amigos de infância. Natsuno ficou surpreso quando eu lhe disse que uma vez coloquei a mão no fogo sem querer e ela não queimou tanto. E ele disse que gostava da sensação de receber uma descarga elétrica.

— Parece que somos estranhos — disse sorrindo. Eu concordei.

 

No intervalo, notei uma senhora estranha passeando entre os alunos pelo vasto refeitório. Além do físico rechonchudo, ela tinha cabelos curtos armados num pequenino rabo de cavalo, usava óculos enormes com lentes de fundo de garrafa — que diminuíam seus olhos — e tinha uma feição horrível. Eu me assustei só de vê-la. E a sua roupa piorava tudo: ela usava uma camisa branca de mangas curtas e uma gravata vermelha por cima. Tranquilo, não fosse o fato de sua camisa por dentro da calça evidenciar seu corpo avantajado.

— Não fique assustado, cara. — Natsuno percebeu que eu a observava. — É só a senhorita Abigail, a inspetora da escola. Um pé no saco, mas basta evitá-la.

— E quem são aqueles? — decidi perguntar, apontando para a causa de eu ter visto Abigail sem querer; os três grandalhões da entrada.

— Idiotas — foi sua resposta. — Três otários metidos a valentões que pensam que mandam na escola. Recebem os novatos da forma que acham certo, só que não passam de fracotes. Tenho pena de quem cai na deles.

Natsuno riu, voltando a comer o seu lanche.

“Recebem novatos da forma que acham certo” pensei. Por algum motivo, a frase não me causou um bom pressentimento.

Eles estavam próximos à fila da cantina, amedrontando alguns nerds. No momento em que eu me levantei — pois uma coisa que sempre odiei era injustiça —, Natsuno segurou o meu braço.

— É melhor não se meter com eles, maninho — disse em tom de aviso. — Eles são três, e você é só um.

Eu fiquei tentado a puxar o meu braço e ir até eles, mas pensei na minha mãe — e na vergonha que ela sempre passava quando era solicitada a comparecer à escola por minha culpa. Além do mais, era apenas o meu primeiro dia de aula. Eu precisava me conter.

Os três pareceram deixar os dois garotos em paz e, de repente, fincaram olhos afiados e ameaçadores em mim.

Senti um nó no estômago, olhando-os melhor: um loiro, um de cabeça raspada e um de cabelos castanhos, aquele que viria a me barrar no banheiro. Naquelas circunstâncias, eu já tinha convicção de que coisa boa não iria acontecer. Os caras não desviavam os olhos por nada!

E, mais uma vez, a sineta soou, dando fim ao intervalo e à “encaração”. A multidão de alunos voltando para suas salas fez tanta bagunça que os valentões sumiram novamente do meu campo de visão.

Suspirei.

E as coisas se acalmaram a partir daí, certo?

Quem dera.

 

Para você entender melhor, eu sempre fui cercado por coisas e pessoas estranhas, como um morador de rua que me atacou do nada anos atrás e uma velha que dizia que eu tinha um sangue apetitoso; pena que eu não achava o mesmo dela. Isso sem mencionar alguns esquisitões que, de vez em quando, ficavam me encarando em alguns pontos da cidade, especialmente em supermercados. Os grandalhões só estavam entrando para a coleção.

Assim como o professor de Química.

De qualquer forma, tudo estava normal até a quinta aula, quando eu já quase não conseguia me conter. Precisava ir ao banheiro, ou mijaria na calça. Porém, no momento em que fiz menção de me levantar e ir falar com o professor, Natsuno se levantou e foi na minha frente. Eu até esperaria, não fosse a dificuldade enorme de me segurar.

Decidi me levantar também. Dirigi-me à mesa do professor e pedi:

— Professor, hã... eu posso ir ao banheiro?

— Espere o seu colega retornar.

Por ser o primeiro dia de aula, nenhum dos professores haviam passado conteúdo, apenas se apresentavam ou explicavam como seriam suas matérias. Aquele, em especial, mal havia pronunciado algumas palavras. Disse apenas que se chamava Leonardo de Souza e que era professor de Química. Nada mais. Sua cabeça raspada, eu confesso, lembrava uma bola de basquete, mas tentei não reparar enquanto pedia para ir ao banheiro.

— Por favor — insisti, falando o mais baixo possível para nenhum dos outros alunos ouvir, embora alguns já estivessem me encarando com desdém. — Ou eu vou ao banheiro, ou eu mijo aqui mesmo, na sala de aula.

Ele me dirigiu um olhar obscuro, olhos castanhos que me analisaram com uma curiosidade nova. Senti um frio na espinha, um impulso de correr tomando conta de mim. Então a dor na bexiga me lembrou do porquê de eu estar ali e consegui voltar ao foco.

— Professor...

— Vai logo, mas volte rápido — disse ele com rispidez. Saí da sala a passos apressados e pisei no corredor.

Então parei.

Não sabia onde ficava o banheiro.

Até pensei em voltar à sala e perguntar, mas só olhar para a porta me fez perder toda a coragem. O alívio veio quando avistei duas garotas emergindo da biblioteca daquele corredor, portanto corri até elas, tentando disfarçar o desespero que começava a me dominar.

— Oi, é... poderiam me dizer onde fica o banheiro?

Elas me olharam com indiferença e uma delas, a mais cheinha, parecia estar me analisando. Seus olhos claros, que não pareciam nadinha amigáveis, estavam me deixando desconfortável. Ela tinha algumas sardas pelo rosto e usava uma touca rosa por cima de cabelos alaranjados. Pensei que puxaria uma faca para me atacar, mas apenas disse:

— E você, quem é?

— Diogo — respondi, já não conseguindo suportar. — Por favor. Banheiro.

A garota parecia estar olhando para uma barata nojenta. Sua amiga, por outro lado, só observava a cena. Parecia tão confusa quanto eu.

— Segundo andar, ao lado da sala de vídeo — respondeu ela, por fim.

— Obrigado — falei correndo, deixando as duas para trás.

Dobrei alguns corredores e subi o lance de escada que levava aos andares superiores. Saí de frente para a sala 24 e, não fosse pelo número, talvez eu pensaria que voltara ao corredor do primeiro andar, já que ambos eram idênticos. Olhei para os lados, perguntando-me para onde deveria seguir. Corri para qualquer um e encontrei o banheiro masculino.

E então aconteceu aquelas cenas:

Natsuno mencionando o meu nome e algumas características físicas minha numa conversa bizarra com seu pai por telefone.

O grandalhão da cicatriz me barrando, dizendo para eu não entrar em seu caminho. (Pois é, também não entendi).

E, por fim, Natsuno fazendo uma pequena piada ao nos encontrar, dizendo que aquele não era um lugar para um romance escondido.

Eu o encarei de sobrancelha arqueada. Péssima hora para uma brincadeira de mau gosto. 

Trincando os dentes e me lançando um último olhar assassino, o grandalhão recuou o braço e disse, dando as costas:

— O recado está dado. Espero que você seja inteligente e faça o que mandei.

Quando ele abriu a porta para sair, eu ainda disse:

— Não sou um fantoche que obedece a otários como você.

O sujeito parou, e até pensei que voltaria para tentar me matar. Em vez disso, o valentão apenas riu em deboche, deu de ombros e foi embora.

Natsuno e eu ficamos sozinhos naquele banheiro, eu ainda um pouco surpreso pela aparição daquele cara. Por algum motivo, suspeitei que ele estava me seguindo.

— Ei, Dio — disse o garoto, utilizando o apelido que apenas a minha mãe utilizava. — Parece que esses caras estão mesmo atrás de você. — Então me lembrei de sua conversa com o pai no telefone, quando mencionou sobre vampiros vindo atrás de mim. Estreitei meus olhos sobre ele, deixando-o sem jeito. — O que foi?

— Eu ouvi a sua conversa no telefone — falei, agora sério. — Com quem você estava falando? E por que mencionou o meu sobrenome?

Aquilo o deixou sem palavras e, mais do que nunca, percebi que Natsuno estava me escondendo alguma coisa. Ele olhou para a porta, como se ela lhe despertasse alguma curiosidade importante, e disse:

— Olha, é melhor a gente voltar pra sala. Dois garotos indo ao banheiro juntos acho que não pega muito bem, ainda mais se demorarem.

Tive que concordar com aquilo, embora soubesse que Natsuno apenas estava fugindo da minha pergunta.

— Vai indo — disse eu. — Vou lavar o rosto.

Ele fez que sim e saiu. Lavei meu rosto e ergui os olhos para o espelho, ainda estranhando o fato de aquele valentão ter aparecido de repente e do Natsuno falar com o pai sobre mim — e dizer que vampiros estavam me perseguindo. Ele chegou até a mencionar as “mechas castanhas”.

Bom, vou explicar melhor: meu cabelo, assim como o do restante da família do meu pai, é preto e tem as pontas de todas as mechas castanhas. Um fato meio estranho, pois uma vez cortei a parte marrom com uma tesoura e, no dia seguinte, a ponta estava castanha novamente. Todos os meus tios e primos tinham cabelos daquele jeito, até o meu pai, com os seus trinta e oito anos. Ele tinha alguns fios brancos também, o que fazia seu cabelo ter três cores. Seus irmãos também eram velhos, e todos tinham as mesmas características.

Aliás, fazia tempo que eu não os via. A última vez em que os encontrei foi quando visitei a cidade de São Paulo com os meus pais, há uns dez anos. Depois, só por fotos. Outros parentes eu havia visto só por fotos também, inclusive o meu falecido avô.

E conclusão: todos tinham os cabelos da mesma forma.

O motivo pelo qual Natsuno mencionara essa característica para o pai era um grande mistério. A única coisa que eu conseguia pensar era que ele estava me confundindo com algum criminoso, pois segundo ele seu pai era um policial.

 

Natsuno e eu não trocamos uma palavra pelo restante das aulas, o que já era de se esperar. Dúvidas dominavam minha cabeça, como se minha consciência estivesse querendo dizer que algo estava errado. Nem precisava, claro, pois estava nítido. Meu único ponto de paz era a linda Sophia.

Por mais que eu tentasse evitar, meus olhos sempre recaíam sobre ela. Sophia tinha amigas bonitas e sorria bastante, atraindo, inclusive, o olhar dos outros garotos. Seus olhos eram cheios de vida e produziam um charme deslumbrante. A leve maquiagem deixava seu rosto ligeiramente ruborizado e seus lábios rosados eram carnudos e geravam um sorriso perfeito.

Acabei indo dar um tchau para ela na praça da escola, na hora da saída, em estado de completa vergonha. Sophia, para a minha surpresa, me tratou muito bem, embora com um ar de ironia.

E lá se foi o meu primeiro dia.

 

Em casa, conversei pouco com a minha mãe, que perguntou como foi o meu primeiro dia.

— Normal — respondi.

— Eu não falei pra você?

Poupar detalhes era o melhor a se fazer.

Almocei e subi para o meu quarto, sem tanto ânimo para fazer qualquer coisa. Dona Sara até sugeriu que eu passeasse por um parque que ficava a alguns quarteirões da nossa nova casa, no entanto, eu só queria voltar para Belém e nada mais.

“O que Natsuno está escondendo? Por que mencionou o meu nome na conversa com seu pai policial? Não tenho anel? Aprendiz? Vampiros? Atrás de mim?

Decidi que tiraria minhas dúvidas no dia seguinte, e ele não escaparia. Talvez até fosse algo relacionado aos grandalhões estranhos.

De qualquer forma, deixando os pensamentos de lado, tentei assistir a alguns animes, mas não consegui. Até liguei a TV, onde passava um programa bom de comédia. Pena que eu estava impaciente. Só me restava fazer uma coisa para acalmar os nervos: treinar.

Passei pela sala, onde minha mãe assistia à sua novela da tarde, depois pela cozinha e abri a porta dos fundos, revelando a estranha floresta que se estendia pelo sul da cidade. Não havia nada que a separasse da minha casa a não ser o gramado que minha mãe utilizaria para estender roupas. 

Treinei alguns golpes.

Soquei o ar com força, dando chutes em seguida. Recuei, treinando minha defesa rápida com os antebraços, depois pulei com uma voadora giratória.

Não tinha graça treinar sem o meu tio Michael.

Retornei ao meu quarto e me joguei na cama novamente, desanimado. Fiquei o restante do dia deitado, com os pensamentos à toa. 

Um tédio. Até a escola estava melhor.

Anoiteceu.

Tomei um banho quente e desci apenas para jantar, depois escovei os dentes e voltei ao meu quarto. Uma coisa que eu odiava era dormir cedo, mas não tinha mais nada a fazer mesmo...

Fiquei um bom tempo de olhos fechados, mas o sono não vinha pois alguma coisa me perturbava. Talvez a conversa do Natsuno no banheiro, ou o “recado” daquele valentão do olho riscado... De fato, o primeiro dia de aula foi um tanto estranho. Isso sem mencionar a mudança de cor que notei nas íris do Natsuno quando o vi pela primeira vez. Haviam ficado amareladas, se eu não estivesse enganado.

“Devo estar imaginando coisas” pensei. O que meu pai acharia de tudo isso? Eu não o via já fazia mais de dois meses...

Por fim, quando menos me dei conta, adormeci.

 

Acordei no meio da noite, sentando-me num impulso e com o coração acelerado. De alguma forma, minha respiração agitada soava forte aos meus ouvidos. A cabeça latejava. O quarto estava escuro, com uma brisa gelada entrando pela janela aberta.

Janela que dava visão à floresta.

Não que eu pudesse ver qualquer coisa adiante dela; muito pelo contrário: só havia escuridão. E o meu corpo se arrepiou por completo quando distingui uma sombra se aproximando.

Pestanejei algumas vezes para ter certeza se estava vendo certo, e não queria ter feito isso — a sombra se aproximava muito depressa. Parecia estar voando, disforme e provocando uma sensação ruim, maligna. Dois pontinhos vermelhos brilhavam. Demorou um tempo para eu perceber que eram os seus olhos. Mais uma vez tentei me mexer sem sucesso; eu estava paralisado. Suava enquanto o pânico se estabelecia sobre o meu peito, a louca vontade de ir embora ansiando dentro de mim.

Embora pra onde?

Agarrei o cobertor da cama com força na intenção de me cobrir, talvez assim ela não me visse, mas nem mesmo os meus braços me obedeceram. Meu coração batia em meu peito feito uma metralhadora e, quando eu estava trêmulo o bastante a ponto de ter uma convulsão — a sombra a poucos metros, prestes a invadir o quarto pela janela e me engolir com aqueles olhos rubis — eu acordei.

Estava sentado na cama, de volta no meu quarto, mas dessa vez aliviado por saber que aquilo fora apenas um sonho e que eu já estava acordado. A janela estava aberta e a friagem me atingia, então me levantei para fechá-la. Desconfiado, dei uma última olhada para a orla da floresta lá embaixo — e notei um arbusto se mexendo, fazendo todos os cabelos do meu corpo se eriçarem.

“Impressão minha” pensei, tentando me acalmar, e fechei a janela. Voltei para a cama e custei a dormir. Eu estava amedrontado pelo sonho.

 



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