Volume Único

Sexto Ato: Base Confidencial da Divisão Secreta de Habilidades Especiais / Manhã / Tempo Claro

“Hisashige Kakeba não era o culpado?” Eu levantei inconscientemente da mesa de reunião.

“Infelizmente, essa foi a conclusão à qual chegamos.” Sakaguchi-senpai respondeu ajustando seus óculos com o dedo.

Estávamos na sala de reunião subterrânea da base secreta da Divisão. Nas paredes brancas havia uma enorme tela mostrando várias informações.

“Depois que o Ayatsuji-sensei desapareceu, abrimos novamente a investigação sobre a morte do Kubo. Sobre as evidências da sua dedução.” Ele revirava o documento em suas mãos. “Como resultado, apareceu um certo problema referente ao Kakeba ter sofrido um acidente de trânsito e ter sido transportado para o hospital.”

Kakeba — O professor universitário que o sensei afirmou ser o culpado e matou com sua Habilidade. Eu soube que ele morreu três horas após ter sido levado para o hospital…

“Descobrimos com o testemunho do paramédico que havia uma discrepância entre a hora que a polícia ficou sabendo sobre o acidente e a hora que de fato aconteceu. A ambulância foi impedida de entrar no primeiro hospital para o qual ele foi levado.”

“Não pôde entrar?”

“A emergência estava lotada, por consequência ele foi transportado para o hospital central há 16 quilômetros.” Sakaguchi-senpai apontou para o mapa. “Logo depois, Kakeba morreu. A Divisão investigou diretamente o hospital, mas como não é incomum rejeitarem ambulâncias, concluímos que não foi uma atitude intencional.”

Eu perguntei enquanto organizava sua fala em minha cabeça. 

“Mas… eu não acho essa uma informação importante. O que isso tem a ver com a dedução do Ayatsuji-sensei? ”

“Esses 16 quilômetros a mais que a ambulância foi obrigada a andar. Considerando a velocidade e adicionando uns trinta minutos a mais, a hora em que o Kakeba sofreu o acidente coincide com a hora em que o Kubo estava embarcando no navio.”

“Eh…”

Então, isso significa que quando o Kakeba morreu… o Kubo ainda estava vivo?

“Mas a Habilidade do Ayatsuji-sensei é…”

Eu tento colocar minha cabeça em ordem desesperadamente. O sensei causou a morte acidental do Kakeba porque ele era o assassino do Kubo. Mas quando o acidente aconteceu, o Kubo ainda estava vivo. Ou seja--

“Só podemos chegar a uma conclusão.” Sakaguchi-senpai disse resoluto. “O Kakeba apenas morreu de um acidente qualquer. Não teve qualquer relação com a Habilidade do Ayatsuji-sensei. E ainda por cima, ele não era amigo de nenhuma das vítimas da ilha. O Ayatsuji-sensei — inventou tudo. É um culpado falso.”

“Não!” Eu refutei sem querer acreditar. “Mas e a arma ensanguentada que ele encontrou na casa do Kakeba?”

“Para ele seria simples conseguir as impressões e o sangue do corpo e forjar uma arma.”

Sakaguchi-senpai tinha toda a razão. O sensei arranjaria uma razão para entrar no necrotério e conseguir o sangue. Entraria na casa do Kakeba fingindo investigar e deixaria a arma lá. Ele conseguiria fazer uma farsa dessas até dormindo.

Mas… Por quê? Por que ele fez isso?

“Essa é uma situação extremamente difícil.” Sakaguchi-senpai franziu a testa. “Ele ignorou a solicitação da Divisão, inventou um culpado, enganou a equipe de monitoramento e sumiu. Não dá para defendê-lo. É uma grave quebra de conduta. Eu pedi para o Diretor Taneda adiar o julgamento até esclarecermos o motivo, porém isso não vai durar muito. Temo que se não aparecermos com uma explicação convicente dentro de vinte horas, a ordem virá para ele ser executado.”

Executado. O tratamento que um Usuário de Perigosidade Máxima recebe quando é considerado fora de controle.

“Tsujimura-kun. Irei lhe ordenar como agente da Divisão.” Sakaguchi levantou com uma expressão série. “Encontre o verdadeiro assassino do Kubo dentro de vinte horas e descubra a razão para o Ayatsuji-sensei ter criado falsas evidências e fugido. Se for impossível…” Ele hesitou em dizer o resto. Mas depois de um tempo, levantou o rosto novamente e completou. “Você será ordenada a matá-lo.”

 

✦ ✦ ✦

 

Eu encontrarei o verdadeiro culpado. Só me resta isso.

O Kubo foi carregado ainda dentro da caixa por alguém e encontrado espancado até a morte algumas horas depois. Quem fez isso? No lugar do Ayatsuji-sensei que traiu a Divisão e desapareceu, eu preciso descobrir. Em outras palavras, serei uma detetive. Detetive Mizuki Tsujimura.

Para ser sincera — estou desanimada.

Se não fosse essa situação, soaria muito bem esse título e eu pularia de alegria. Mas o meu primeiro trabalho como detetive é algo que gostaria de enterrar e apagar de minhas memórias se possível.

Eu resolverei o mistério que o Ayatsuji-sensei abandonou em seu lugar. Até parece! Eu queria era rolar pelo chão batendo meus braços e pernas.

Porém há um grande mistério pairando sobre esse caso. Por que ele traiu a Divisão? Quem matou o assassino de minha mãe? E qual foi o motivo.

Há algo a mais nisso além do meu trabalho na Divisão. Eu desejo saber intensamente sobre esse mistério. Não quero deixar para outra pessoa resolver.

Contudo, a questão é: como um detetive deve agir?

Eu me recordo do sensei trabalhando. Sob a função de monitorá-lo, eu o acompanhei em diversos casos. Vi mais perto do que qualquer um ele receber um pedido, ir investigá-lo, examiná-lo e revelar a verdade.

Como ele começaria investigando esse caso? Primeiro, não seria aquele Traficante de Fuga? Eu tentei adivinhar distraída.

Quem roubou a caixa e matou o Kubo, claramente sabia em qual ele estaria. Então essa pessoa entrou em contato de alguma maneira com o Traficante de Fuga que preparou a caixa.

Eu decidi encontrá-lo novamente.

 

✦ ✦ ✦

 

Todos os cantos da sala de visitas do Centro Especial de Detenção da Polícia Militar eram cinza. Do chão às paredes, o teto, a moldura das janelas, as mesas, as cadeiras, tudo estava pintado completamente de cinza. Não havia uma sujeira se quer. Provavelmente eles colocam um bom número de detentos bem-comportados para limpá-la.

Enquanto eu observava tudo a minha volta, a porta da cela se abriu e o Traficante de Fuga apareceu acompanhado de um guarda.

“Ohh, senhorita! Já faz um tempo! Hoje também está uma lindeza.” O Traficante de Fuga vestido com o uniforme da prisão, sorria um sorriso de orelha a orelha que não combinava com a situação.

“Boa tarde.” Eu abaixei a cabeça.

Sorrindo, ele sentou-se na cadeira a minha frente.  

“Eu trabalho nesse ramo há muito tempo, mas é a primeira vez que sou preso. Gosto do silêncio daqui. Tem refeições e os guardas são boas pessoas. E o melhor de tudo é poder viver sem ter que trabalhar. Eu odeio trabalhar, sabe. Acho que vou morar aqui.”

“Eh? Não… Isso é uma escolha sua…” Eu sinto que enlouqueço quando falo com ele.

“Mas hein, por que você veio, senhorita? Ah, por acaso veio ouvir quando eu peguei o Hibagon?”

“Não.” O que é um Hibagon? “Você foi a última pessoa a se encontrar com o Kubo. Gostaria de ouvir como foi.”

Logo depois que eu o encontrei, ele foi preso pelos investigadores. Depois disso, ficou sob supervisão da Polícia Militar. Ou seja, é impossível que tenha matado o Kubo. Não posso baixar a guarda ainda, mas sinto que valhe a pena ouvir seu testemunho.

“Não aconteceu nada.” Ele coçou atrás da orelha. “Eu apenas o coloquei na caixa e o tranquei por fora.”

“Trancou?” Será que o Kubo não ficou incomodado com isso?

Ao perguntar, o Traficante de Fuga negou balançando a mão.

“Eu não estou levando ninguém para um resort, afinal. Mais do que uma viagem agradável no mar, a segurança vem em primeiro lugar. Certa vez, teve um que se agitou dentro da caixa porque ficou com claustrofobia e acabou sendo achado pela segurança. O pobrezinho foi jogado no mar com caixa e tudo. Desde então, para que algo imprudente assim não aconteça, eu dou um remédio para eles dormirem e tranco a caixa.”

“Remédio?”

“Eu minto que é anti-enjoo.” Ele riu. “Por isso não acho que o… Kubo-san, né, ficou chateado com o remédio para dormir. Ele ficaria ansioso acordado o tempo todo num lugar apertado daqueles. E além disso, ele disse que sabia qual era a caixa mais segura e a escolheu ele mesmo.”

“Ele mesmo escolheu?” Eu levantei a sobrancelha. Sinto que essa é uma informação importante.

“Sim.” Ele assentiu. “Geralmente eu escolho qualquer uma, mas dessa vez ele pediu. Pelo que ele falou, era uma carga perigosa. Se abríssemos a carga deles sem pensar, no dia seguinte, estaríamos boiando no mar, de forma que ninguém da tripulação, muito menos os criminosos, se aproximavam dela. Por isso que se esconder naquela era a melhor opção ou algo assim. Bem, mas acabou que logo depois foi ele quem estava boiando no mar. Ohhh, que medo, que medo.” Ele tremeu de maneira exagerada.

O que isso quer dizer? Eu penso desesperadamente.

Quando o Kubo fugiu de trem, ele deve ter recebido instruções detalhadas do Kyougoku. Nessa hora ele deve ter ouvido sobre o navio, o Traficante de Fuga e a caixa mais segura. Mas pelo que o Traficante de Fuga disse, esse conhecimento acabou tendo o efeito contrário. Ele acabou sendo levado e morto. Como será que descobriram a caixa em que ele estaria?

— Não.

Não seria a intenção do Kyougoku matar o Kubo desde o começo? Dentre aqueles que sabiam sobre o poço, Kubo era o mais próximo do Kyougoku. Era inconveniente deixá-lo vivo. Por isso ele propôs dele fugir e o fez ser morto na caixa que havia preparado.

Hmmm… Alguma coisa não se encaixa. Há duas coisas estranhas. Se quem matou o Kubo foi o Kyougoku ou algum subordinado seu, então porque o Ayatsuji-sensei parou de investigar? É como se ele tivesse arranjado um culpado falso para protegê-lo. Sendo que era uma chance dele encurralar o Kyougoku. A outra é por que o Kyougoku se deu ao trabalho de contratar o Traficante de Fuga e armar uma armadilha toda dessas? Se a intenção era silenciá-lo, poderia ter colocado uma bomba no trem… havia várias opções mais simples.

Essa carga…. O que aconteceu com o conteúdo da caixa em que o Kubo se escondeu? Ao perguntar isso para o Traficante de Fuga, ele disse com um olhar inocente que havia sido confiscada pela polícia.

Acho melhor informar à Divisão sobre esse conteúdo confiscado.

“Obrigado pela sua colaboração.” Eu levantei. “Não se esqueceu de me contar mais nada?”

“Tem uma coisa sim.”

Eu virei para ele. Será que é algo importante? Colocando os cotovelos sobre a mesa e com as bochechas rosadas, ele abriu a boca envergonhado:

“Hibagon.”

“Precisa não.”

Eu fui embora.

 

✦ ✦ ✦

 

Com os documentos espalhados, eu me reclinei sobre a mesa do escritório gemendo. Em cima da dela estavam espalhadas desordenadamente mais informações, documentos e fotos que eu reuni desde então. Informações que eu consegui no navio. A carga confiscada. Os antecedentes do Traficante de Fuga e do Kubo.

O Traficante de Fuga tem um álibi na hora da morte. Pelo que eu ouvi da seção responsável pelo monitoramento de organizações criminosas sobre os detalhes dessa ocupação, creio que posso acreditar naquele homem. Além do cliente que deveria escoltar ter morrido, ele ainda foi preso. O investigador responsável disse que isso seria um problema para a sua confiabilidade como Traficante de Fuga.

Ou seja, não é muito provável que ele, quem só saiu perdendo nesse caso, seja um cúmplice do Kyougoku por trás dos panos. Se ele soubesse do crime de antemão, teria agido melhor.

Agora sobre o proprietário das cargas. A carga que o Kubo escolheu por ser segura foi algo pedido por uma certa pessoa para ser transportado ao estrangeiro. O nome no registro era Saeki. Mas quando a polícia foi ao endereço registrado, estava completamente vazio e no telefone havia um recado dizendo “A polícia descobriu. Destrua os artigos no local apontado.”

Ao investigar mais a fundo sobre esse Saeki, ele era um criminoso que transportava mercadorias contrabandeadas em uma transportadora na ponta de uma organização. Ao procurarem o nome dessa organização, apareceu o nome da facção contrabandista da Máfia do Porto.

Máfia do Porto. Só podiam ser eles.

Eu pensei nessa possibilidade quando o Traficante de Fuga disse que se abrissem a carga deles sem pensar, no dia seguinte, boiariam no mar.

Se o Kubo pensou que a carga da Máfia era segura, isso foi um grande erro. Naquele porto aconteceu uma intensa perseguição de carro entre nós e eles com o objetivo de nos silenciar. Se era algo tão importante assim, era inevitável que dentro de algumas horas a polícia investigasse a carga.  Isso faz com que o Kubo tenha sido enganado. Qual o significado disso?

“Ahh… Não faço a mínima ideia.”

Eu escorreguei na cadeira, inclinando para trás. Avistei o ventilado no escuro teto. Ele apenas observava calado o escritório após perder seu mestre. Eu certamente não tenho vocação para isso. O sensei resolveria esse mistério num instante. Onde será que ele está agora? Para onde ele foi, deixando esse escritório para trás? Por que ele nos traiu?

Eu fui designada para esse escritório porque tinha esperanças. O Ayatsuji-sensei não sabe, mas nesse época eu já sabia que havia sido ele quem matou minha mãe com sua Habilidade. Por isso que quando fui escoltada para a Divisão na época do treinamento militar, apenas aceitei sob a condição de poder me aproximar do detetive chamado Ayatsuji. Depois disso, conclui meu treinamento e fui nomeada oficialmente como monitora dele.

Eu sempre quis perguntar. Como minha mãe estava momentos antes de morrer como uma assassina? Ela realmente era alguém tão ruim que precisava ser morta? Mas eu não perguntei. Sempre evitei pensando que poderia fazer essas perguntas a qualquer momento.

E agora talvez eu nunca mais possa. Pensar que a essa altura eu pensaria tanto na minha mãe…

“Mas que coisa, mãe… Me causar essa preocupação toda mesmo depois de morta.”

Minha mãe que mal aparecia em casa por causa do trabalho era alguém que só falava uma ou duas vezes durante a semana toda. E mesmo isso eram apenas interações impessoais para falar como estava a construção da casa ou o carro. Para as necessidades do dia a dia havia uma empregada que me ajudava. Com a exceção dos meus amigos, era com ela que eu passava a maior parte do tempo.

Um dia, quando fui perguntar se eu podia comer um biscoito que estava no armário, eu chamei essa empregada de mãe sem querer. Na mesma hora eu pensei ter feito bobagem e ela me olhou sem saber o que fazer. Nesse momento, minha mãe de verdade estava na entrada. Não tem como ela não ter me ouvido. Mas ela entrou como se nada tivesse acontecido, se trocou e foi trabalhar no escritório. Ela não deu a mínima atenção para o meu deslize.

A verdade… é que eu queria que ela tivesse ficado brava. Queria que ela tivesse ficado de mau humor e brigado comigo e com a empregada. Como eu teria ficado aliviada. Mas isso não aconteceu. A distância entre nós era ao ponto dela nem ligar de eu ter chamado outra pessoa de mãe.

Não há mais nada agora que possa diminuir essa distância. Porque ela morreu como uma assassina.

Eu levantei e esfreguei o rosto. Há muitas coisas em que eu deveria estar pensando. Preciso afastar minha mãe dos meus pensamentos para poder concentrar no caso. Porém isso não é algo fácil. Sempre que estou sozinha, sinto como se seu fantasma estivesse ao meu lado.

Foi nessa hora que uma folha caiu de cima da mesa.

Eu peguei sem me importar. Era o relatório sobre as evidências. Devia estar escondida na montanha de papéis para eu não ter visto. Era uma descrição sobre as provas encontradas no navio. Armas, o carro, as coisas do Traficante de Fuga.

No meio disso, estava a caixa confiscada. O Traficante de Fuga disse que trocou a caixa originalmente prevista para esconder o Kubo e depois foi preso. É mesmo. Eu esqueci completamente de procurar.

Essa caixa. O seu conteúdo era…

Limões. Havia uns dez quilos de limões para processamento.

Limões? A Máfia do Porto, uma temível organização ilegal ainda mais sombria do que as outras do submundo, contrabandearia limões? Como assim. Será que eram limões bem valiosos?

Enquanto um ponto de interrogação surgia no topo de minha cabeça e eu divagava imaginando os membros da Máfia fabricando doces de limão numa imensa fábrica, o telefone tocou.

Não era o meu celular de trabalho. Era o telefone do escritório.

Procurei em minha cabeça quem poderia ser. Mas todos os pedidos feitos ao Escritório eram pelo governo. Não conseguia pensar em ninguém que poderia estar ligando para cá de repente.

— Tirando um.

Atendi o telefone correndo, colocando-o próximo ao meu ouvido.

“Alô.”

Eu estava certa.

“Não é para comer o bolo que está no armário, Tsujimura-kun.”

“Não estou comendo!” Eu gritei por reflexo.

É o Ayatsuji-sensei.

“Sensei, onde você está?!” Eu só conseguia gritar. “Volte imediatamente! A Divisão está furiosa de cima a baixo! Você tem o costume de enfiar a cabeça num caldeirão fervendo?!”

“Você tá maluca? Por que acha que eu aceitei ficar amarrado à uma organização trivial do governo como a Divisão?”

Minha respiração parou diante das palavras repentinas.

“Por que está surpresa? Eu que estou. Ficar sendo monitorado vinte e quatro horas por atiradores de uma organização secreta do governo com ordem para atirar instantaneamente se eu recusar uma solicitação. Quem nesse mundo ia aceitar feliz um negócio desses?”

“O…” As palavras não saiam.

Eu senti uma forte emoção condensar bem no topo da minha cabeça. Ele sumiu por causa disso?

“Eu não vou seguir gente incompetente como vocês. Acaba aqui o meu envolvimento com a Divisão e as minhas missões de morte.”

“Você acha que pode decidir isso sozinho?!!” Eu gritei como nunca antes havia. “Você é um Usuário de Perigosidade Máxima! Precisa ser monitorado pelo governo querendo ou não! Mesmo que isso ameace a sua vida! Não é o seu dever?!”

Enquanto eu gritava, lágrimas embaçaram minha visão.

Eu acompanhava esse homem? Eu o acompanhava nos lugares sob a função de sua monitora, ajudava nas investigações e o escoltava? Esse homem egoísta?

“Foi esse seu egoísmo…” As palavras jorraram da minha garganta antes mesmo que eu pudesse pensar. “Foi esse seu egoísmo que matou a minha mãe!!”

A minha voz enraivecida ecoou pela sala. Enquanto eu arquejava, escutei o som da raiva fluindo por todo o meu corpo.

Ele estava calado do outro lado da linha. Era um silêncio pesado. Até que ele disse:

“Mesmo que tenha sido, não importa.” Sua voz foi fria, grave e precisa. “Vou te dar um aviso. Deixe esse trabalho. É absolutamente impossível solucionar o mistério da morte do Engenheiro com a sua capacidade.” Eu queria responder, mas não encontrava as palavras. “Da próxima vez não fique responsável por um Usuário perigoso que nem eu. Até.” E desligou.

Sozinha na sala abandonada, eu tremia agarrando o telefone.

“…Faça como quiser.”

Minhas palavras sussurradas sem chegar a ninguém através do telefone desligado, apenas difundiram em vão pela sala.

 

✦ ✦ ✦

 

Eu andava pela cidade entardecida.

As pessoas são escassas na calçada ao longo da ladeira. Em meio ao denso laranja do pôr do sol, apenas minha longa e preta sombra me seguia.

Eu informei imediatamente à Divisão sobre a ligação do Ayatsuji-sensei. A equipe técnica foi mobilizada para rastrear o destino da chamada, mas provavelmente será inútil. Ele não cometeria um erro básico desses. Porém, o conteúdo da ligação fez os superiores agirem. Agora era praticamente certo que ele se rebelou contra a Divisão.

As discussões dentro dela pareciam mudar para reuniões estratégicas sobre como restringir Usuários perigosos. Aquele tempo limite de vinte horas provavelmente será bastante reduzido.

Não me importa. Com ele sumido, a minha função foi suspendida automaticamente. Eu não preciso mais ficar sendo levada por suas palavras e ações, nem ficar com os nervos aguçados vinte e quatro horas por dia para monitorá-lo. Acabou.

Eu também queria abandonar as investigações sobre a morte do Kubo, na verdade. Ao investigar, acabo pensando na minha mãe e no Ayatsuji-sensei. Mas o Sakaguchi-senpai ordenou que eu continuasse. Os limões dentro da caixa estabeleceram uma nova verdade, foi o que ele disse.

“Avaliaram os limões que foram apreendidos.” Ele me disse por telefone. “Descobrimos algo muito interessante com o resultado. Eles não eram apenas limões.”

“Não eram apenas limões…?” Será que era alguma variedade rara?

“Por fora eram limões, mas por dentro não eram frutas. Arrancaram o conteúdo e o substituíram por armas através de uma tecnologia avançada.”

— Armas?

De primeira eu não consegui entender o sentido. Será que arrancaram o conteúdo do limão, deixando só a casca e botaram uma arma dentro? Mas para quê?

“Os detalhes ainda são desconhecidos.” Sakaguchi-senpai disse sem emoção nenhuma. “O que sabemos é que não dá para desmontá-las sem conhecimento técnico. Se tocar nelas sem cuidado, poderá morrer. Por causa disso, tivemos que fazer uma troca com a Máfia do Porto contra a nossa vontade.”

Uma troca? Entre a Divisão e a Máfia do Porto? 

“Usando um intermediário privado, nós as entregamos para os executivos.” Ele disse do outro lado da linha. “Em troca de devolvermos esse estranho armamento para eles, eles nos contarão sobre o seu funcionamento em parte. Esse é o acordo. Eles já aceitaram e buscaram a caixa. Em breve um emissário da Máfia chegará com as informações para você, Tsujimura-kun.”

Levei um tempo para entender a situação. Nunca ouvi do governo fazer algum acordo com a Máfia do Porto. Ainda mais nos darem informações confidenciais — de uma provável ilegal arma — é sem precedentes. Eles querem tanto assim recuperar os limões, ou seja, as armas?

“Tsujimura-kun. E sobre o… Ayatsuji-sensei…” Sakaguchi-senpai começou a falar temeroso.

“Não quero falar sobre esse assunto.” Eu disse o interrompendo. “Não tem mais nada a ver… comigo.”

“Se vier a ordem para você atirar nele, irá obedecer?” A voz do outro lado falou sem emoção.

Por algum motivo não consegui responder de imediato. Mesmo eu já devendo saber a resposta.

“…É claro.” Parecia a voz de outra pessoa saindo do meu corpo.

A minha missão terminou. Não havia mais nenhuma relação entre mim e o Ayatsuji-sensei.

Depois entro em contato novamente, eu disse e desliguei.

Segurando o telefone, fiquei um tempo parada em meio ao crepúsculo. Pela frente, a longa rua continuava. Por trás também. Os postes apareciam intermitentes. Na minha direita havia uma cerca de arame e além dela, uma suave colina cinzenta.

O ar era de um intenso vermelho alaranjado como se desse para se afogar nele. Dizem que o crepúsculo é a hora dos demônios. Quando o dia e a noite são vagos, o limite entre esse e o outro mundo. Essa fronteira com o outro mundo é a hora dos demônios, ou seja, a hora em que se pode encontrar as aparições. Youkai, fantasmas, espíritos malignos dos rios e das montanhas, ou seja, o território do Kyougoku.

Um terrível pensamento veio a minha mente. Será que o Ayatsuji-sensei foi para a terra desses demônios… para o mesmo lado do Kyougoku?

Não há nada que prove o contrário. Ele estava agindo estranho após seu encontro com o Kyougoku no abrigo subterrâneo. Eu até li o que aconteceu lá no relatório, mas nada garante que foi apenas aquilo. Ele só não ficou do lado do governo, o lado que detém os assassinos, porque era conveniente? Não teria sido influenciado pelo Kyougoku após se aproximarem e ido para o lado da noite? Se for esse o caso, então eu preciso detê-lo. Com ordem ou não para atirar.

Eu toquei levemente o coldre próximo ao meu braço, me certificando da sensação do pesado revólver. E então me dei conta.

Alguém estava me observando por trás. Senti um frio na espinha. Entendi instintivamente que não era o olhar de um humano. Nem mesmo a mais perversa pessoa era capaz de enviar um olhar frio e desconcertante desses. Não consegui me virar de imediato.

A hora dos demônios. Uma rua vazia. Alguém parado atrás de mim. O que me deu coragem para me mover foi pensar na possibilidade de ser o Kyougoku. Se fosse ele, eu não poderia fugir.

Eu retirei minha arma e virei. Não havia ninguém. Nenhuma presença, apenas um silêncio profundo. Apenas a rua deserta em que o barulho da cidade sumia ao longe. 

Senti uma picada em minha perna. Quando eu olhei para o lugar da dor, ele estava ali. O Filhote de Sombra.

Como uma besta colocando o rosto para fora do pântano, ele estava com metade do corpo para fora da sombra sob os meus pés. A negra foice que ele possuía — foi o que acertou meu tornozelo.

Surpresa, eu pulei para trás.

Ele rastejou lentamente para fora da sombra. Tremendo e seu contorno oscilando, não permanecia igual por um segundo que fosse.

Uma besta bípede com chifres de carneiro. Quanto mais eu espremia os olhos tentando entender a sua forma, mais ele tremia e era difícil compreender.

Por que agora?

Deslizando devagar pela calçada, ele vinha em minha direção. Segurando a foice. Não havia nele nenhum sentimento ou intenção. Ele não tinha nada com o que pudesse se conectar.

Mesmo sem saber direito onde estavam seus olhos, por algum bizarro motivo, eu conseguia sentir seu olhar claramente.

Eu recuei.

 Ele não me obedece. Não sei o que pensa ou com que objetivo se move. Mas a sua capacidade de matar é extremamente elevada. E uma vez que começa a se mover, nunca erra a sua presa.

Ele deu mais um passo para frente. Eu, mais um passo para trás.

Não sei por que apareceu e o que está tentando fazer. Ele é uma forma de vida completamente alheia e além da compreensão. A única coisa certa é que o dono do olhar que senti é o Filhote de Sombra.

O corpo estranho que reside dentro de mim. Um mau pressentimento surgiu.

“Pare.” Eu apontei a arma para ele. “Se não parar, eu atiro.”

Ele avançou sem se abalar. Não adiantava avisá-lo. Ele não entende as palavras.

O Filhote de Sombra avançou mais ainda. Eu atirei. A bala atravessou sua cabeça precisamente, aterrissando no chão atrás dele.

Sua cabeça foi para trás com tudo, tendo uma pequena convulsão, mas logo voltou a mesma forma de antes como se nada tivesse acontecido. É inútil. Não adianta uma arma contra um corpo formado por sombras.

O que é isso? O que diabos é essa Habilidade, afinal?

Minhas veias contraíram, meus dedos ficaram gelados. Minha garganta ficou seca. Não tem como resistir. Mesmo que eu fuja, ele provavelmente é mais rápido.

O Filhote de sombra veio voando em minha direção que estava parada como se estivesse dormente.

“Você é idiota? É claro que uma arma não vai adiantar contra uma Habilidade.” Uma voz veio por trás de mim e o braço de alguém se esticou.

O braço passou pelo meu lado e agarrou a cabeça do Filhote, o jogando no chão.

O Filhote de Sombra que nem se incomodou com uma bala, não conseguia fugir da mão. Pelo contrário, ficou se debatendo sem conseguir se levantar. Mesmo depois que a mão o soltou, ele ainda ficou se debatendo no chão. É como se a gravidade sobre ele tivesse aumentado cem vezes mais.

Ele ficou se contorcendo e tentando fugir da restrição invisível por um tempo, mas, de repente, como se tivesse perdido as forças, começou a afundar para dentro da minha sombra até que desapareceu.

“A Divisão caiu tanto assim ao ponto de ter uma menininha que se amedronta por causa disso como agente?” Após o dono da voz olhar para mim, ele bateu levemente as luvas pretas que estavam segurando o Filhote de Sombra até pouco tempo atrás.

Um menino de chapéu preto… Não, um jovem.

Chapéu ocidental e roupas pretas. As luvas eram pretas também. Assim como sua gargantilha de couro. Sua aparência externa não era esplendorosa, mas todas as suas vestimentas eram da mais alta qualidade. Porém sua maneira rude de falar, não deixava parecer que ele estava vestindo roupas de alta classe.

Pela sua presença, eu logo entendi que ele era alguém que vivia em meio ao sangue e a violência. Todo o seu corpo era envolto pela presença peculiar, de um tipo diferente do Ayatsuji-sensei, que dizia ter vivido andando sobre vidas. Logo eu entendi quem era. A Máfia do Porto.

“Diga ao seu superior professor que graças a vocês, conseguimos nos livrar dos traidores que tentaram contrabandear nossas armas. Mas com essas informações a dívida fica paga.” O jovem de chapéu preto tirou umas folhas de dentro da roupa e as soltou. As folhas caíram esvoaçando no chão.

Os traidores da organização — provavelmente se refere aos homens com quem trocamos tiros no porto. Eles tentaram vender as armas em forma de limões secretamente para o exterior.

“Então você é o emissário da Máfia?”

“Isso. Te contar, a audácia daquele professor de contatar a Máfia a essa altura do jogo. Se não fosse pelas ordens do Chefe, eu matava ele. Bem… Graças a isso, conseguimos recuperar as bombas que nosso subordinado teve o trabalho de criar.”

Bombas? Aquelas armas em forma de limão eram bombas?

Depois de ficar falando sem parar por um tempo, ele deu uma espiada em meu rosto.

“Que tal falar alguma coisa?”

Foi então que eu percebi que estava com a respiração presa até agora.

“Como você conhece o Sakaguchi-senpai?”

“Muita coisa aconteceu no passado. Só isso.” O executivo da Máfia virou as costas e saiu andando. “Não tem nada a ver com você.”

Eu sabia que deveria falar algo, mas apenas olhei ele indo embora sem dizer nada. Até que de repente, ele parou.

“…Ahhh, merda. Agora que lembrei que eu tinha uma dívida pessoal com o traidor de óculos.” O jovem xingou com o rosto contorcido. “Aquele maldito ligou sabendo… Ei, menininha.” Eu levantei o rosto ao ser chamada. “O seu superior uma vez me salvou. Por isso irei te alertar.” Ele apontou o dedo para mim relutante. “A besta que te atacou. A que eu derrubei. Aquilo não é sua Habilidade.”

Eu gelei. A voz do jovem de chapéu preto atravessou ecoando pelo crepúsculo e desapareceu.

“Você tinha se equivocado, né? Aquela é uma Habilidade do tipo autônoma. Como ela veio toda enraivecida cheirando a morte, provavelmente seu dono já morreu. Tenha cuidado, não quer ser morta por um morto, né? Você deve saber quem morreu na mesma época em que ela apareceu.”

Eu fiquei petrificada. Essa pessoa… só pode ser uma.

O jovem andava silenciosamente pela rua contínua. Sem conseguir me mover ou falar, dentro da densa atmosfera alaranjada, fiquei olhando atentamente sua sombra diminuir até sumir.

 

✦ ✦ ✦

 

Ayatsuji estava sozinho sentado na borda do poço.

A floresta ao seu redor. tingida de uma cor fora desse mundo. O vermelho alaranjado trazido pelo entardecer repintava a paisagem com uma atmosfera não pertencente a esse mundo também.

“A Hora dos Demônios, Interseções dos Demônios… Crepúsculo…” Ayatsuji falava sozinho.

Ele pensava. Estava tudo muito óbvio. Esse poço ficava na divisa da província e de frente para o rio. Ou seja, era uma fronteira. Tanto a estreita encruzilhada como todos os tipos de tsuji (interseções) são tradicionalmente vistos como fronteiras. E o próprio poço serve como o limite entre o mundo da terra e o da água.

Tudo o que o Kyougoku fez, desde o começo apresentava a resposta. Ele apenas não percebeu.

Enquanto vinha para cá, Ayatsuji encontrou mais quatro Hokoras com a mesma estrutura desse poço.  Um na entrada de um cemitério, o segundo perto de um túmulo de pedra embaixo de um precipício, o terceiro debaixo da ponte que atravessava o rio e o último numa cabine ao pé de uma montanha sagrada.

Todos à meia distância entre o mundo ordinário e o próximo, isto é, em lugares que ficavam na divisa entre os dois mundos, fáceis de aparecer qualquer coisa. Provavelmente havia incontáveis Hokoras pelo país.

Coisas ruins surgem das fronteiras. O dispositivo que gera o Mal colocado dentro do poço era o próprio Kyougoku. Passando conhecimento para aqueles com motivo, dando uma empurrada em suas costas, os fazendo entrar no caminho do Mal sem volta.

Então por que ele criou esse dispositivo? O que o Kyougoku estava tentando conseguir com esse mecanismo em larga escala? Só restava perguntar ao próprio.

“Hora de ir.” Ayatsuji levantou.

O vento do entardecer atravessou as árvores, soprando repentinamente. Os escuros arbustos tremeram. O barulho da floresta que urrava como o sussurro de um ser vivo cercou o Ayatsuji.

Sem mudar sua expressão, acendeu seu fino cachimbo e soprou a fumaça. Oscilando como uma alma, a fumaça desapareceu em meio ao frio da floresta. Então ele começou a andar.

A hora da batalha decisiva se aproximava. E Ayatsuji já sabia onde o Kyougoku estaria. No mesmo lugar da primeira batalha.

No topo do penhasco de Takirei'ou.

 

✦ ✦ ✦

 

Eu estava no porto.

A inspeção do tiroteio já havia praticamente terminado e quase todos os investigadores já haviam ido embora.

Eu andava sem destino. Vários eventos giravam dentro de minha cabeça. A última fala do executivo da Máfia. “O Filhote de Sombra é a Habilidade de alguém que já morreu…”

Ele apareceu no mesmo dia em que minha mãe morreu cinco anos atrás. Desde então ele ficou me seguindo como uma presença sinistra.

Nesse mesmo instante, sinto seu olhar. Ele está me olhando de dentro da minha sombra. Colocando todas as peças no lugar, só sobra uma possibilidade. O Filhote de Sombra é a Habilidade da minha mãe.

Os efeitos das Habilidades são diversos. A maioria se expande em torno da pessoa, mas também foram confirmadas Habilidades que continuam a exercer certo efeito sobre um alvo afastado de seu Usuário. E há aquelas que permanecem mesmo depois do Usuário morrer.

As pesquisas feitas dentro da Divisão estão gerações à frente do setor privado. Eu já li vários dos resultados. A maioria desaparece quando seu Usuário morre, mas as que funcionam longe como a minha, tendem a continuar a atacar seu alvo. Separada da intenção original, ela continua a proteger suas ordens como um testamento.

Eu não queria pensar mais sobre isso. Não queria imaginar sobre o Filhote de Sombra — poder ser uma maldição de minha mãe.

Ele me salvou diversas vezes. Como na vez que fui atacada pelas Forças Especiais. E na vez do tiroteio com a Máfia do Porto também. Se ele está me protegendo sob ordens dela, então ele deveria ter vindo me salvar daquela vez. Mas o Filhote de Sombra apenas me dirigiu, de forma fria e calada, um olhar sinistro de dentro da minha sombra.

Após minha mãe morrer, apenas uma maldição restou. Ao pensar isso, senti meus órgãos irem esfriando silenciosamente por todo o meu corpo.

Será que viverei toda a minha vida… sentindo medo dessa sensação desconhecida?

Enquanto perdida em meus pensamentos, o celular no meu bolso tocou. Era do trabalho. Não queria, mas precisava atender.

“Tsujimura falando.”

“Conseguiu as informações sobre os limões?” Uma voz quieta falou. Era o Sakaguchi-senpai.

“Sim.” Eu respondi enquanto recolhia os documentos deixados pelo executivo da Máfia. “O que estava no interior deles era uma bomba extremamente especial. Devido ao seu alto anonimato que não deixa vestígios dos seus componentes, foi bastante usada em conflitos com outras organizações e crimes. Porém como somente o responsável pela tecnologia da Máfia do Porto sabe como produzi-la, todas as outras organizações criminosas também querem saber sua composição.

“Por isso a trocaram por um valor tão alto. São um pessoal imprudente.” Ele grasnou do outro lado da linha. “Também conseguimos novas informações. O homem chamado Saeki registrado como proprietário morreu em fuga.”

“Eh…?”

Saeki era o transportador da Máfia do Porto… que desapareceu deixando apenas o recado “a polícia descobriu. Destrua os artigos no local apontado” em sua secretária eletrônica.

“Durante sua fuga, ele caiu da escada da ponte de pedestres próxima ao porto, quebrando a coluna cervical. Morreu no hospital. É coincidência demais ele sofrer um acidente agora, considerando a situação. A chance é alta de ter sido um assassinato.”

Um mau pressentimento surgiu num canto da minha mente.

Uma queda. O proprietário das caixas.

Pela mensagem deixada em sua secretária, Saeki provavelmente é a pessoa que carregou os limões para fora do navio. O traidor da Máfia cometeu o tabu de tentar contrabandear as armas da organização. Ao ser descoberto, tentou se livrar das provas correndo. Esse trabalho foi dado ao Saeki.

Se esse for o caso, então… há algo estranho.

Quem estava dentro da caixa na verdade era o Kubo. Ele levou o Kubo, que dormia por causa do remédio, sem saber. Então quem matou e quem transportou o Kubo são duas pessoas diferentes. Pelo menos, é certo que o transportador Saeki não tinha intenção de matá-lo. Não havia nenhuma necessidade de espancar até a morte um homem desconhecido que estava dentro da caixa ao estar quase sendo pego pela polícia.

Algo está errado. Em nenhum lugar aparece um possível culpado que quisesse matá-lo. Todos que surgem na rede de informação da polícia são indivíduos com assuntos mais urgentes do que se preocupar em matar o Kubo.

“Tsujimura-kun, você descobriu o verdadeiro culpado pela morte do Kubo?”

Era difícil falar a verdade.

“Ainda não.”

“Talvez seja a hora de mudar o foco.” Sakaguchi-senpai disse relutante. “Seja qual for o verdadeiro motivo, a dura realidade é que nesse momento um Usuário de Perigosidade Máxima está fora de controle. É contra os meus princípios avançar na ausência de informações, mas… você sabe agir como manda o manual para seguir um alvo, não é?

Eu respondi que sim. Nessas poucas horas, fiquei relembrando dos procedimentos.

Não, desde que fui apontada como monitora dois anos atrás, eu sempre imaginei quando esse dia chegaria.

“Senpai. ‘Eu não vou seguir gente incompetente como vocês', foi o que o Ayatsuji-sensei falou.” Eu disse reprimindo minha voz. “E até hoje, nenhuma de suas deduções esteve errada. Será que a Divisão irá conseguir descobrir onde ele está?”

“Já temos um plano referente a isso. O Ministério Interior está negociando com o Departamento de Gestão para mover o satélite de vigilância. Se fizermos uso dele, desde que ele esteja na rua, seremos capazes de descobrir suas coordenas imediatamente.”

Finalmente prepararam o satélite de monitoramento? Ou seja, a localização e execução do Ayatsuji-sensei estão sendo considerados como um caso sério de segurança nacional.

Eu gemi.

Alguma parte do meu corpo doía. Mas eu não sabia onde. Claro que eu não saberia. O que doía era meu coração.

Enquanto estava no telefone, eu andei até a ponte em frente ao navio sem perceber. O lugar em que o lançador veio voando. O lugar em que travamos um tiroteio em ambos os lados da ponte elevada.

Praticamente toda a carga que havia em cima dela caiu no mar. Deve ter sido na hora que ela foi erguida. Só havia agora alguns fragmentos espalhados nas proximidades. 

Por sinal, naquela hora eu estava tão desesperada que não percebi, mas porque as cargas estavam aqui?

“Tsujimura-kun, está ouvindo?” A voz do Sakaguchi-senpai veio do outro lado da linha.

“Sim.”

“Por favor, fique calma.” Dizendo isso, ele demorou um pouco para continuar. “A reunião entre os ministros de gabinete do Ministério Interior acabou agora mesmo. A execução do Ayatsuji-sensei foi decisão unânime.”

Minha visão ficou turva.

Finalmente veio a decisão que eu sabia que viria. Uma ordem para a qual eu achava estar pronta. Mas ao ouvir as palavras de fato, foi como se eu tivesse sido atingida por uma bola de ferro no peito. Quase deixei o celular cair.

“Tsujimura-kun. …Você está bem?” Eu prendi a respiração por alguns segundos e consegui responder “sim.”

As ordens da Divisão são absolutas. Se foi algo decidido pelos superiores, então nunca voltarão atrás.

“Enquanto o rastreamento por satélite não completa, darão as ordens da operação no quartel-general. Volte para cá.”

Eu não consegui responder.

Ele tentou falar algo, mas se calou e acabou desligando sem dizer nada.

Eu estava sozinha em cima da ponte. Lembrei das últimas palavras do Ayatsuji-sensei no telefone.

— Ficar sendo monitorado vinte e quatro horas por atiradores de uma organização secreta do governo com ordem para atirar instantaneamente se eu recusar uma solicitação. Quem nesse mundo ia aceitar feliz um negócio desses?

A Divisão é a organização de Habilidades de maior autoridade do país. Não há um humano que consiga fugir especialmente de suas Forças Especiais, conhecida como Telha Negra, formada para suprimir Usuários. Nem mesmo o Ayatsuji-sensei tem chances contra a Divisão que conhece todas as suas artimanhas.

Se ele realmente odiava o monitoramento da Divisão do fundo do seu coração como disse, talvez fomos nós da Divisão que causamos esse destino dele ser morto a tiros.

Um sentimento indescritível surgia no fundo de meu peito. Para eu estar tão abalada assim, sou um fracasso de agente. Mas é preciso fazer o que tem que ser feito.

Quando virei meus saltos para retornar à base secreta da Divisão, escutei o som de uma mensagem chegando ao meu celular. Quando o abri, era uma informação eletrônica da Polícia Militar. Pelo jeito descobriram a identidade do Saeki.

Nome verdadeiro, retrato, altura, constituição física etc. Eu apenas fui passando pelas informações com os olhos sem prestar atenção. Até que eles pararam em uma sentença específica.

“Antes de entrar para a Máfia do Porto, era um vigarista que ganhava a vida por meio de usurpação de empresas. Porém, depois de se tornar suspeito num caso de assassinato, ele virou a página…”

Um som estalou no fundo de minha cabeça. Há algo estranho nessa informação.

Peguei o relatório sobre o encontro do Ayatsuji-sensei com o Kyougoku no abrigo subterrâneo. Não há dúvidas. A idade do suspeito no caso Caixa Assassina que o Ayatsuji solucionou e do transportador Saeki batem. São a mesma pessoa.

Mas então, o que está acontecendo?

O Saeki foi silenciado. Porque ele sabia para onde a caixa foi levada, ele automaticamente sabia quem era o assassino. Por isso ele foi jogado da escada —

— Espera.

Uma queda. Uma morte acidental. Ele morreu logo depois do Ayatsuji-sensei desvendar o caso da sala trancada.

Claro. Como eu não percebi de cara? O Saeki foi silenciado. Mas não pela mão direta de ninguém. Quando o sensei solucionou o caso, sua Habilidade ativou. Ou seja, foi parte do plano do Kyougoku. Ele fez o sensei solucionar o caso para silenciar o Saeki que estava longe.

Mas por quê? Ele sabia de alguma informação que não deveria?

Ele morreu logo depois de transportar a caixa. Se ele tivesse sido pego pela Divisão antes de morrer, com certeza teria confessado tudo. Então o caso do Kubo estaria resolvido e o pedido não teria ido para o Ayatsuji-sensei.

Isso se significa que… o Kyougoku queria o sensei contratado como detetive. Para quê?

Nessa hora, alguma coisa acertou meu pé. Eu olhei para baixo. Havia um bloco de madeira caído. Provavelmente era um pedaço de uma das cargas que eu acertei com o carro. Um pedaço de caixa que sobrou.

Senti esse pedaço atingir um canto de minha mente. A eu de dois anos atrás não teria pensado nada. Porém após experienciar tantos casos serem solucionados ao lado do Ayatsuji-sensei, a minha cabeça que continuou a testemunhar o momento da solução do mistério, viu esse pedaço de madeira como sendo diferente dos outros.

Eu o peguei. Era um fragmento de algum caixote. Não conseguia imaginar sua forma original por ter o deixado em pedaços com o carro. Mas eu já vi essa cor em algum lugar…

Escutei palavras com que estava acostumada dentro de minha cabeça.

“É a resolução do caso, Tsujimura-kun. O mistério foi solucionado.”

De repente uma série de imagens passou como uma turbulência.

Os limões. A transportadora. A Máfia do Porto.

“A polícia descobriu. Destrua os artigos no local apontado.” Mandado pela Máfia, Saeki carregou a caixa para fora do navio com pressa. Se os limões fossem encontrados, eles estariam acabados.

Ele precisava destruir completamente as evidências de uma forma que nem a polícia e nem os executivos da Máfia do Porto achassem nada. Mas como? Não havia muito tempo.

A bomba em forma de limão não pôde ser desmontada nem pela perícia. Mesmo se escondesse em algum lugar, quando acabasse o tiroteio, o porto ficaria infestado de investigadores que olhariam em todos os lugares.

Então jogar no mar? Impossível. As bombas totalmente seladas não quebrariam nem debaixo d'água. Após afundarem, seriam achadas pelos mergulhadores. Fossem da polícia ou da Máfia, os traidores estariam acabados.

O que fazer? Como desaparecer com as bombas completamente desse mundo sem deixar vestígios?

— E se o Kyougoku previu essa situação?

Ele controlou o momento em que o Kubo fugiria para o porto. E foi bem quando os traidores da Máfia estavam contrabandeando as bombas. Por isso eu me envolvi numa troca de tiros.

E se não foi só o Kubo que o Kyougoku controlou? E se o próprio contrabando foi armado por ele?

Lembrei do poço. O Kyougoku consegue fazer os outros terem a ilusão de estarem agindo por vontade própria. Será que não foi uma sugestão sua que fez a Máfia do Porto ter a audácia de contrabandear as bombas da organização?

O poço falou: “Se assim fizer, não será descoberto de jeito nenhum. Se fizer exatamente como ensinado, a negociação não será descoberta e se for, há um jeito de destruir as provas completamente. Irei-lhes ensinar tudo. Fica a cargo de vocês colocar em ação ou não.”

E então eles descobriram como se livrar das evidências. Explodindo todas. Mas como seu poder explosivo era forte demais, não dava para explodi-las por perto. E mesmo remotamente, o código é controlado de maneira individual. O técnico da Máfia do Porto perceberia.

Então o melhor jeito era alguém passar por cima delas. Se elas explodem casos desmontadas, então era melhor disparar tudo de uma vez esmagando-as. Por isso que caso acontecesse algo, o transportador Saeki foi instruído a levar as caixas para um lugar em que houvesse bastante carros. Em cima da ponte levadiça então, melhor ainda. Depois que explodissem, os pedaços cairiam no mar e a pólvora se dissolveria. Os circuitos de detonação seriam despedaçados e danificados pela água do mar, tornando impossível de analisá-los. A divisa em que a ponte abre… é bem onde eu estou.

O plano do Kyougoku. O poço. O Ayatsuji-sensei ter inventado um culpado.

“Não pode ser…”

A verdade inundou como uma enchente minha cabeça. Sem conseguir respirar, eu afundei no chão da ponte.

O Ayatsuji-sensei sabia tudo. Uma vez sua Habilidade ativada, não há como cancelá-la. Mesmo que a solicitação seja retirada, ela não parará até matar o culpado. E o culpado é definido por condições precisas. Ter a intenção de matar e provocar a causa física da morte por vontade própria.

Quem tinha a vontade de matá-lo? O Traficante de Fuga não tinha. Ele colocou o Kubo na caixa e lhe deu o remédio para dormir, fazendo seu trabalho. Por vontade própria.

O Saeki não tinha. Ele pegou a caixa e a colocou em cima da ponte fazendo seu trabalho. Por vontade própria.

A Máfia do Porto também não. Nem a ponte. Quem tinha nessa hora?

— Eu não perdoarei o Engenheiro nunca.

— Irei capturá-lo sem falta. E com as minhas próprias mãos…

 

Eu agachei colocando ambas as mãos no rosto. Não conseguia parar de tremer.

Eu tinha a intenção de matar.

 

Eu atropelei o Kubo. E o motivo do Ayatsuji-sensei ter traído a Divisão foi para não me matar.

 

✦ ✦ ✦

 

Ayatsuji andava sozinho na trilha.

O crepúsculo ia gradualmente sendo interrompido e a escuridão vinha se arrastando das profundezas da floresta.

Após o entardecer, a floresta é o local das bestas. No fundo do escuro bosque, as bestas que cavam a terra e comem carne observavam distantes o Ayatsuji. Sem ligar para a presença delas, ele apenas andava calado.

O silêncio havia descido no meio da floresta. As bestas olhavam ele partindo como se lamentando silenciosamente.

Uma derrota total.

Ayatsuji havia sofrido a mais pura derrota. A presença dessa derrota infiltrada em cada uma de suas células pesava seus passos. Perambulando escondido na trilha de uma montanha, estava quase caindo para frente.

Mas ele tinha que andar. Em direção ao local do confronto final. Kyougoku estava o chamando para concluírem a partida.

Mesmo que sua derrota já estivesse decidida, ele não podia deixar de ir. Alguém precisava por um ponto final nisso tudo. Foi uma história repleta de sangue e morte, mas não dava para seu fim se estender infinitamente. Mesmo que a vitória do Kyougoku estivesse decidida, alguém precisava fechar o caso.

 

A silenciosa garoa, quando ele menos percebeu, tingiu a atmosfera da trilha de azul. Exalando uma respiração branca, ele andou arrastando a noite que jorrou da terra como um obstáculo.

 

A noite era a hora dos youkais.

 

✦ ✦ ✦

 

“Apreendidas as coordenadas do alvo. Ele está na trilha a cinco quilômetros daqui.” Dentro do camburão, o correspondente informou.

Dentre os militares sentados, dois soldados completamente equipados das Forças Especiais, quatro agentes da Divisão e dois investigadores da Polícia Militar.

Estávamos todos sentados num banco. A única luz vermelha acesa na escuridão do interior do carro fazia com que nossas figuras aqui sentadas parecessem fantasmas.

Esse não era o único carro transportando as Forças Especiais. Havia mais quatro conduzindo cada unidade. Eles querem cercar o alvo perfeitamente. Nem mesmo o Ayatsuji-sensei pode contra esse número todo.

Nem mesmo ele…

“Tsujimura-chan. Você examinou bem o equipamento?” O Asukai-san sentado ao meu lado perguntou com um tom informal.

“…” Eu não conseguia responder.

“Não sabemos o que vai acontecer para onde estamos indo. É melhor que cheque ao menos seu colete à prova de balas e a munição extra.”

Eu sei que deveria escutar ao conselho. Contudo meu coração estava ocupado com outros pensamentos. Nenhuma informação externa era capaz de entrar.

Ele coçou a cabeça preocupado.

“Ah é. Quer comer vegetais em conserva? Esse aqui é novo.”

“…Não…” A voz fina com que respondi foi o melhor que pude.

A mesma pergunta ficava girando em minha cabeça. O que eu devo fazer? O que eu vou conseguir fazer?

O Ayatsuji-sensei fugiu para não me matar. Agora que pediram para procurar o responsável pela morte do Kubo, todas as condições para a ativação da morte acidental estão preenchidas e não dá mais para cancelar. Se ele encontrar a menor prova que seja, eu sofrerei um acidente inevitável. Por isso ele só pode fugir de solucionar o caso. Como não há nenhum meio de pará-la, só resta postegar a solução.

A Divisão está perseguindo esse Ayatsuji-sensei. Como alvo de execução. Não importa quantas vezes eu pense, a situação é a mesma. E o resultado também. Não há nada que eu possa fazer. As ordens de execução são absolutas.

Mesmo que eu fale sobre a verdade, é uma realidade inegável que ele enganou o monitoramento para escapar e ainda inventou um culpado falso, traindo a Divisão. Para começar, um Usuário de Perigosidade Máxima poder sair por ai livremente mesmo sendo monitorado era uma situação anormal. O ricochete agora está vindo com tudo.

De repente, Asukai-san expirou fortemente.

“Eu sou o mesmo.” Quando eu virei, ele estava com o olhar fixo em um ponto da parede. “Estive pensando se não há um jeito para essa situação. Mas a realidade é severa demais. Não há nada que possa ser feito.”

Não conseguia ver sua expressão muito bem no escuro interior. Apenas, sua voz reprimida ecoava no interior chacoalhando.

“Tsujimura-chan. Você está calada há um tempo, mais a verdade é que… tem uma ideia do verdadeiro motivo pelo qual o Ayatsuji-sensei fugiu, não é?”

“…Sim.” Eu acenei de leve.

“Sabia.” Ele suspirou. “Foi um plano do Kyougoku, não é?”

“…É o que penso.“

Cúmplices sem intenção de matar. O Traficante de Fuga, Saeki, a Máfia do Porto. Todos os criminosos que o colocaram na caixa e o levaram para ponte fizeram por vontade própria. Eles não pensavam nem um pouquinho se quer que estavam cometendo um assassinato. Então não podem se tornar alvos da morte acidental do sensei. A mais próxima de ser um culpado sou eu. Não tem como ter sido coincidência essa situação surgir. Todos eles carregaram uma parte da responsabilidade do truque sem nem saberem que estavam sendo controlados pelo mentor de tudo.

Um ataque à imperfeição da Habilidade do Ayatsuji-sensei. O único ponto fraco dele que ninguém pensou. Só uma pessoa é capaz disso. Seu arqui-inimigo, o ventrículo que faz as pessoas agirem de forma inconsciente.

“Kyougoku…”

Engrenagens meticulosamente e sutilmente encaixadas pelo demônio do conhecimento.

Eu tremi. A saída está completamente fechada. Não havia uma frecha por onde escapar. Eu não fazia a mínima ideia da grandeza do inimigo. A ilimitada malícia e astúcia daquele necromante.

“O Kyougoku finalmente encurralou o Ayatsuji-sensei.” Asukai-san murmurou baixinho. “Mesmo assim, não significa que ainda não há outro jeito.”

Eu olhei atentamente para ele. Não significa que não há outro jeito?

“O Ayatsuji-sensei provavelmente pretende enfrentar diretamente o Kyougoku.” Asukai disse com o rosto pensativo. “Nem mesmo ele pode fugir da Divisão. Por isso ele pretende enfrentar pela última vez o Kyougoku nesse tempo limitado da fuga. Esse momento será a última oportunidade de capturá-lo.”

“Capturá-lo?” Acabei falando alto sem querer.

“Fale baixo.” Ele diminuiu o tom da sua voz. “De fato não é um método inteligente. Mas a Divisão cercar o Ayatsuji-sensei significa que ao mesmo tempo poderá se aproximar do Kyougoku. É ai que o pegaremos. A essa altura do campeonato, só a confissão do Kyougoku pode provar a inocência do Ayatsuji-sensei.”

Mas. Aquele Kyougoku faria algo tão impulsivo assim?

“…Há uns anos, eu e minha parceira conseguimos cercar ele.“ Asukai-san disse de repente. “Pensei ser um caso como qualquer outro. Até porque não havia nada que o incriminasse, ele é um civil exemplar. Mas havia inúmeros casos de assassinato fedendo a sangue acontecendo ao seu redor, então ele foi posto em observação por via das dúvidas.”

Como se relembrando, ele olhou para algum lugar distante.

“Certo dia, quando eu voltei para o local de monitoramento, minha parceira estava morta, cortada em pedaços.” Ele esfregou seu rosto, cansado. “O culpado logo foi encontrado. Era um ladrão qualquer que havia invadido a casa. Não havia nenhuma evidência dele ter sido comandado. Mas eu sabia. Quem tinha a matado era o Kyougoku.”

Ele tirou suas luvas de couro e encarou suas mãos como se lembrasse do peso do corpo ensaguentado de sua parceira.

“Depois eu descobri que a Yui… estava grávida de três meses.” Asukai-san sacudiu a cabeça. “Desde esse dia, eu persigo o Kyougoku. Não preciso de provas. Só preciso ver seu corpo morto na minha frente.”

Eu fechei os olhos.

“É exatamente como diz.“

A competição entre o Ayatsuji-sensei e o Kyougoku é uma batalha acima das nuvens. Nós pessoas comuns só podemos assistir a ela calados. Contudo — se o Kyougoku acha que nossas balas não podem alcançá-lo, está terrivelmente enganado.

“Você ouviu sobre a situação da busca, né? O satélite localizou o Ayatsuji-sensei nas proximidades de uma floresta. Mas além de estar de noite e ter a obstrução das árvores, não dá para saber exatamente para onde ele está indo e por isso a Divisão precisa cercar a montanha toda. Eles pensam que o Ayatsuji-sensei está fugindo, pretendem encurralá-lo estreitando o cerco. Porém…”

“Ele não está fugindo. Eu tenho uma ideia de para onde ele possa ter ido.”

“Ele será morto pelo cerco das Forças Armadas.” Vestindo suas luvas de volta, ele assentiu discretamente. “Para salvá-lo, precisamos capturar o Kyougoku antes e fazê-lo confessar tudo. Esse é seu frágil último desejo.”

Fazer o Kyougoku confessar os seus crimes. Nós sabíamos o quão difícil e irrealista isso era. Mas não há outro jeito. Eu prendi e soltei a respiração.

— Foi esse seu egoísmo que matou a minha mãe!!

Naquela vez no telefone, eu me deixei levar pela raiva e lhe falei essas palavras. Mas eu estava errada. Ele não fugiu por egoísmo ou nada assim.

No menor descuido, sinto que irei me afogar na tristeza que sobe até minha garganta.

Será que o Ayatsuji-sensei conseguirá confrontar o Kyougoku? Eu não sei. Será que conseguirei alcançar ele antes que o Kyougoku desapareça? Também não sei.

No entanto, eu sei que há uma única coisa que não posso mais tentar esconder. Mesmo que eu seja uma agente de primeira classe que obedece às ordens. Mesmo que executá-lo seja a conduta correta. Mesmo que eu tenha treinado para o dia em que esse momento chegaria…

 

Eu não atirarei no Ayatsuji-sensei.

 

✦ ✦ ✦

 

A cascata cai estrondosamente.

A ravina esfumaçada é salpicada pela água. A luz do sol já se foi e as luzes das lâmpadas indicando atividade humana se encontram ao longe.

Se o crepúsculo é a hora dos demônios, a hora em que a fronteira que liga esse e o outro mundo aparece, a cascata envolta pela noite é do começo ao fim o mundo espiritual, o submundo. As leis desse mundo não se aplicam aqui, pois estamos naquele outro. Há apenas a luz da lua crescente como as garras de uma aparição arranhando a noite.

Nessa hora e lugar funestos, uma sombra silenciosa se encontra imponente.

É alto. De boina e óculos escuros. Olhando para longe sem emoção nenhuma, o vento noturno que começou a soprar expunha seu corpo. 

O Detetive Assassino.

Sem falar ou fazer o menor movimento que fosse, apenas seus pensamentos vagavam pelas cortinas da noite, dissolvendo nas profundezas.

De repente, ele abriu a boca.

“Há quanto tempo.” Sua voz igual a um grave instrumento de corda fez a atmosfera tremer e foi absorvida pelas árvores farfalhando. Até que a resposta veio por trás.

“Exato.” Uma voz refrescante como uma flauta que não permite saber suas verdadeiras intenções.

“Já faz três meses que nos enfrentamos aqui. O tempo voa.”

“Você caiu daqui.”

Kyougoku começou a relembrar distraído.

“Foi como um sonho.”

“Desde aquele dia… você esteve preparando tudo para esse momento?” Ayatsuji se virou.

A figura deslizou silenciosamente da profunda montanha. O velho cuja metade direita do rosto estava escondida pelas sombras das árvores e a outra metade iluminada por uma nebulosa luz lunar, surgiu de entre as montanhas.

Metade de seu corpo estava fundido com a escuridão, absorvido pela floresta, exalando a sensação de que fazia parte dessa surreal ravina.

“Eu não tenho autoridade. Nem companheiros. Somente esta cabeça. Aqui…” Ele bateu com o dedo em sua têmpora, “…há um paraíso. Um paraíso perfeito. ‘Como um punhado de sal sem exterior ou interior é um punhado de sabor perfeito, essa minha existência sem exterior ou interior é um amontoado de sabedoria'.”

“Upanixade? Você não tem consistência nas suas citações.”

“Eu leio todos os livros que registram a verdade. Por exemplo, Sun Tzu e Kant. Além disso, será que as descrições da mecânica quântica estão completas?”

“Agora é a teoria do paradoxo EPR de Einsten? Realmente, a mecânica quântica, a física da cognição e do irreal, é uma teoria que combina com você.”

As escuras árvores chacoalharam com o vento. A névoa azulada que subia do lago pairava entre eles.

“Ayatsuji-kun. Devo te agradecer.” Kyougoku levantou a cabeça de repente, dizendo. “No final das contas você foi quem mais me ajudou a alcançar meu objetivo. Ninguém mais teria servido.”

“De fato.” Ayatsuji respondeu enquanto andava. As folhas secas sendo pisadas estalaram. “O seu objetivo não era matar, nem ganhar de mim. Diga qual é.”

“Difusão.” Kyougoku respondeu imediatamente com a voz rouca. “Você conhece a essência de um youkai?”

Ayatsuji não respondeu, apenas ficou olhando calado para o outro. “A essência de um youkai é difundir.” Ele entrelaçou os dedos. “Se olharmos num nível individual, viver é adjacente a uma paisagem de medo. As montanhas, a água, a escuridão do coração. Talvez exista um mundo dos espíritos em que habitam coisas de natureza desconhecida, inalcançáveis à percepção. Mas isso é apenas uma sensação de terror. Youkais não nascem. Eles podem ser transmitidos pelos livros e oralmente. Eles podem migrar de um coração ao outro. O Ushi-oni que aparece frequentemente na praia ou no fundo da água; o En'enra o qual o rosto surge como fumaça e o pássaro Basan invisível. Eles são uma forma de vida informativa que se multiplica através do medo. Seres imortais que habitam as estruturas chamadas de vilas e cidades.”

“Mas eles não existem de verdade.” Ayatsuji concluiu com a voz grave.

“Exato. Não existem.” Kyougoku assentiu. “Pela mesma lógica, nem os deuses, nem o dinheiro, nem os gêneros, nem o poder e nem a linguagem. Tudo não passa de conceitos coletivos.”

Ayatsuji ficou pensando por um tempo. E então falou:

“O meme?”

“Exato.” Kyougoku assentiu satisfeito. “Sabia que você entenderia a piada. O meme mencionado no O Gene Egoísta, em outras palavras, aquilo que é propagado por meio oral, é como um youkai. Dando um exemplo, o típico espírito maligno Inugami é atribuído a resposta psicológica em massa causada pela infecção do meme. Em resumo, os youkais — são uma forma de vida tecida com memes que infectam o coração humano. Os memes, assim como os genes, são uma arca de informações. Ao meu ver, mais do que os humanos que se multiplicam pouco por meio dos genes, os youkais que existem por mais de mil anos e continuam a se difundir são uma forma de vida muito mais completa.”

Kyougoku deu um passo à frente. Seus pés não faziam o menor barulho.

“E da mesma forma que um youkai, o Mal é um conceito e um meme.”

Ayatsuji ergueu o rosto. Em seu perfil iluminado pela lua, uma expressão de compreensão.

“Entendo. Kyougoku, o seu objetivo é…”

 

✦ ✦ ✦

 

Eu andava pela montanha.

O suor escorria pela minha testa. A respiração ofegante explodia no fundo de minha garganta. Meus dedos e calcanhar latejavam de dor dentro do sapato. Mesmo assim não podia parar de subir com todas as minhas forças.

Se o Ayatsuji-sensei veio para essa montanha acertar as contas com o Kyougoku, só pode ter ido para aquele lugar. O precipício em cima da cascata. O lugar da batalha decisiva de três meses atrás. O lugar em que ele venceu.

Com certeza ele descobriu o truque que fez o Kyougoku sobreviver à queda. E para acabar com ele definitivamente dessa vez, ele foi novamente para lá.

Mas o seu adversário é o Kyougoku. Não dá para saber o que ele fará. E o Ayatsuji-sensei está em desvantagem por estar sendo perseguido pela Divisão. Por isso preciso chegar até ele antes da Divisão de qualquer jeito.

“Ayatsuji-sensei…! Você sempre me faz…!” As palavras transbordavam enquanto eu corria.

Não tem oxigênio suficiente. Meus pulmões vão explodir. Mas em resposta a dor, minhas pernas aceleram cada vez mais. Um segundo mais rápido que seja por essa trilha acidentada. Eu impelia meu corpo mais e mais adiante.

Não era o sangue que me dava forças para correr. Era algo invisível aos olhos. Palavras sem se formarem que jorravam de minha garganta.

“Se pensa que eu sou uma menininha…!” As palavras engasgadas na minha garganta trêmula. “Sumir sem dizer nada…! Ele passou dos limites, esse homem de sangue frio…!”

Não há dor em correr pela montanha de noite. Nem medo.

O que apenas existe é a chance de acontecer algo ao Ayatsuji-sensei em breve. E antes que isso aconteça — há algo que eu preciso dizer para ele de qualquer jeito.

 

✦ ✦ ✦

 

“O que é o Mal?” Kyougoku andava sem fazer barulho com o dedo levantado, indo em direção ao Ayatsuji. “Essa pergunta já foi repetida muitas vezes. Nos julgamentos, nos livros de História, nas fábulas… Mas se eu pudesse dizer, diria que a essência da vida é o Mal, e não o Bem. Em outras palavras, priorizar a si mesmo.”

Sua voz ia dissolvendo na névoa.

“Os leões roubam o trono de seus líderes e matam os filhotes do líder anterior. Os chimpanzés matam e comem seus vizinhos e bebês. Bandos de golfinhos se divertem perseguindo e ferindo por um longo período outros golfinhos menores até matá-los. Desde o princípio, viver inclui um certo grau de maldade para os organismos. De fato, prejudicar os outros para vantagem própria não é algo permitido por esta sociedade. Se permitisse, a sociedade entraria em colapso. Porém, proteger a si mesmo e aqueles que você ama, não é uma característica humana? Quando a sociedade se tornar apenas uma máquina de corte que destrói o brilho original do ser humano ao punir o Mal — não será Ele que realmente libertará as pessoas?”

“Essa é a sua religião?” Ayatsuji disse com uma voz congelante. “Por isso você construiu um poço que transforma as pessoas em más?”

“Nem todo mundo é forte assim como você, Ayatsuji-kun.” Havia uma certa gentileza contida na voz rouca do Kyougoku. “Aqueles que iam até o poço eram pessoas inocentes pressionadas pela sociedade que sem conseguirem gritar, agarravam-se ao Mal buscando humanidade. Por esse lado, pode-se dizer que eu estava fazendo um trabalho filantrópico.”

“Que lógica tola.” Ele o cortou bruscamente. Não me diga que se esqueceu do casal que fez atirar um na cabeça do outro. Aquilo também foi filantropismo?“

“Pelo menos ambas as filhas se salvaram.”

“…”

Ayatsuji o encarou com olhos preenchidos de vontade de matá-lo.

“Claro que eu entendo isso ser um sofisma. Mas é a esse ponto que o meme chamado ‘Mal' move o coração das pessoas. Ou seja, ele tem um poder de reprodução. Eu não penso em salvar o mundo com os poços. O importante para mim é essa reprodutividade. E da mesma forma, a reprodutividade dos youkais e lendas urbanas é um componente que não pode faltar na minha grande empreitada pela qual arrisquei minha vida. Assim como você.”

Ele andou até ficar bem ao lado do Ayatsuji.

Uma cascata branca. Uma fina lua crescente. O som da água caindo e o vento ressoavam.

Esse era um reflexo do confronto decisivo de três meses atrás. As mesmas figuras. O mesmo barulho de queda d'água. Só havia uma única diferença.

“Apenas eu fiquei falando.” Kyougoku disse sorrindo. “Agora é a sua vez, Ayatsuji-kun. Um detetive precisa resolver o mistério.”

“…Sim.” Ayatsuji respondeu calmamente.

“Então vamos verificar as respostas. Há dois mistérios. Da última vez, como eu sobrevi à sua Habilidade que foi ativada pela moeda? E como eu sumi de um porão sem saída no abrigo subterrâneo após você solucionar o enigma? Você sabe?”

“No lugar das respostas, vamos fazer assim.”

Ayatsuji apontou o revólver, que havia escondido, para Kyougoku.

“Ohh…” Kyougoku fez uma cara de surpreso. “Um detetive não deveria lutar usando a cabeça?”

“Não. Não entre nós.”

“Tem razão.” Kyougoku riu se divertindo. “Mas tem certeza, Ayatsuji-kun? Você também está sendo perseguido pela Divisão. Se quando eles chegarem você tiver uma arma, eles não atirarão sem nem dar tempo para você se explicar?”

A ponta da arma estava pressionada na têmpora do Kyougoku, emitindo um som abafado contra o osso.

“Sei lá.”

Ele levantou o martelo. O gatilho em seu dedo.

Kyougoku riu olhando para o céu estrelado.

“É uma bela lua.“

 

Disparos.

 

✦ ✦ ✦

 

Sentindo o impacto enquanto estava correndo, eu parei por um instante.

Isso foram tiros. Três.

O disparo do revólver como o rugido de um leão foi sugado pela negra floresta ao redor e desapareceu.

O precipício está logo à frente. O clarão que eu vi veio daquela direção.

O Ayatsuji-sensei atirou no Kyougoku? Ou foi o Kyougoku quem atirou? De qualquer forma, o confronto já está acontecendo.

“Ayatsuji-sensei!” Eu sai disparada.

Tirei a arma do coldre. Chutando a terra, pulando as pedras, antes que tudo acabasse, em direção ao local do confronto final.

Eu sai num lugar aberto. Uma figura segurava uma arma. A alta sombra iluminada pela lua não deixava dúvidas. Era o Ayatsuji-sensei. Ele está armado. Cheguei a tempo. Kyougoku está logo ali também.

“Sensei! Afaste-se do Kyougoku!” Eu fui me aproximando com a arma em posição, prestando atenção ao meu redor.

“Tsujimura-kun.” Ele disse tranquilamente, olhando para mim. “Você veio até aqui? …O que eu faço com você, sério. E a Divisão? Uma tropa deve estar vindo me matar.”

“Não temos tempo!” Eu gritei. “Onde está o Kyougoku?! Ele poderá confessar todas as artimanhas! Só dá para te salvar assim!”

Eu procurava o inimigo com a arma. Havia muitas sombras. Cadê. Onde ele está?

“O Kyougoku está aqui.” Ele olhou para o lado. “Não é, Kyougoku?”

 

✦ ✦ ✦

 

“O Kyougoku está aqui.” Ele viu o Kyougoku por cima de seu próprio ombro. “Não é, Kyougoku?”

“Certamente.” Kyougoku riu alegre. “Pensar que ela ignoraria as ordens da organização e viria até aqui sozinha. A sua Familiar é bem leal. Tenho inveja.”

“Ela não é minha Familiar.”

Ele olhou a Tsujimura procurando pelo Kyougoku sem ar.

 

✦ ✦ ✦

 

“Ela não é minha Familiar.” Ele disse para alguém ao seu lado. Eu apontei a arma na direção de seu olhar. Será que o Kyougoku está lá?

“Kyougoku, está ouvindo? São os passos das Forças Especiais.” Ayatsuji-sensei olhou para o interior da floresta. “Parece que está chegando a hora do fim.”

Eu também conseguia ouvir o som das Forças Especiais correndo pela floresta. Não há mais tempo.

“O quê? Sim, foi mal, Kyougoku. Você queria me ver com medo, né? Infelizmente como eu já sabia, não fiquei assustado.”

O Ayatsuji-sensei está falando com o Kyougoku. Sem dúvidas.

“Não, Kyougoku. Você deveria saber… O quê?”

Eu procurava ele com a minha arma. Cheguei até a frente do Ayatsuji-sensei. Não havia nada.

Um terror gelado surgiu em minha garganta.

“Sensei!” Eu gritei apontando a arma. “Não há ninguém aqui! Ninguém!”

 

✦ ✦ ✦

 

“Não adianta, Tsujimura-kun.” Ayatsuji pôs a mão no ombro da Tsujimura que gritava. “Eu percebi quando estava no abrigo. Lá era uma sala trancada perfeita. Era impossível escapar até para o mais gênio de todos. Então só havia uma explicação.”

“Isso mesmo.” Kyougoku ria ao seu lado.

“Ele nunca esteve lá.” Tsujimura olhou atônita para o Ayatsuji. “Esse era o truque. O Kyougoku que sobreviveu à queda da cascata na verdade não existia. Não há ninguém que possa escapar da minha morte acidental. É a Navalha de Ochkam, Tsujimura-kun. No caso de várias hipóteses, a mais simples é a verdade.”

Ayatsuji disse olhando para o Kyougoku rindo.

 

“O Kyougoku morreu há três meses após cair da cascata.”

“Nã-Não…” Tsujimura pálida, disse tremendo. “Então… o caso…”

“O que está aqui são os restos dele — um espírito maligno. É a Habilidade que ele lançou em mim logo antes de morrer. Não será possível fazê-lo confessar seus crimes para me inocentar. Porque ele não se encontra em nenhum lugar mais desse mundo.”

 

✦ ✦ ✦

 

As palavras do Ayatsuji-sensei ressonavam sob a luz. Eu dei um passo para trás com as pernas bambas.

“Impossível…”

O Kyougoku morreu? O Ayatsuji-sensei está falando com um espírito criado pela Habilidade?

Eu tentei lembrar desesperadamente.

A primeira vez que o Kyougoku apareceu na frente do sensei após a queda foi quando o casal se matou atirando um no outro. Naquela hora, somente o sensei estava lá. A única testemunha, o casal, morreu. Eu e a Divisão ficamos sabendo de seu retorno pelo relatório. Não o vimos diretamente.

O próximo contato com ele foi na linha do trem. Quando enfrentamos o Kubo. O Kyougoku se comunicou por um transmissor naquela hora. E quem tinha o transmissor era o Ayatsuji-sensei. Ninguém mais escutou sua voz. Todas as decisões foram feitas a partir das explicações do sensei. Na confrontação do abrigo subterrâneo também, somente quem estava ali eram os dois. Nenhuma outra pessoa o viu. O Traficante de Fuga e o Kubo não encontraram com ele diretamente. Ninguém. Ninguém —

“Mas… ” A mão que segurava a arma tremia. “O Kyougoku… está morto? Então contra o que nós estávamos lutando…?”

“O Kyougoku é uma Singularidade que nasceu nesse mundo.” Ayatsuji-sensei disse calmamente. “O gigantesco dispositivo sem forma que ele criou antes de morrer está se espalhando como uma doença infecciosa que atravessa o tempo. Não importa mais se seu corpo físico está aqui ou não.”

“Mesmo que seja assim… Por quê?” Eu disse com a voz trêmula. “Por que motivo ele fez isso… ao ponto de morrer… Para o quê…”

“Ainda não sabe?” Ele disse sem nenhuma emoção. “O poço. O rumor sobre o Hokora do Mal. O meme que prolifera a si mesmo. Seu objetivo está claro. Ele…” Sensei olhou para o espaço vazio ao seu lado e murmurou com a voz seca:

“Você queria se tornar um youkai, não é, Kyougoku?”

“Larguem as armas!” Vozes nervosas atravessaram o precipício.

Os soldados completamente armados cercavam sem fazer nenhum barulho — eram as Forças Especiais considerada a mais forte do país no controle de Usuários, a Telha Negra.

Havia vinte e duas pessoas na tropa de choque e seis atiradores. Estamos completamente cercados.

“Esperem, por favor!” Eu gritei. “O Ayatsuji-sensei não traiu a Divisão! Para me proteger, ele…!”

“Tsujimura-kun, pare. O motivo não importa mais.” Uma voz calma veio da escuridão.

Sakaguchi-senpai apareceu de dentro da floresta escura.

Ele é um agente brilhante. Realizou diversas operações secretas, era um especialista no combate a  crimes de Habilidade.

“Usuário Criminoso, Ayatsuji. Nós o reconhecemos como um Usuário de Perigosidade Máxima oferecendo risco de pertubação à segurança pública. Desse modo, com base no regulamento para lidar com tais indivíduos… você será ‘removido’.”

Sua voz fria ecoou severamente pelo precipício.

“Espe—” Quando fui tentar correr para impedir, um braço preto me segurou por trás de repente.

Pegou minha arma, segurou meu ombro e minha cabeça, os jogando contra o chão. Vários membros das Forças Especiais subiram em cima de mim, roubando a minha liberdade.

Uma costela quebrou. Minha respiração comprimiu. Mesmo assim eu não parei de gritar.

“Ayatsuji-sensei! Por favor, conte a verdade a eles…!”

Senti algo frio na parte de trás de minha cabeça. Era um rifle empurrado contra a mesma. Quem tentar defender um alvo de execução também será executado.

“Parem! A Tsujimura-chan não é uma criminosa! Abaixem as armas!”

Ouvi alguém correndo. Era o Asukai-san.

Eu não consegui ver ele por estar pressionada no chão, mas percebi pela presença removendo a arma para longe de minha cabeça.

“Ayatsuji-sensei, se tratando de você, sei que não está surpreso com essa situação.” Ouvi a voz fria do Sakaguchi-senpai. Pela primeira vez senti medo dela.

Calmo, severo, às vezes irônico, um agente superior com quem eu posso contar. Sakaguchi-senpai sempre mantendo a compostura que só um acadêmico tem.

Mas ao ouvir sua voz agora, eu entendi num instante. Não havia mais nenhuma hesitação dentro dele em atirar no Ayatsuji-sensei. A crueldade em roubar a vida de um criminoso como se arrancando uma fruta da árvore.

Assim como o Kyougoku e o Ayatsuji-sensei, Sakaguchi-senpai é um transcendental que habita as nuvens.

“Se quer atirar, atire, Sakaguchi-kun.” Ele estava calmo como sempre. “Eu perdi a minha disputa contra o Kyougoku. Desde que ele caiu da cascata três meses atrás, o resultado já estava decidido. E o desejo dele é a minha morte. Não há mais nada a se fazer.”

Eu consegui levantar minha cabeça de alguma forma e olhei na direção da sua voz.

No final da minha linha de visão estava o Ayatsuji-sensei em pé de costas para a cascata, e o Sakaguchi-senpai próximo a ele segurando a arma em posição. As Forças Armadas a postos o cercando. Atrás dele o penhasco. Não havia para onde fugir.

Talvez a polícia normal fosse levada por sua eloquência, mas contra a Divisão e o Sakaguchi-senpai era impossível.

“O relatório contendo a minha opinião sobre o caso do Kyougoku está escondido no escritório. Podem ler depois que eu morrer.” A expressão do Sakaguchi-senpai vacilou por apenas um instante ao ouvir as calmas palavras do sensei.

“Agradeço a sua cooperação… até o fim.” A arma estava apontada precisamente contra sua cabeça.

O Ayatsuji-sensei não estava vestindo um colete à prova de balas. E mesmo que estivesse, não serviria para defender contra uma bala na cabeça.

“Pare… Pare, por favor!” Minha garganta doía como se estivesse em chamas. Todo o meu corpo estava em dor. “Eu sei que é o regulamento! Mas por favor…!”

Sakaguchi-senpai ajustou a mira. É uma distância de menos de dois metros. Não tem como errar.

“Ayatsuji-sensei.” Ele fechou os olhos. “Obrigado pelo seu trabalho.”

Ayatsuji-sensei olhou na minha direção. Nossos olhos se encontraram. Pela primeira vez… ele sorriu ao me olhar. E então ele abriu a boca querendo dizer algo…

Três tiros.

Como se tivesse sendo puxada, sua cabeça foi para trás. E assim ele caiu no lago.

Todos os sons ao meu redor desapareceram. Minha alma gritou.

Inconscientemente, eu torci o braço do soldado que me mantinha pressionada. No momento em que ele afrouxou a força, eu sai de sua restrição e corri.

“Ayatsuji-sensei!”

Por quê?

Por quê? Por quê? Por quê?

Por que isso aconteceu? Por quê?

Eu corri precipício abaixo. Luzes vermelhas e branco piscavam diante dos meus olhos. Não conseguia pensar em nada. Apenas todos os músculos do meu corpo me puxavam para frente com uma força inacreditável.

Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por que, você fez isso por mim, sensei…

O lago no final da queda estava envolto de estrondos e pela névoa da cascata. Não parecia um lugar desse mundo. Longe de poder procurá-lo, não dava nem para me aproximar.

Lembrei do relatório de três meses atrás. Esse lago era extremamente perigoso. Impossível sobreviver após uma queda.

“Não…”

O sentimento penetrando todo o meu corpo da cabeça às pontas dos meus dedos — o sentimento de saber que ele morreu para me proteger — fazia arder cada uma das células do meu corpo.

Escutei passos atrás de mim.

“Há vestígios de algum outro Usuário ou colaborador nas redondezas?”

“Negativo.”

Ouvi o Sakaguchi-senpai ordenando as Forças Especiais. Mas nada entrava na minha cabeça.

“Será difícil procurar nessa escuridão. Vamos manter a vigilância no perímetro e amanhã de manhã procuraremos pelo corpo.”

Eu não virei, apenas continuei olhando para o lago.

Por quê?

Por que ele me protegeu? Se ele tivesse me entregado como a responsável pela morte do Kubo — isso não teria acontecido. Ele não teria morrido.

Por que ele me salvou?

Meu coração gritava. Apesar de eu saber a resposta, minha cabeça não entendia.

Nessa hora, um calor correu pelo meu corpo e uma pergunta surgiu em minha mente. Quem levou o Ayatsuji-sensei a isso?

“Tsujimura-kun.” Sakaguchi-senpai me chamou por trás. “Vamos voltar para o quartel-general.”

Eu não respondi.

“Tsujimura-kun.”

“Isso é estranho.” Eu me virei.

“Tsujimura-kun…”

“Estranho. Alguma coisa está estranha.” Eu continuei a repetir as palavras como uma boneca automática.

“Sakaguchi-senpai. Pense bem. Por que o Kyougoku armou esse plano? Ele preparou tudo há três meses e morreu. Mas… isso não explica uma coisa.”

Eu sabia que meu coração estava em convulsão. Eu não conseguia parar de falar. Era como se meu cérebro estivesse pegando fogo.

“O Kubo pretendia fugir sozinho, mas ele morreu. O dia e hora em que embarcou no navio, o dia e hora da transação da Máfia do Porto e a hora em que a ponte levadiça ativa. A menos que alguém reunisse essas três condições, essa armadilha de hoje não estaria completa. Mas não foi o Kubo que as reuniu. Então quem? Quem no lugar do Kyougoku que estava morto, coordenou o momento de fechar a armadilha?”

“Bem…” Sakaguchi-senpai começou a pensar.

“Antes dele morrer, Kyougoku planejou detalhadamente para que esses três momentos acontecessem. É o que nos leva a pensar. Mas mesmo que o dia e a hora em que o Kubo fugiria e a hora em que a ponte abriria estivessem alinhados, não é irreal que desse para ajustá-los desde três meses atrás com a negociação da Máfia do Porto? Mesmo que desse para controlá-los a partir do poço, seria um plano fundado sobre incertezas demais… aquele Kyougoku faria isso? Mesmo sendo um projeto tão importante.”

Alguém falava dentro de mim.

Eu sou apenas uma pessoa comum. Não chego nem aos pés do Kyougoku e do Ayatsuji-sensei. Mas a experiência de ter visto da primeira fileira o sensei solucionar os casos pegou emprestado meu cérebro e minha boca, tentando dizer algo.“

Esse caso…

“Há um perpetrador, Sakaguchi-senpai.” Eu declarei. “Um subordinado do Kyougoku. Bem próximo de nós. Que cuidava do poço. Que espalhava os rumores. Essa pessoa conseguia saber do andamento da investigação em detalhes, era absolutamente obediente ao Kyougoku e revisou tudo prevendo as nossas ações. Após a morte do Kyougoku, ele herdou sua ‘cerimônia'…”

Como eu posso chamar essa pessoa? É mesmo. Um 'Familiar'.

O Kubo não era o Familiar do Kyougoku. Ele não sabia sobre o plano geral, era apenas uma peça. Então, o Familiar é…

“Não fale mais nada, Tsujimura-chan.”

Sentir uma dor ardente correr pela minha coxa com o súbito bramido do disparo. Tentando gritar sem conseguir, eu titubeei para frente.

“…Gahah…!“

Só não cai porque alguém me segurou violentamente pelo pescoço.

“Sakaguchi-san, largue a arma. Não quero matar sem necessidade.”

Uma voz veio por trás de mim. Senti sua vibração pela mão me segurando.

“Por… Por quê?”

 Toda a minha mente ficou vermelha e um alarme ecoou pelo meu corpo. A voz que eu conseguia ouvir fracamente era de alguém que eu conhecia.

“A ‘cerimônia’ dele ainda não terminou.”

Sem poder mover a cabeça, verifiquei a situação apenas com o olhar.

“Por que… Por que você…”

Uma arma apontada na minha têmpora esquerda. A presença de alguém atrás de mim.

“Eu também não queria ter que fazer isso, Tsujimura-chan. Mas não há outra opção.”

Eu toquei a ferida que doía intensamente. Ainda não conseguia acreditar no que estava acontecendo.

Uma tempestade de areia corria pela minha cabeça. Não conseguia acompanhar a situação por causa da dor e da confusão.

Mesmo assim as palavras jorraram da minha garganta.

“Por quê?! O Kyougoku foi quem matou sua parceira! Então, por quê?! Responda… Asukai-san!”

Quem estava com a arma apontada em minha cabeça era o investigador Asukai. O Investigador de alto nível da Polícia Militar. O forte investigador que perseguiu o Kyougoku por todo esse tempo.

“Eu também estou com medo.” Sua voz próxima ao meu ouvido. Ela estava — tremendo. “Por isso eu não poderia agir até que o sensei morresse. Mas… você entende, não é?”

“O que…?” Minha voz também tremia.

“Que a hora chegou. Tsujimura-chan… Por aqui.”

Ele me empurrou pelas costas. Eu não conseguia escapar da mão que me segurava firmemente. Nós fomos recuando enquanto meus pés eram arrastados. Em direção ao lago.

Ele vai fazer alguma coisa. Meus pensamentos refletiam difusamente dentro de meu crânio.

Por quê? Por que o Asukai-san fez isso? Ele sempre perseguiu o Kyougoku. Ele deveria odiá-lo por ter matado sua parceira. Ele ajudou a mim e ao Ayatsuji-sensei inúmeras vezes durante esse caso. Ele estava comigo no meu carro na perseguição com a Máfia do Porto e quase morreu no tiroteio. Se ele é o culpado, então pra que…

Estou errada?

É o contrário?

Quando fomos atacados na estação de esgoto pelas Forças Especiais, o Asukai-san estava ali. Eu tinha escolhido aquele lugar meticulosamente para a nossa reunião secreta justamente para não sermos descobertos.

Não há dúvidas de que deve ter sido difícil guiar meu carro até a ponte num tempo específico com a perseguição no porto. Se eu tivesse atravessado a ponte antes de colocarem as caixas, o plano estaria arruinado.

— Tsujimura-chan, eu vi o carro dele!

— Tsujimura-chan, o carro dele está no navio!

Ele estava me guiando enquanto administrava o tempo?

“Agora que o Ayatsuji-sensei morreu, a Cerimônia finalmente entrará na sua fase final.” Ele disse tranquilo. “Para começar, a ‘Cerimônia' era uma série de ordens que eu havia recebido. E essa é a última.” Ele pressionou a arma contra a minha cabeça.

De fato o Asukai-san seria capaz de esconder o corpo do Kyougoku. Mas por qual motivo ele com seu senso de justiça ardente faria isso?

“Asukai-san… Não me diga que…” Aguentando a dor na coxa, eu forcei minha voz. “Um espírito maligno possuiu você?”

“Não. Eu não estou possuído. Fiz tudo pela minha vontade.” Ele disse atrás de mim. “Eu lutei com ele certa vez no passado. Como um investigador responsável por um caso. Mas ele havia ultrapassado o ponto de um ser humano. Não tem como um humano vencer uma aparição.”

Aparição — Kyougoku.

O homem que me fez a culpada de um caso de assassinato e fez o Ayatsuji-sensei ser morto.

“O que você acha que as pessoas fizeram ao longo da história em relação àquilo que os transcendem? Foi temê-los e reverenciá-los, Tsujimura-chan. Rezar e serví-los para não ser queimado por um capricho. Pode-se fazer somente isso.”

No canto da minha visão, consegui ver o revólver que ele segurava. Virei minha cabeça forçosamente e o olhei.

“E assim eu fiz — naquela hora e cinco anos atrás também.”

Encontrei algo estranho na minha linha de visão. Asukai-san sempre estava de luvas. Mas não agora. Em um de seus brancos dedos iluminados pela lua, uma antiga cicatriz branca se encontrava. Como se envolvendo o dedo. Se eu não estivesse tão próxima a ele, não teria percebido essa ligeira marca.

Essa cicatriz… parecia de ter sido cortado uma vez e posto no lugar novamente.

Um pedaço do dedo anelar esquerdo.

“Não…” Eu gemi. “Não me diga que você…”

Lembrei do Kubo. Ele admitiu ser o assassino do caso na ilha Reigo. Ele mesmo falou. Mas não há nenhuma prova objetiva além disso.

“Investigador Asukai. Solte-a.” Sakaguchi-senpai disse firme.

Mas o Asukai-san se escondeu atrás de mim me usando como escudo. E não havia como eu resistir com a perna nesse estado.

“Eu não pretendo sobreviver e fugir, Sakaguchi-san.” Ele disse tranquilo. “‘Com a morte do Ayatsuji-sensei, da Tsujimura-chan e a minha no mesmo local, o primeiro Hokora do Mal estará completo'. Essas foram as suas palavras. Um youkai indomável que devora aqueles que o perseguem e concede o poder do Mal para aqueles que o reverenciam. Espalhando esse rumor, ele poderá permanecer nesse país. Esse era seu desejo já que não pôde deixar seus genes.”

Recuando, nós entramos no lago. O frio da água correu pela parte do meu corpo submersa, me fazendo gemer.

“Muito bem, tudo acaba agora.”

Asukai-san foi para trás. Estávamos com água na altura da cintura. Daqui eu já conseguia sentir de perto o estrondo da queda d'água a ponto de meu crânio tremer.

Um tinido ecoou nos meus ouvidos.

“Adeus.”

Era o som do fim.

Ahh… Eu vou morrer aqui? Sem ter conseguido perguntar sobre a minha mãe. Vou desperdiçar a vida que o Ayatsuji-sensei morreu para proteger.

“Mãe…” A voz escapava da minha garganta independente da minha consciência. “Socorro… Alguém…” Ele pressionou a arma na minha têmpora. “Socorro… ” Eu não conseguia parar de falar.

Minha consciência se esvaia por eu ter perdido sangue demais. Eu já não sabia mais o que falava.

“Socorro… Mãe… Socorro…Sensei…”

Meu corpo estava esfriando. A presença da morte me envolvia…

“Socorro? Que bela agente de primeira classe você é, Tsujimura-kun.”

Eu ouvi a voz. Estava alucinando. Não tinha como ouvi-la.

Porque…

Porque essa voz era do…

“E você também, hein, Asukai-kun. Pensar que no momento que eu morri, você foi e revelou sua identidade… Realmente é muito estúpido comparado ao Kyougoku.”

“Impossível…”

Asukai-san tentou virar para a direção que a voz vinha. Ele tentou apontar a arma, mas seu braço estava congelado por alguma força invisível.

“Assim que eu encontrei o Kubo, eu percebi que ele não era o Engenheiro. Era completamente impossível ele ter incitado dezessete pessoas a ajudá-lo com aquela maneira de falar. Tinha que ser alguém mais convincente. Por exemplo, um investigador apoiado pelo governo.”

Uma figura alta pingando dos pés a cabeça. Uma pele pálida como a de um boneco sem vida. Em seus olhos, uma presença fria como se capaz de roubar a vitalidade de alguém.

Um corpo que emanava ar gélido capaz de fazer até uma cobra fugir.

“Ayatsuji… sensei…?!”

Ele não morreu. Está vivo. Mas como…

“Se a especialidade do Kyougoku é morrer e voltar a vida,” ele estreitou os olhos, dizendo. “eu quis roubar esse ponto forte para mim.”

“O que… A arma… Eu não consigo mover meu braço…?!”

O braço do Asukai-san não conseguia se mexer. A mão que segurava a arma era como se estivesse costurada no ar. Sendo que ninguém estava o tocando.

“Tenho sua confissão. Consegui o que eu queria.” Molhado, ele disse exalando ar gélido. “Não preciso mais morrer.”

“Impossível! Ayatsuji-sensei… Você precisa morrer! Se você viver, a Tsujimura-chan morre!”

“De fato. Mas já é tarde demais.” Ele olhou para mim com olhos de cobra. “Não percebe? O culpado pela morte do Kubo está morrendo nesse exato momento. Uma morte que vai além do carma. Veja.”

Eu pulei tremendo por reflexo. Porque eu sou a culpada. Naquela hora, quem passou por cima das caixas, atropelando o Kubo, foi…

De repente eu senti algo se arrastando e olhei para a superfície da água. Algo se contorcia dentro dela, guinchando feito metal quebrando. Eu olhei para os meus pés.

Uma besta negra sem forma definida — o Filhote de Sombra estava ali. Debatendo-se todo, parecendo que sua estrutura iria se rasgar.

“Quem matou o Kubo foi ele.” Ayatsuji-sensei disse calmo. “De fato, ela passou com o carro por cima dele. Mas um momento antes dele morrer por ter sido atropelado, o Filhote de Sombra se infiltrou na caixa e cortou sua garganta. Porque foi ordenado para isso. Qualquer pessoa que a Tsujimura-kun estivesse a ponto de matar, ele mataria antes. Essa foi a ordem dada pelo seu verdadeiro dono antes de morrer.”

Eu lembrei subitamente de quando estava lutando com as Forças Especiais na estação de esgoto. Naquela hora eu estava apontando a arma para o soldado. Não havia margem para atirar sem matar. Se eu tivesse atirado, a bala teria acertado em cheio seu rosto e ele morrido instantaneamente. Ou no melhor dos casos, teria ficado à beira da morte. Mas eu não disparei. Porque um pouco antes o Filhote de Sombra o perfurou.

Meu corpo tremia.

O cadáver do Kubo estava completamente dilacerado. A maior parte dos ferimentos era do carro, mas ninguém percebeu um único ferimento de foice misturado no meio. Como foi praticamente na mesma hora, não tem como a autópsia distinguir qual ferimento foi o causador da morte.

Filhote de Sombra. A Habilidade amaldiçoada deixada por minha mãe que me persegue.

Mas então — ele previu essa situação novamente agora?

“O Filhote de Sombra não é sua Habilidade.” Ayatsuji-sensei falou. “A verdadeira Usuária morreu há cinco anos. Mas a Habilidade ficou para trás seguindo suas ordens e continuou a te proteger. Protegendo a filha… de sua mestre.”

Como pode… Então minha mãe…

“Vamos lá, desculpa a demora, Asukai-kun.” ele começou a andar tranquilamente. “Agora é a sua vez.”

“Es-Espere! Ayatsuji-sensei, eu ainda…”

“Boa reação.”

Sua boca formava um sorriso e seus lábios transbordavam ar gélido. Ele não era mais humano — A morte escapava do mundo dos mortos a zero absoluto.

“Você sempre soube que esse dia chegaria, Asukai-kun. Desde o dia em que comandou os assassinatos em Reigo como o Engenheiro. Ou quem sabe até mesmo antes — quando matou sua parceira sob ordens do Kyougoku.”

Asukai-san não podia resistir. Ele trouxe a arma na própria direção contra a sua vontade. Mesmo tentando pará-la com a outra mão, a arma se movia como se estivesse viva.

Ele apontou ela para si mesmo.

“Vo… Você não pode me-me matar ainda!” Ele gritava tremendo. “Eu… ainda tenho informações relacionadas ao plano do Kyougoku…!”

“Não preciso.” Ele sorria levemente. Um sorriso tão frio que rivalizava com o de um demônio do submundo ao saborear uma alma.

O Deus da Morte de sangue frio.

Asukai-san colocou a ponta da arma em seu queixo com a própria mão.

“Tente comê-la.”

Sua boca abriu automaticamente e ele enfiou a arma nela. Em seus olhos, absoluto terror.

Ayatsuji-sensei chegou bem perto desse olhar aterrorizado e o olhou se divertindo.

“Adeus, investigador Asukai. Você foi um excelente investigador — e a mais desprezível das desprezíveis merdas que fazia até o corpo de um verme morto por fertilizante parecer um suprassumo. Nem mesmo o Kyougoku conseguiu ser assim. Morra logo contribuindo para a sociedade antes que você apodreça os cérebros das pessoas com essa sua cara imunda e seu hálito fedorento.”

“Gobuah…!”

Antes que ele pudesse gritar alguma coisa, o clarão do disparo explodiu dentro de sua boca. O projétil saído da arma mandou a carne interna voando.

A bala de ponta oca perfurou a cavidade oral e esmagou os ossos da garganta. Além disso, o progétil esmagado ficou agitando-se dentro do crânio. Por ter arranhado o centro do cerebelo, o corpo todo entrou em convulsão involuntária.

Por causa dos espasmos, a pistola automática foi disparada uma vez atrás da outra. As balas em sequência iam explodindo a boca mais e mais, quebrando todos os ossos. Enquanto sangue jorrava do buraco que um dia foi uma cara, Asukai-san gritava. As balas estouravam tendões, músculos e cérebro, fazendo sangue e massa cinzenta voar para trás.

Sem mudar a expressão, Ayatsuji-sensei observava a cena. Quando as balas acabaram e o som do dedo convulsionado apertando o gatilho ecoou no ar, finalmente a vida do Asukai-san se extinguiu.

Mais da metade da cabeça havia explodido, após um breve e fino grito como o de um apito sair de sua garganta — sua cabeça dobrou para trás e ele morreu.

O silêncio voltou ao redor.

“Descanse em paz.” Ele deu um tapinha no ombro do Asukai-san ensanguentado e o empurrou.

O corpo caiu na água e após uma pequena salpicada, afundou.

Todos da Divisão — inclusive os soldados veteranos, sem conseguirem falar uma palavra se quer, apenas olhavam a cena.

Detetive Assassino.

Estavam em pé sem conseguir mover um dedo diante do poder e anormalidade da Habilidade que faz os culpados serem mortos, independente do carma.

 

“…Ayatsuji-sensei.“

Dentre eles, uma figura o chamou com a mesma voz irônica de sempre. Foi o Sakaguchi-senpai.

“É um problema… Esses seus planos arbitrários. Só agora que eu fiquei sabendo da Tsujimura-kun ser a culpada pela morte do Kubo e que o Filhote de Sombra recebeu ordens para matar qualquer um que ela tente matar.“

“Eu te dei informações suficientes, Sakaguchi-kun.” Ayatsuji-sensei disse com o mesmo tom de sempre. “Atirar em mim usando balas de borracha não letais, colocar uma rede no interior da cascata para me pegar e fingir que iria realmente me matar para fazer o culpado baixar a guarda. Você precisava saber alguma coisa a mais que isso?”

Eu fiquei olhando os dois de boca aberta por uns segundos. Até que finalmente percebi. Os dois estavam mancomunados desde o começo.

Para baixar a guarda do Familiar, era preciso fazê-lo acreditar que o Ayatsuji-sensei tinha morrido. Por isso ele instruiu o Sakaguchi-senpai secretamente.

“Isso…” Eu falei zangada sem pensar. “Isso não foi justo! Foi muito cruel! Se era esse o caso, você devia ter me contado tudo antes!”

“Sim, mas… Sakaguchi-kun, responda em meu lugar.” Ele olhou indiferente para o Sakaguchi-senpai.

“Tsujimura-kun. Se você soubesse, mostraria tudo em sua cara, então não dava.” Ele me respondeu inexpressivo.

Os dois são cruéis!

“O Familiar — em outras palavras, era relativamente fácil especular que a pessoa infectada pela loucura do Kyougoku, sofrendo de transtorno delirante, estava dentro da polícia. Porque seria impossível recuperar o corpo do Kyougoku após a queda sem a cooperação de um policial investigando a cena. Mas não havia provas. Por isso fingi ser executado. Se eu morresse, com certeza o Familiar iria agir agora que não havia mais risco da morte acidental”.

“Mas…” Eu tentei refutar. “Você também já sabia que ele era o Engenheiro.”

“Do meio do caminho.” Ele encolheu os ombros. “Eu soube imediatamente que o Kubo não era o Engenheiro, porém ele mesmo acreditava ser. Então faz sentido acreditar que o verdadeiro quis jogar o crime pra cima do Kubo. Fingindo uma memória.”

“Fingindo uma memória?”

“Houve um período em que o Kubo via a alucinação de um macaco. Provavelmente a Habilidade do Kyougoku. O espírito maligno de um macaco… Devia ser um Satori.”

“Satori?”

“Já ouvi falar.” Sakaguchi-senpai disse. “Um youkai que mora nas montanhas e consegue ler a mente das pessoas.”

Eu estava estupefata. Será que só eu não era uma especialista em youkai aqui?

“Sim. Mas as memórias que o Kubo leu, eram do Asukai-kun. Como resultado dele ter ficado vendo por um longo período de tempo os pensamentos e memórias do outro, começou a acreditar que ele mesmo era o assassino da ilha Reigo — o Engenheiro. Bem, provavelmente ele foi feliz achando até o fim que era especial.”

Eu lembrei de sua atitude arrogante na estação. Ele acreditava que matar os outros e ser perseguido pela sociedade era prova de sua excepcionalidade. Me pergunto se ser mal foi o atalho que ele encontrou para se manter e não ser esmagado pela sociedade. Por isso Kyougoku o escolheu.

Conceder o Mal para salvar os indivíduos. Será que era isso o que ele pretendia com aquele poço?

“De qualquer forma… Dessa vez, perdi uns anos de vida.” Sakaguchi-senpai suspirou. “Ayatsuji-sensei. Apresente um relatório para o Secretário desse caso também. Cansei de ser o único repreendido por ele.”

Cansado, Sakaguchi-senpai ordenou as Forças Especiais e voltou para o camburão. Eu fiquei vendo ele ir embora calada.

“Sensei.” Eu olhei para ele. “Bem… Muito obrigada.”

Ele olhou para mim como se não ligasse muito.

“Pelo quê?”

“Por aquilo… quero dizer…” Eu procurava pelas palavras. “Você ter ignorado a solicitação da Divisão foi… por minha… hmm…”

Ele levantou a sobrancelha.

“Do que você tá falando?”

“Não, veja, no meu lugar, você…” Meu rosto cada vez mais vermelho. “Ah, por acaso está fazendo aquilo de fingir não saber para me obrigar a falar?”

“Você parece estar querendo sugerir alguma coisa, mas…” Sua cara era de quem não estava entendendo nada. “…não faço a mínima ideia o que é.“

“Meu deus!” Só nessas horas ele é ruim de julgamento! “Você fugiu para que eu não morresse! Não foi? Então… Eu fiquei muito feliz! Queria te agradecer!”

Ao ouvir isso, um leve sorriso apareceu em seu rosto.

“Sim. Quando os humanos são sinceros é bem melhor.” Ele assentiu. “Por sinal, eu sempre soube que não era você e sim o Filhote de Sombra o verdadeiro culpado. Eu só fingi fugir para pegar o Asukai-kun desprevenido. Não tem nada a ver com ter sido para você não morrer. Quem faria isso por você?”

Minha alma voou por um momento.

“O que…” Minha temperatura aumentou.

Comecei a tremer automaticamente.

“Vou te contar, não conseguir nem me agradecer honestamente… Ainda tem muito a aprender como minha empregada.” Ele empinou a cabeça. “A partir de amanhã, pelo jeito terei que aumentar um pouco mais o nível do seu treinamento.”

“Como assim treinamento?!” Sem pensar, eu ergui meu punho em sua direção.

Esperando por isso, ele agilmente desviou.

“Eu sou sua monitora!”

“Sim. Por isso mesmo o treinamento. Se eu conseguir disciplinar minha monitora como eu quero, meu trabalho será mais fácil.”

“Será que devo te jogar mais uma vez da cascata?!”

Levada pela raiva, quando tentei pular, uma dor rompeu pela minha coxa. Quase caí para frente. Mas um braço comprido me segurou. 

“…Você é tão boba.” Foi o Ayatsuji-sensei. “Vou te levar para o hospital. Fique boa logo para voltar a ser minha empregada.”

“Já disse que… não sou sua empre--”

“Decidi.” Ele disse de repente, apoiando meu ombro. “Você prometeu que me obedeceria por um dia, né? Vai ser amanhã.”

“Ei! Mas eu estou ferida!”

“Assim você será mais honesta.” Me emprestando seus ombros, ele riu.

Que coisa… Ele é o pior!

Um dia atirarei nele para valer!



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