Volume Único

Quinto Ato: Dentro do Trem / Tarde / Céu Nublado

Sob o inesperado céu cinzento nublado, o trem negro em que Ayatsuji e Kubo estavam avançava. Rangendo e tremendo pelo trilho, ele corria como um herbívoro envelhecido.

O trem enfim entrou em um túnel. Era uma ferrovia subterrânea. Desse jeito não será mais possível segui-lo pelos ares.

Dentro do espaçoso e iluminado trem, os dois homens estavam encostados na parede próxima a porta.

Um era Kubo ─ o assassino chamado de Engenheiro. Sorrindo, ele olhava a escuridão fora da janela. O outro era o Detetive Assassino, Yukito Ayatsuji. Imóvel e de braços cruzados, estava de olhos fechados.

Não havia ninguém no assento do maquinista. Em seu lugar havia uma miscelânea de máquinas empilhadas, controlando automaticamente a velocidade do trem.

“Hein, detetive. Faz quanto tempo que você trabalha com isso?” O Engenheiro perguntou de repente.

“Vinte anos.” Ayatsuji respondeu ainda com os olhos fechados.

“Sério? Então você trabalha desde o jardim de infância. E quantos casos resolveu?”

“Cinquenta mil.”

“Caramba. E o número de vítimas que matou?

“Dois bilhões.”

“…Ei, detetive.” Kubo disse contorcendo o rosto. “Eu entendo que não queira falar com um criminoso, mas não zombe de mim.”

“Oh, por quê?” Ayatsuji perguntou abrindo os olhos.

“Eu estou indo tranquilamente para o meu esconderijo. Você está aqui porque foi ameaçado. Nossas posições são diferentes. Você é quem tem que se perguntar assustado sobre o que eu estou pensando. Entende?”

“Entendo.” Ele respondeu com uma voz ligeiramente desumana. “De fato. Alguém que provocou um incidente com os conhecimentos adquiridos de um poço e além disso sai por ai espalhando ser um humano especial, realmente fala coisas diferentes.”

“O que disse?” A expressão de Kubo mudou.

“Pensou que ninguém sabia sobre o poço?” Ayatsuji devolveu o olhar friamente.

Ele pegou seu fino cachimbo e o colocou em sua boca de maneira relaxada como se estivesse na própria casa. E então falou:

“Um poço que confere o Mal para as pessoas. Certamente uma lenda urbana clichê e grosseira para atrair turistas. Mas a verdade é que por trás dele há um extremamente minucioso e engenhoso sistema de seleção. Para eleger aqueles com o intelecto e malícia capazes de cometer o crime perfeito.”

Kubo fez uma cara surpresa.

“Você… já sabia disso tudo.”

“O truque para um detetive solucionar um caso é ir logo e solucionar o mistério. Havia um código de publicação no fundo do poço indicando um certo livro. A primeira edição do ‘The Selfish Gene'. Como é um livro famoso ainda lido hoje em dia, a sua primeira edição publicada em 1976 se tornou rara e é vendida a um preço alto.” Ayatsuji acendeu o cachimbo e inalou calmamente a fumaça. “E claro que seu processo de aquisição é restrito. Mesmo tendo feito a Divisão revirar todos os sebos do país, não o encontramos. Então a única alternativa que restou foi comprá-lo num leilão estrangeiro online de livros raros. Quando pesquisamos, confirmamos evidências que inúmeros sites foram adulterados externamente. Eles detectam quem comprou o The Selfish Gene em um período e local específico e envia uma certa informação junto com o livro.”

Ele olhou de soslaio para o Kubo querendo conferir sua reação e continuou.

“Desse modo, os devotos do poço conhecem o Kyougoku pela primeira vez. Sua intenção, seus conhecimentos e o histórico imenso de mortes que cometeu. Se ele escreveu seu contato no livro falso ou se era informações sobre como matar, eu preciso ver o objeto para me certificar, mas o certo é que até ganhar a sabedoria sobre o Mal, os devotos precisavam passar por diversas condições.

“A iniciativa para entrar no poço e se sujar de lama, o conhecimento para desvendar o código, a diligência de pagar por um livro de milhares de ienes ─ Ao reunir tudo isso, ai sim você estava qualificado para receber o Mal. E foi assim que aquele outro conseguiu o conhecimento sobre a Clostridium botulinum para o crime perfeito. Essa--”

Ayatsuji parou, segurou a respiração e com olhos congelados encarou Kubo.

“Essa é a verdadeira identidade do youkai que habita o poço.”

Sem negar ou afirmar, Kubo deu uma pequena risada e devolveu o olhar. Nessa hora, Ayatsuji percebeu algo e tirou o comunicador de dentro da roupa. Aquele mesmo de antes.

“Estava ligado.” Dizendo isso, ele pôs o fone nos ouvidos e logo fez uma cara de repugnância. “É você, Kyougoku.” Com o rosto franzido, ele foi assentindo para a voz. “Certo, entendi. Tudo bem.”

Como se tivesse sido combinado, o trem que estava no automático, freou nesse mesmo instante. No meio da escura ferrovia subterrânea, ele fez um som estridente e parou.

A porta automática abriu emitindo o som do ar comprimido. Ayatsuji disse apenas com o olhar virado para Kubo:

“Desça.”

“E você?”

“Eu vou continuar a viagem por mais um tempo. Kyougoku está me esperando.”

“Estou sendo excluído, então. Bem, não tem problema. Minha prioridade é fugir.”

“Foi o que ele disse, Kyougoku.” Ayatsuji disse para o microfone. “Por sinal, como conseguiu colocar uma rede sem fio subterrânea? Sei que você é bem meticuloso, mas isso─”

Ayatsuji interrompeu suas palavras e franziu o rosto.

“Ele desligou.”

“Você também está dançando na palma de sua mão.” Kubo disse sorrindo. “Gostei muito da fuga que ele nos proporcionou. Diga isso para ele.”

Depois de Kubo ter passado pela porta, Ayatsuji falou:

“Quero te perguntar uma coisa por último.”

Kubo se virou.

“O quê?”

“Por que você acha que eu não vou te matar?” A expressão de Kubo ficou tensa. “Você sabe que minha Habilidade é fazer criminosos sofrerem mortes acidentais. E é praticamente certo que foi você quem matou o Diretor-geral adjunto no elevador. Quando eu voltar e investigar mais um pouco, não importa para onde você fugir, minha Habilidade irá te matar. Por que acha que não farei isso?”

A expressão de Kubo mudou. Ficou pálido como se estivesse morto.

“O que está… querendo dizer?”

“Que você não vale a pena nem para ser castigado.” Ayatsuji o olhou desprezando friamente. “Se com esse caso eu conseguir provar que era o Kyougoku por trás de você, eu vou conseguir matá-lo como um instigador criminoso. Preciso de você vivo para isso. Ou seja, você é só um zé ninguém que posso deixar escapar sem te punir.”

“Maldito!” Kubo gritou exasperado, batendo na parede do trem. “Eu… Eu sou diferente! Não sou insignificante e nem peça de ninguém! Sou um humano especial!”

“Uma vez o Kyougoku disse que o rugido dos tolos era música para seus ouvidos. Tenho que concordar dessa vez.” Ayatsuji deu de ombros. “Você logo será alcançado pela Divisão. Esperarei ansioso pelo nosso reencontro, Engenheiro.”

“Eu irei te matar.” Kubo disse com ódio no olhar. Era uma verdadeira hostilidade tremeluzindo. “Depois que eu garantir minha segurança, claro. Preciso começar a planejar agora como irei te fazer sofrer.”

“Então até nosso reencontro.”

“Sim.”

Furioso, ele desceu com cuidado do trem. E então Ayatsuji falou de repente:

“Esqueci uma coisa. Você viu alguma ilusão recentemente? Uma visão que você não sabe se é realidade ou não. Desses cinco anos para cá. Um cachorro, uma raposa… ou talvez um macaco?”

Ao ouvir a palavra macaco, os ombros de Kubo deram uma contraída.

“Não sei do que está falando.” Ele respondeu suprimindo a voz.

“Entendo. …Um macaco então.” Ayatsuji disse calmo. “Obrigado pela informação. Vá logo.”

Kubo ia dizer algo, mas pensou melhor e fechou a boca. Após mandar um olhar cheio de ódio para Ayatsuji, ele foi embora troteando pelo trilho.

Como se vendo isso, a porta do trem se fechou. Zumbindo, o transporte voltou a correr.

 

✦ ✦ ✦

 

“O sinal do Engenheiro começou a se mover.”

Estava no quartel-general de investigação da Polícia Militar. Vários investigadores entravam e saiam do espaçoso interior. Eu olhava para o monitor que mostrava o sinal detectado por satélite do rastreador.

“Onde ele está?” Sakaguchi-senpai perguntou olhando para a tela.

“É a saída de emergência da ferrovia subterrânea perto do porto.“ Asukai respondeu operando o monitor.

“Provavelmente ele desceu do trem e foi para a superfície usando essa saída. Por isso que o sinal deve ter voltado a funcionar.”

“Serviu para alguma coisa termos colocado o rastreador nele quando o capturamos.” Sakaguchi-senpai disse sem expressão.

No momento em que a Divisão o imobilizou em cima do trilho, eles colocaram o rastreador secretamente dentro da gola do casaco dele. Ficamos apreensivos quando eles entraram no subterrâneo e o sinal foi interrompido, mas agora será possível saber para onde ele vai.

“O porto… Entendo, ele pretende fugir de navio.” Sakaguchi-senpai murmurou. “Se ele for para o mar, ele ficará fora do alcance do satélite. Vamos logo atrás dele.”

Muito bem. Não posso ficar de bobeira agora que decidimos. Peguei as chaves do carro da minha jaqueta e me dirigi a passos rápidos para a saída.

“Tsujimura-kun.” Sakaguchi-senpai me parou repentinamente. “Para onde está indo?”

“É claro que estou indo capturar o suspeito!” Eu respondi com firmeza. “Não posso deixá-lo fugir! Há uma montanha de coisas que quero perguntar para ele!”

Sem me responder de imediato, ele ajeitou seus óculos sem nenhuma expressão.

“Isso seria pelo seu trabalho? Ou por uma vingança pessoal?”

“É claro que…” Quando eu fui responder, hesitei.

O mentor do incidente da ilha Reigo. O homem que levou minha mãe a morte.

─ Quer que eu te mostre com o seu corpo como eu controlei sua mãe?

“Claro que é pelo trabalho.” Eu disse o olhando nos olhos. “Como membro da Divisão, preciso capturar de qualquer jeito o culpado pela morte do Diretor-geral adjunto.”

Sakaguchi-senpai ficou me olhando calado por um tempo. Seu olhar para mim através dos redondos óculos me perfurava.

“…Muito bem.” Finalmente ele falou. “Porém você precisa capturá-lo vivo. Precisamos dele para localizarmos o verdadeiro culpado. Não acho que você vá fazer nada contra ele por sentimentos pessoais, mas… se por acaso matá-lo, você será…”

“Não precisa dizer o resto.” Eu o interrompi. “Cumprirei minha missão perfeitamente.”

Não esperei por sua resposta e fui para a saída. Sem olhar para trás e andando a passos largos, estava indo para o meu carro.

Está tudo bem. Eu vou capturá-lo vivo. Não vou matá-lo.

Está tudo bem… Tenho certeza que dará tudo certo.

 

✦ ✦ ✦

 

Ayatsuji desceu do trem que suspirando como um velho, parou de se mover.

Dali ele seguiu as instruções do comunicador. Subiu para a superfície pela escada de emergência da passagem abandonada, abriu uma porta de ferro e deu num pátio desolado.

Pelo jeito, o trem havia andado por uma linha abandonada, fora de registro. Sentindo que o estavam observando, ele prosseguiu pelo caminho que havia sido indicado. Até que do outro lado da estrada de cascalhos ele pode ver o telhado de um abrigo contra chuva e uma escotilha subterrânea feita de aço.

Ele olhou ao redor. Não havia ninguém. Estava quieto como a morte. Pelo visto ele não precisava se preocupar em ser uma emboscada, mas também não dava para ele chamar secretamente por reforços.

Estando dentro do previsto, Ayatsuji deu de ombros e entrou na escotilha.

Passou por uma estreita passagem subterrânea, desceu mais alguns metros e saiu numa gigante caverna retangular.

Reforçada por concreto, estava vazia. No centro dela, um pouco à sua frente, havia um buraco que continuava para baixo. Dessa vez estava mais para um bueiro do que para uma escotilha. O buraco estava ligeiramente aberto.

Uma frecha de luz saia dele como uma fogueira sinistra. Ele verificou o fundo do buraco. O fosso parecia estar ligado a um outro aposento. Eram uns 4 metros até o chão. Uma altura que permitia se pendurar na borda e aterrissar suavemente sem se ferir. Ayatsuji assim o fez.

“Seja bem-vindo depois de um longo caminho, detetive.” Ao ouvir a voz, Ayatsuji soube que ter tomado esse caminho havia sido a escolha certa.

O necromante estava em pé num canto do quarto. Há apenas alguns passos.

“Kyougoku.”

Kyougoku assentiu satisfeito para o murmúrio.

“Foi mal te fazer andar de um lado para o outro. Mas se eu ganhei um sorriso em troca, então valeu a pena toda essa minha preparação incansável.”

Ao ouvir isso, Ayatsuji pôs as mãos no rosto. Ele estava sorrindo. O sorriso de um carnívoro que brinca com sua presa antes de matá-la.

“É para rir mesmo. Finalmente estou na sua presença.“

Os dois haviam competido inúmeras vezes. Mas dava para contar nos dedos as chances que tiveram de se enfrentar diretamente. Era extremamente raro se encontrarem cara a cara e havia mais valor nisso do que numa montanha de ouro.

Ayatsuji foi andando calmamente na direção de Kyougoku e ao mesmo tempo vigilante do seu redor.

O aposento não era muito amplo. Tinha uns 8m². Não havia quase nada em seu interior, apenas umas sucatas espalhadas pelo chão. Era como se estivessem dentro de um cubo com 4 metros de lado.

Sem nenhum subordinado à espreita, não parecia ser uma armadilha. Não havia nada para atrapalhar a batalha decisiva.

“Kyougoku.”

“Ayatsuji-kun.”

Os dois estavam de frente um para o outro. Tão perto que se um deles puxasse uma faca escondida, poderia cortar a garganta do outro.

“Que coisa.” Ayatsuji inclinou a cabeça um pouco para o lado. “Eu pensei estar preparado para o dia em que faria você aparecer, mas… agora que chegou o momento, não sei o que falar.”

“Eu também.” Kyougoku riu. “Porém nós dois sabemos o que devemos fazer. Não é mesmo?”

Ayatsuji disse sussurrando:

“Eu tenho muitas coisas que quero te perguntar, mas não é como se você fosse responder, né?”

“Não sei. Acho que vale a pena tentar.”

Ayatsuji olhou para ele por algum tempo, refletindo. E disse:

“Então vou perguntar. …Você está preparado para morrer aqui?”

Sem nenhum aviso prédio, Ayatsuji emanou uma intenção de matar abaixo de zero. Essa intenção foi congelando o ar até queimar o Kyougoku. Este não soube o que falar. Não existia uma pessoa que não tremesse ao ver a hostilidade do Ayatsuji diante de si.

“…Não importa muito se eu estou preparado ou não para morrer.“ Kyougoku finalmente falou. “O que importa é se eu vou conseguir concluir meu jogo com você aqui. Sendo assim, apesar de um pouco rude, trouxe um singelo presente para você. ” Dizendo isso, ele abriu a parte de cima do seu quimono. Dentro, havia pendurado um pacote com um líquido amarelado.

“Tch.” Ayatsuji estalou a língua. “É veneno?“

“É um gás paralisador.“ Kyougoku riu de leve. “Quando eu puxar essa corda, o líquido volatizará e o ambiente ficará preenchido de gás mortal. O seu cheiro é como o de uma fruta, mas só de respirá-lo uma vez, todo o corpo entra em convulsão. Em alguns segundos, os músculos para a respiração paralisam e enquanto vomita e excreta, você morre. Mas eu não tenho intenção de acabar com você usando isso. Pense nele como um artifício de palco grosseiro para estabelecer nosso jogo.”

“É mesmo. Apostar a própria vida era um hábito antigo seu.” Sem se mover, Ayatsuji olhava para ele. “E como vai ser o jogo?”

“Será de inteligência.” Kyougoku respondeu alegremente.

Ayatsuji levantou a sobrancelha.

“É muito simples. Há alguns meses, uma certa pessoa morreu nesse mesmo lugar de forma inexplicável. Se você solucionar o mistério, vence. E se vencer…“

Ele interrompeu suas palavras e olhou para Ayatsuji. Então continuou.

“Eu vou te contar como remover o perigo que se aproxima de sua parceira.”

 

✦ ✦ ✦

 

Não há respostas. Não sei o que vai acontecer.

Meus sentimentos não parecem meus. Esse estado incerto é muito depressivo e doloroso. Eu deveria ficar feliz pelo meu caminho já estar decidido. Não preciso distribuir minha concentração pensando em outras possibilidades. Só preciso ir em frente, suportando a dor.

Agora é a hora. Pisei no acelerador. Estou apenas olhando para a estrada à minha frente. Preciso ir um segundo que seja mais rápido atrás dele.

“Tsujimura-chan, dirija com cuidado…”

“Se falar, vai morder a língua, Asukai-san!”

Eu girei o volante com tudo e atravessei um cruzamento antes que o sinal fechasse. Estava indo em direção ao porto.

Muitos carros passam pela rua principal. Nesse meio, o meu Aston Martin prateado corre como uma bala. Com a sirene vermelha ligada, ele vai alternando pelas faixas direita e esquerda, indo ferozmente veloz atrás do Engenheiro.

Eu já nem confiro mais o medidor. No assento do passageiro, o investigador Asukai estava gemendo por ter batido seu corpo diversas vezes dentro do carro.

“Que culpado mais estúpido, Asukai-san!” Eu falei gritando para ele. “Pensar que pode fugir de mim! Vou ensiná-lo que esse pensamento será sua ruína!”

“Tsu-Tsujimura-chan, deixa eu te perguntar, mas quantas vezes você seguiu o suspeito de carro?!”

“É a primeira vez!” Gritando, eu girei o volante em grande estilo e fiz um drift. “Vamos, vamos, vamoooooooooos!”

“Eu nunca tive uma parceira imprudente assim!” Asukai-san gritou lamentando.

O carro pulava e o para-choque raspava nos postes. Normalmente o custo do reparo soaria um alarme automaticamente em minha cabeça, mas agora eu só ouvia a sonata que acompanhava a perseguição.

As batidas de bateria e guitarra elétrica reverberavam dentro de minha cabeça. Você não vai fugir de mim!

“Tsujimura-chan, achei!” Ele apontou para frente. “É o carro dele!“

Após o cruzamento, dentro do rio de carros, eu vi um esporte branco. Era um carro roubado. Para a janela do passageiro estar quebrada, deve ter sido quando o Engenheiro o roubou.

Eu consigo deduzir as especificações dele no geral. Um modelo para ser usado na cidade e apesar de antigo, tem um poder rotativo alto. Sua eficiência é comparável ao meu Aston ─ Vamos ver até onde você vai.

Ele nos percebeu e acelerou. Eu também pisei no acelerador.

“Tsujimura-chan, o sinal está vermelho!”

Eu troquei de marcha. A transmissão rugiu como uma besta. Os dois carros aceleraram ao mesmo tempo. O meu Aston Martin passou o sinal vermelho como uma bola rápida em chamas. Desviando de um carro e um caminhão, eu atravessei pelo cruzamento.

“Uwaaaaaaaaa!!”

Eu vi com o canto do olho o Asukai-san agarrado no cinto.

O carro esporte branco e o Aston Martin prateado corriam pela rua como o sangue fluindo do coração. Os carros comuns tentaram fugir do rugido da máquinas, mas eu só via aquele. Meu corpo estava em chamas por dentro.

“Ter me feito de inimiga será sua derrota!” Acelerei mais ainda.

Os pneus raspando na rua levantavam uma fumaça branca. O pedaço de ferro prateado corria deixando arranhões negros pelo asfalto. O carnívoro incansável estraçalhava a superfície da estrada como uma flecha.

Ele virou para a direita. Eu o segui igualmente. Pelo mapa que veio a minha mente, estávamos perto de entrar no porto. A presença dos outros carros reduziu de uma só vez.

“Quando entrarmos no porto, os carros civis vão diminuir!” Eu gritei enquanto dirigia. “Lá eu posso dirigir como eu quiser!!”

“Mas você já está!” Asukai-san também estava berrando.

O meu carro e o do Engenheiro invadiram o porto praticamente em paralelo. Por causa dos carregadores, as ruas internas eram bem largas. Do lado direito, os armazéns de contêineres. Do esquerdo, os prédios da alfândega. E entre eles, os dois carros correndo.

Até que eu avistei umas figuras estranhas perto dos armazéns. Eram seis. Estavam de terno e óculos escuros.

Eles estavam recebendo mochilas do que parecia ser a segurança do porto. Ao redor deles, havia três SUV envoltos em filme preto. Quando ouviram minha sirene, os de terno mudaram de fisionomia.

“Quem são eles…?”

Eles fugiram para trás dos armazéns, desaparecendo da minha visão. Logo depois, o meu carro tremeu com um barulho de um martelo batendo na carroceria. Eu gelei.

“Que… Que barulho foi esse?!”

“Isso é ruim.” Asukai-san ficou pálido. “Estão atirando em nós!”

Os três SUV de agora há pouco estavam nos perseguindo por trás em alta velocidade. Homens pendurados na janela seguravam metralhadoras.

“Droga, o que está acontecendo? O Engenheiro chamou reforços?” Eu os olhei pelo retrovisor.

Esses carros. Essas armas. Eu procurei apressadamente pelos documentos gravados em minha cabeça. Cheguei na pior conclusão.

“Não é possível.” Eu gemi.

Então era isso. O Engenheiro não veio para o porto por acaso. Ele antecipou que se fugisse para cá, conseguiria despistar os investigadores. A escuridão indiscernível para o governo. A terra estrangeira em que os residentes da noite operam.

“Eles são a organização ilegal que atuam na região do porto.” Eu gritei. “O que vimos antes era uma transação ilegal da Máfia do Porto!”

 

✦ ✦ ✦

 

“A Tsujimura-kun está sendo atacada?”

As palavras do Ayatsuji ecoaram na sala subterrânea.

“Exato.” Kyougoku respondeu calmamente. “Como havia a oportunidade, eu achei bom aplicar o plano. Dei essa sugestão para o Kubo-kun. Sabendo da transação da Máfia do Porto, falei para ele passar por lá. Eu gosto de humanos violentos como eles. Porque o princípio comportamental dessa gente é simples.”

“A Máfia do Porto, ao ser vista fazendo uma transação que não deveria, atirará no carro da polícia passando?” Ayatsuji desdenhou pelo nariz. “Só você para ter um pensamento superficial assim, Kyougoku. Eles se prostram assustados sob o poder do Estado. Se eles atacarem indiscriminadamente um carro da polícia, eles serão condenados a prisão perpétua duas vezes por mês.”

Não afetado, Kyougoku sorriu.

“Se for uma transação normal.”

“…O quê?“

“O que a sua Tsujimura está testemunhando é uma transação ilegal pelos subordinados sem o consentimento do Chefe. Para a Máfia que tem disciplina e lucro como regras absolutas, transações não ordenadas são tabu. Em particular, drogas e armas de fogo perigosas são estritamente proibidas, pois será um problema se o governo perceber. Mas… raramente acontece do pessoal da ponta ser ofuscado pelo brilho do dinheiro. Como dessa vez.”

“Uma transação sem o Chefe saber é?” Ayatsuji estalou a língua. “Se forem descobertos, não serão apenas capturados… Aqueles que quebram as regras do submundo não são perdoados.”

“Serão torturados ao ponto de se arrependerem de ter nascido.” Kyougoku riu alegremente. “É o medo. O medo move as pessoas. Inclusive em matar alegremente pessoas do governo para silenciá-las.“

 

✦ ✦ ✦

 

Os materiais dos armazéns baleados voavam pelos ares. As balas acertando o carro soavam como instrumentos de sopro fora de harmonia.

“Droga, o que tá acontecendo?! Será que a polícia implicou demais com a Máfia do Porto e eles endoidaram?!”

“Com certeza devem estar tentando nos silenciar por termos visto sua transação.” Eu gritei agarrada ao volante. “Se não fizermos algo, vamos perder o Engenheiro de vista!”

Eu virava o volante para a esquerda e direita sem saber para aonde ir. Mesmo assim as balas acertavam o carro como se atraídas por uma isca, soltando faíscas. Várias acertaram o vidro, deixando brancas fissuras radiais. Mesmo assim, ele não quebrava.

“Esse carro é bem resistente… é blindado?” Asukai-san perguntou enquanto pegava sua arma. “Mesmo sendo de uma funcionária pública novata?”

“Todo agente que se preze precisa ter um carro blindado, nem que passe fome!”

“Quem disse isso?”

“Eu!” Gritando, eu pisei mais fundo no acelerador. “Mesmo assim, a parte de baixo dele não foi blindada! Se elas ricochetearem e acertarem o motor, no pior dos casos, vamos capotar!”

“Tudo menos isso!”

Ele colocou o braço para fora da janela e atirou na direção dos SUV. Várias balas acertaram e eles diminuíram a velocidade por um momento.

Eu virei com tudo para a direita. O carro rangeu e o pneu esquerdo soltou. Surpreso, Asukai-san colocou o peso de seu corpo para a esquerda.

Os papelões explodiam e canos de ferro estavam espalhados pelo asfalto. Eu deslizei o carro entre um armazém e outro, correndo por uma rua estreita.

A paisagem ia ficando para trás rapidamente. O motor rugia em máxima potência.

“Eles ainda estão nos seguindo!” Asukai gritou olhando para trás. “Eles pretendem nos comer vivos!”

Eu virei o carro mais ainda para a esquerda. Saímos dos armazéns.

A situação é péssima. Eles tem três carros atirando em nós com metralhadoras. Membros de uma organização criminosa acostumada a lutar. E o porto é território deles ainda por cima. Eles conhecem cada canto daqui. Enquanto nós mal temos armas de fogo e eu não consigo controlar minha Habilidade.

O que eu faço? Desse jeito eles vão nos alcançar. O volante ficou úmido com o suor das minhas mãos.

O que devo fazer? Se como ontem ─ quanto estávamos cercados pelas Forças Especiais, eu ao menos tivesse o conselho do Ayatsuji-sensei…

 

✦ ✦ ✦

 

“Pergunta logo.” Ayatsuji disse secamente.

“Oh. Vai aceitar a disputa?” Kyougoku perguntou se divertindo.

“Não me venha com gracinhas. É perda de tempo.” Ayatsuji disse como se vomitasse. “Se você planejou tudo, então uma coisa é óbvia. Você não irá me matar com armas, veneno ou violência. Você quer me submeter pelo jogo e depois que eu perder, me matar controlando a minha vida. Sempre foi assim. Faça logo a pergunta.”

“Você realmente é único.” Kyougoku sorriu satisfeito. “Os documentos estão ali. Eu nomeei esse caso não resolvido de Caixa Assassina. É um dos meus preferidos.”

Ayatsuji pegou os documentos que estavam caídos num canto do aposento. Ao ver o texto impresso na capa percebeu que ele de algum jeito os roubou da sala de referência da polícia.

Ele começou a virar as páginas.

Houve um assassinato neste quarto. O culpado é um vigarista inescrupuloso. Sua ocupação consistente em coagir contadores de grandes companhias e usurpar o dinheiro.

Porém três meses atrás ele enfrentou uma crise. Uma contadora chantageada, não suportando o crime que cometeu, fugiu.

Se ela fosse para a polícia, estaria acabado. O vigarista ficou apreensivo e foi procurá-la. E a encontrou nesse mesmo abrigo subterrâneo em que Ayatsuji se encontrava. Então a matou.

Contudo ─ O vigarista foi inocentado.

Ayatsuji continuou a virar as páginas.

Por que o assassino foi inocentado? Porque o crime era impossível.

A contadora foi esfaqueada neste quarto. Ele não tinha um álibi para essa hora e encontraram um casaco sujo de sangue em sua casa. O tipo sanguíneo batia com a da vítima.

Mas era impossível alguém tê-la matado. Porque uma vez dentro deste lugar, não dá mais para sair. É um quarto de mão única.

A contadora que havia fugido para esse abrigo destruiu a única escada de ferro que servia como saída. Ou seja, esse é um crime impossível. Dá para entrar e matar, mas não sair. Sem conseguirem provar como o vigarista saiu do quarto, ele foi inocentado.

“Então quer dizer que eu estou na mesma situação.” Ayatsuji inclinou a cabeça levemente. “Enquanto eu não revelar a verdade desse mistério, não poderei sair daqui.”

Ele olhou para o teto. O buraco pelo qual tinha entrado em seu centro estava ligeiramente aberto a 4 metros de altura. Não havia nada no quarto, nenhuma pista ou algo que servisse de base para os pés. Mesmo que quisesse chamar por ajuda, não havia sinal lá embaixo.

“Por sinal, não havia nenhuma evidência também dele ter preparado um gancho ou uma escada de corda de antemão.” Kyougoku riu alegre. “Ele só percebeu que não poderia sair depois que matou.”

“Entendi. Ou seja… esse caso não solucionado também aconteceu graças a uma sugestão sua. Você sabia como fugir e contou ao assassino. Porque se está aqui, é claro que sabe como sair.”

“Vamos parar com as suposições sobre o que não tem a ver com a situação.” Kyougoku disse sereno. “Não é feio o questionador ficar falando sobre si mesmo numa disputa importante?”

“De fato.” Concordando, ele voltou a inspecionar o quarto.

Suas paredes eram feitas de resina branca. Pareciam ser quebráveis com um martelo. Mas não havia nenhum traço de terem sido quebradas e mesmo que as detruíssem, aqui era debaixo da terra. Não tem como escapar.

O quarto é um cubo 4x4. Tanto as paredes como o teto são em forma de quadrados. Ele está dentro de um cubo de 4 metros de altura. Esse quarto deve ser a caixa que o Kyougoku mencionou.

Não tem nada que dê para pisar. Não tem nada para começar. A única coisa que tem são uns pedaços de tubos de ferro num canto do chão, da escada que a vítima destruiu. Antes essa era a única saída que levava ao buraco no teto. Agora são só pedaços no chão.

Pelos documentos, a vítima sentindo que estava em perigo, avisou a polícia de antemão que viria se refugiar aqui. Se eles não viessem, não teria como ela sair do abrigo. Ela estava preparada para a possibilidade de morrer.

Porém quando a polícia chegou, ela já estava morta.

Morta.

“Não tem o corpo.” Ele disse olhando ao redor. “Se ela foi esfaqueada, deveria haver ao menos uma mancha de sangue no lugar em que foi morta.”

“Eu te mostro.” Kyougoku acenou para ele.

Num canto do quadrado quarto havia uma discreta porta aberta. Ela ligava a um quarto menor ainda. Se o anterior era um dado de quatro metros, esse era um com um pouco menos de três.

Os dois eram praticamente iguais. A única diferença era uma distinta mancha de sangue no chão mais ao fundo. Esse sangue coagulado era a única coisa que dava personalidade ao frio aposento. Uma intensa personalidade. O quarto ao lado deve estar com inveja.

Em volta da mancha, inúmeras barras de ferro perfurando o chão. Eram pedaços da escada. Estavam dispostas como uma fita branca formando o entorno do corpo. As maiores tinham 40 centímetros enquanto as menores, no máximo, 15. Todas estavam perfurando o chão.

Ayatsuji se agachou diante da mancha e olhou para elas.

“Como elas perfuraram o chão?” Então ele voltou para o quarto maior e inspecionou a parede que ligava os dois ambientes.

Uma porta com maçaneta. Sua estrutura é bem firme. Além dela, há um quadrado desenhado em linhas pretas do mesmo tamanho do quarto menor como se registrasse seu tamanho. No centro da parede também há o desenho de uma porta um tamanho maior. Não há parede acima do topo da linha preta, apenas um vão se expandindo.

“Há um vão em cima dos quartos?”

Ayatsuji tentou alcançá-la, mas não conseguiu. Nem mesmo pulando. Se para ele que é alto, é impossível, então seria difícil o culpado ter conseguido fugir por ali.

Olhando para cima ele conseguia notar um metal reforçando a parede que liga o quarto pequeno e o teto. Provavelmente a estrutura do dado. Mas seria difícil agarrá-lo pulando.

Se de algum jeito ele o tivesse agarrado e escalasse até o vão, terminaria aí. Dessa abertura até o buraco no centro do teto do quarto maior, são mais ou menos dois metros. Mesmo se ele fosse o rei das fugas, não dava para ele pular do vão e fugir.

Ayatsuji voltou para o centro do quarto maior e olhou para a saída no teto.

“São quase 4 metros até a saída. Dizem que um saltador profissional tem uma capacidade de salto vertical de 50 a 70 centímetros. Ou seja, por mais que se esforçasse, o suspeito só conseguiria escalar 2,5 metros. Não alcançaria o teto.”

“Certamente. Então vamos responder logo?” Kyougoku sorriu de leve.

Ayatsuji estreitou o olhar e disse:

“Não estou sabendo que tem tempo limite para responder.”

“Até o Detetive Assassino tem medo de tempo limite?”

Ayatsuji tensionou o maxilar. Ele não podia refutar. Mas ─ não havia informações suficientes.

 

✦ ✦ ✦

 

O carro saltava.

Enquanto os caixotes voavam, o Aston Martin corria pelo porto. A distância entre eles e o inimigo era curta. Não sabiam quanto tempo mais aguentariam. Além daqui ser território da Máfia, ainda demoraria para os reforços da Guarda Costeira e da Polícia Militar chegarem.

“Merda, tô sem balas!” Asukai-san gritou olhando para a sua pistola automática com a culatra fixada na parte traseira.

“Use a minha arma!” Não tem como eu usá-la de qualquer jeito nessa situação.

“Mas o carro deles é blindado também! E nosso poder de fogo é muito menor… Não sei até quando vamos resistir…”

O carro acabou chegando na rua próxima ao dique. Eles realmente conhecem bem o interior do porto. Nos empurraram para a borda. Isso é mal.

“Tsujimura-chan!” Asukai apontou para a direita. “O carro dele tá em cima do navio!”

Quando eu olhei, vi um navio cargueiro próximo ao cais. Em cima dele, estava o carro esporte branco do Engenheiro. Ele pretende fugir nesse navio.

“Vou para lá!” Virei o volante. “De qualquer forma só tem como fugirmos para aquela rua!”

Sendo girado com força suficiente para arrancar o asfalto, o Martin que nós estávamos mudou sua rota para a ponte que levava ao cais.

Engenheiro. Eu nunca o perdoarei. Na estação, ele disse que controlou minha mãe. Então talvez ela não fosse uma pessoa ruim por natureza. Talvez ele apenas tenha se aproveitado da parte fraca de seu coração para instigá-la.

Quando era pequena, eu odiava minha mãe. Após crescer, eu apenas passei a ver a mãe que não voltava para casa por causa do trabalho como uma estranha. Mesmo assim, a vontade que sinto de matar o Engenheiro que a levou à morte assusta a mim mesma.

Eu vou alcançá-lo sem falta. E então com as minhas próprias mãos…

O carro foi feito uma bala para a ponte. Era uma grande ponte levadiça e de via única. Por causa dos navios que entravam baía, ela suspendia temporariamente pelo meio.

Bem no seu centro agora havia várias cargas como se fosse para impedir nossa passagem. Provavelmente os trabalhadores estavam no meio de transportá-las para o navio quando perceberam a confusão e fugiram.

Ela é uma ponte estreita. Impossível passar sem bater nelas.

“Eu vou passar pela montanha de caixas!” Eu gritei.

“Tem certeza?!” Asukai-san gritou de volta. “Se tiver alguém escondido atrás delas, você vai passar por cima!”

Eu fiquei sem palavras por um instante. O assassino de minha mãe estava bem na minha frente.

“Não há o que fazer. Vamos rezar para que não haja ninguém!” Eu segurei bem firme no volante. “Se segura!”

Fui batendo de frente contra as caixas. O carro pulou. As verduras e itens diários se espalharam para tudo quanto é lado vigorosamente. Rabanetes, esfregões, papéis higiênicos e diversas frutas voando e caindo no mar sob a ponte. E eu atravessando entre eles como num filme do James Bond.

“Não havia ninguém!” Eu gritei pisando no acelerador.

“Por sorte!” Asukai-san gritou com a voz tremendo.

Eu fiquei aliviada de não ter sentido passar por cima de ninguém ao esmagar as cargas. Porém não tem como ele não ter percebido o rangido do carro correndo além da chuva de balas.

“Eu vou atravessar a entrada do navio!” Girando o volante, fui em direção ao navio.

Foi nessa hora que algo veio voando do outro lado da costa enquanto rasgava o céu. O impacto envolveu o mundo.

Alguma coisa explodiu antes de bater no nosso carro e ele foi envolto por chamas laranjas. O carro flutuou no ar.

“Guahhh!”

Minha visão ficou branca. Perdendo meu senso espacial, bati fortemente o corpo no interior do carro. O airbag acertou a minha cara em cheio e eu perdi a consciência por uns instantes.

Imagens sem sentido passaram pela escuridão. Eu vi o rosto de minha mãe ao longe, o treinamento de tiro na Divisão, o escuro Escritório do Detetive Ayatsuji. E vi memórias de uma infância distante da qual eu não lembrava.

Por um momento eu não sabia onde estava nem o que estava fazendo.

“Ei, acorde! Ainda estão atirando!”

A voz e mão me sacudindo me acordaram.

O carro estava parado perto ao cais. As chamas e a fumaça haviam invadido seu interior. Eu acordei logo depois do Asukai-san me puxar para fora. Sai rastejando e me escondi atrás da carroceria. Várias balas vieram voando do outro lado da costa imediatamente. O corpo do Aston Martin emitia o som de um instrumento musical.

“Eles lançaram explosivos pelo ar!” Usando o carro como escudo, Asukai-san gritou escondido das balas. “Como eles conseguem contrabandear essas armas?!”

Os projéteis voando eram do mais novo modelo. Eles voam horizontalmente na direção do alvo em alta velocidade e explodem automaticamente um pouco antes por alcance a laser.

Uma arma totalmente militar, projetada para batalha contra soldados armados. Não é algo para uma organização ilegal ficar atirando ao bel-prazer próximo à cidade. Provavelmente eram essas armas que eles estavam contrabandeando na negociação que testemunhamos. Se for, não tem como eles nos deixarem escapar vivos. Vão querer nos matar a qualquer custo.

“Tsujimura-chan, quantas balas você ainda tem?”

“Só algumas.” Eu respondi após verificar meu revólver.

“Entendo… Mas eu tenho uma boa notícia.” Ele olhou para a ponte. “Está na hora da ponte subir. Com isso, eles não poderão vir para cá.”

Eu olhei para ela. De fato o centro da ponte, perto da onde eu bati nas cargas, estava se dividindo em dois. Seria impossível algum carro passar de lá para cá por um tempo.

“Realmente é uma notícia boa. Eles não poderão vir e nós que estamos sem munição não teremos para onde fugir, ficaremos aqui recebendo a chuva de balas. Ótimo.”

“Melhor impossível.”

O carro não vai aguentar o próximo explosivo. Se cruzarmos a ponte, ficaremos no fogo cruzado e estará tudo acabado. Se a ponte abaixar, o inimigo virá e será o fim.

Eu vou morrer aqui? Com o canto do olho eu vi a carga caindo da ponte partida na baía. Além de verduras e frutas, caixas pesadas de madeira acertavam a superfície, fazendo a água jorrar. Pelo jeito eu não ia precisar indenizar a carga esmagada; eu tive esse pensamento frívolo.

Desde que me tornei uma agente, imaginei incontáveis vezes o momento em que eu morreria durante um tiroteio. Visualizei eu morrendo numa troca de tiros em grande estilo como num filme e também morrendo miseravelmente num beco sujo. Por eu ter imaginado tanto, não conseguia assimilar muito bem os tiros e a morte se aproximando agora.

Eu realmente morrerei aqui? Morrer baleada sem usar minha Habilidade concluirá minha vida? Mesmo o assassino de minha mãe estando tão perto.

Segurei minha arma. Coloquei o braço rapidamente para fora do carro e atirei. Um deles caiu.

Eu sou uma agente. Uma crise dessas é uma cena bastante comum para agitar as coisas no meio dos filmes. Até parece que vou hesitar.

Vi outra pessoa preparando para atirar mais um explosivo.

“Ei! Eles vão atirar outro!”

Sem mudar minha expressão, apenas olhei para além do meu revólver.

“Irei derrubá-lo.”

“Ficou louca?! Não tem como uma bala de revólver derrubar um explosivo de 25 milímetros vindo a 700 quilômetros por hora!”

“Não vou saber se eu não tentar!” Mirei no inimigo.

Se eu acertar exatamente no momento do disparo, a bala irá induzir a explosão, pegando todos os inimigos de uma vez só. Não temos outra opção.

O inimigo posicionou o lançador em nossa direção. E eu posicionei minha arma para eles. Está tudo bem. Será exatamente como no treinamento. Eu apenas preciso acertar o meu alvo parado com a postura certa. Se fosse um treinamento eu estaria confiante.

Ele olhou pelo telêmetro. Ainda não. Ainda não.

A brisa do mar soprou de repente. Um silêncio que durou um centésimo de segundo.

─ Agora!

Eu apertei o gatilho.

Nada aconteceu. Meu estômago revirou.

O tiro não saiu! Entrou poeira na câmara com a explosão de agora há pouco e prendeu a culatra.

Por que tinha que ser justamente agora! Eu consegui ver claramente o inimigo apertando com força o gatilho do lançador. Já era. Não há mais o que fazer. É o fim…

Esse momento não chegou.

Fechei os olhos e cerrei os dentes, mas nem o barulho da explosão e o choque chegaram.

Quando abri os olhos medrosamente, a Máfia estava gritando do outro lado da costa por algum motivo. Não estavam olhando para cá.

O que foi? O que está acontecendo? Um deles falava algo no celular com o rosto pálido. Depois ele ordenou urgentemente os outros membros e entraram nos SUV gritando alguma coisa. Então foram embora sem nem olhar para nós.

“Estamos… salvos?” Asukai-san colocou devagar o rosto para fora da carroceria.

“Eles fugiram em alta velocidade…” Eu disse abaixando a minha arma.

“Talvez tenham recebido alguma ordem da organização. Por que voltaram no meio dessa situação? Mais alguns segundos e teriam nos transformado em frango frito.”

Uma retirada repentina. Não tem como um desenvolvimento favorável acontecer do nada nessa linha de trabalho. Certamente alguém tem que ter nos salvado por detrás das cenas. Se é assim… eu sei quem foi.

“Está claro que o Ayatsuji-sensei arruinou o plano do inimigo.” Eu disse com convicção.

 

✦ ✦ ✦

 

“Esse é um truque bem simples e criativo.” Ayatsuji falou.

Enquanto ele andava diante do Kyougoku, ele declarava os fatos calmamente.

“Uma saída a 4 metros de altura. Sem um apoio. O máximo que um homem alto consegue alcançar são 2,5 metros. Como atingir os outros 1,5?”

Ayatsuji atravessou o quarto e colocou a mão na porta que o ligava ao quarto menor.

“Num caso normal, para resolver o truque, primeiro é necessário procurar o que parece estranho. Uma porta dupla desnecessária, uma chave mestra sem função e um porão impenetrável. Eu vou desfazer esses componentes adicionais um por um. Por outro lado, quando há um quarto simples apenas, as pistas diminuem. Nesse sentido, essa sala secreta não tem quase nenhuma impureza. O corpo e o quarto. Apenas isso. Então o que devo fazer? Se não há uma estranheza, só preciso criá-la.”

“Ohh.” Kyougoku que estava calado até então, deu um sorrisinho.

“Nessa sala trancada há um quarto. Essa é a estranheza.” Ayatsuji declarou.

Ele então empurrou a porta e olhou para o quarto menor.

“O quarto maior é um cubo de 4 metros. O menor, um cubo um pouco menor que 3. Usando o teorema de Pitágoras, sabemos que a diagonal de um quadrado de 3 metros de lado é aproximadamente 4 metros. É o mesmo que a altura do quarto maior. Então… é só fazer assim.”

Ayatsuji abriu por completo a porta do quarto menor e segurou na parte superior. Então puxou sem hesitar.

O quarto pequeno inclinou.

“Não há apoio, mas há um quarto. Então é só usá-lo como apoio.” Ayatsuji puxou com mais força ainda. O quarto menor veio até o limite da linha preta desenhada.

Ajustando a altura, ele o retrocedeu cuidadosamente.

“Isso que parecia uma linha preta era a junção dos quartos. A parte superior do menor estava vazio para dar margem à rotação. O andar superior que vi antes de entrar nesse abrigo tinha um vão bem mais largo do que o daqui. Considerando que tem a mesma estrutura do andar debaixo, tem espaço em excesso. Esse espaço sobrando que é o vão.

“Como você disse no começo, o quarto menor é ao mesmo tempo um quarto e uma caixa. Ao puxar ele em 45 graus, ele prende bem na borda. E assim temos um apoio. A altura dele diagonalmente é metade de 4 metros, ou seja, 2 metros. Assim dá para alcançar. E ainda por cima está bem embaixo da saída. Se pisar em cima, vai dar para tocar nela.”

Ayatsuji bateu no apoio. Ele era só um pouco mais alto do que sua altura. O reforço de metal nos cantos facilitava para subir. Dava para pular até.

“Esplêndido. Como esperado do Ayatsuji-kun… É o que eu gostaria de dizer, mas…” Kyougoku estreitou o olhar e olhou para Ayatsuji. Algo brilhava em seu fundo.

“Nem precisa dizer. Vai falar que minha dedução está incompleta, não é? Ainda tem mais. Escute até o fim.”

Ayatsuji bateu no lado de fora do quarto inclinado com a mão.

“Quando a polícia chegasse, a cena estaria assim… ou seja, com o quarto menos inclinado, sem ser uma sala trancada nem nada. Estaria claro para qualquer um o truque da fuga. Por isso era preciso voltar o quarto para o lugar. Mas não é tão difícil assim.”

Ayatsuji abaixou a cabeça e entrou no quarto menor. Seu peso foi fazendo o aposento voltar para a posição normal aos poucos.

“Nos fundos, estava o corpo deitado. Em volta dele, os canos de ferro perfurando o chão. Esse é o motivo.”

Ayatsuji ficou em pé no lugar onde havia o corpo e esperou um pouco até que o quarto começou a voltar para o lugar. E então voltou por completo.

“Os canos eram para que o corpo não rolasse. Depois que o culpado usou o quarto menor como apoio, o peso do corpo fixado fez com que ele voltasse ao normal.” Ayatsuji saiu do cômodo menor e parou diante do Kyougoku. “Esse é o truque.”

“Maravilhoso.” Kyougoku aplaudiu alegremente. “Resolver o mistério em tão pouco tempo assim. A Caixa Assassina era um dos meus casos favoritos.”

Ayatsuji contorceu o rosto em descontentamento.

“Hmm. Se tivesse uma prova aqui da sua participação direta, eu conseguiria fazer você morrer acidentalmente…” Ayatsuji olhou ao redor.

Provavelmente esse culpado era o mesmo. Pensou em matar por vontade própria e escolheu o método por vontade própria. A Caixa Assassina do Kyougoku não passava de um dispositivo e não havia nada que indicasse ele ter usado sua Habilidade.

Ayatsuji já havia experimentado essas situações inúmeras vezes. Não havia como o Kyougoku cometer um erro sob essas circunstâncias.

“Então me conte como salvar a Tsujimura-kun como prometido.”

“Ai, ai, que inveja.” Ele tirou um pedaço de papel de dentro da roupa. “Este é o contato do grupo que está atacando sua assistente. Você é capaz de pará-los apenas com essa informação, não será difícil.”

Ayatsuji decorou o número num instante e então tirou o celular do bolso.

“Aqui não tem sinal. Vou subir para telefonar.” Ele deu as costas para Kyougoku. “Depois eu te interrogarei. Esteja preparado.”

“Você é um detetive nada gentil com os idosos.”

“Fica aí balbuciando.”

Ayatsuji inclinou o quarto menor novamente e o usando como apoio subiu facilmente para o buraco.

“Ayatsuji-kun, deixa eu te dizer uma coisa.” Kyougoku falou quando Ayatsuji estava com a mão na saída.

“O quê?”

“Mesmo que salve sua assistente, você já perdeu. Sua vitória nunca virá. Não se esqueça disso de forma alguma.”

Ayatsuji ficou tentando entender até que disse vomitando as palavras:

“Não quero ganhar. Quero apenas que você morra.” Ele disse passando pela saída. “Já volto. Esteja pronto.”

Com o celular na mão, Ayatsuji passou pelo caminho subterrâneo trotando. Ele olhava para a tela procurando um lugar em que houvesse sinal. Quando finalmente conseguiu o sinal, já estava na metade do caminho.

Ele discou o número e ligou para o grupo atacante da Máfia do Porto. Atenderam. Ayatsuji disse sem esperar pelas palavras da pessoa do outro lado da linha:

“A Divisão já sabe o que vocês estão fazendo. E o Sakaguchi sabe como contatar diretamente o chefe de vocês. Se não pararem o ataque, ele vai informar secretamente sobre a sua transação. Se isso acontecer, mesmo que fujam para o fim do mundo, o esquadrão sob comando direto do seu chefe irá persegui-los e acabar com vocês. Se não desejarem isso, recuem.”

Sem esperar por uma resposta, Ayatsuji desligou o telefone. Com isso a Máfia do Porto não tem mais motivo para silenciar a Tsujimura e o Asukai. A única opção que restava era parar com o tiroteio e não esperar mais nem um segundo para fugir.

“Muito bem.” Ayatsuji virou a cabeça e olhou para o caminho do abrigo do qual tinha acabado de vir.

Agora só falta o Kyougoku.

Ele havia pensado em várias medidas para combater o gás. Embora um especialista intelectual, Ayatsuji dispunha de força física para oprimir um velho. Ele só não tinha feito isso ainda pois priorizou a Tsujimura e aceitou participar do jogo. Depois que o imobilizasse, era só esperar pelo reforço da Divisão que havia recebido suas coordenadas. Só precisava mantê-lo preso.

Ele voltou correndo para o abrigo.

Kyougoku havia sumido.

“…?!”

Dessa vez, Ayatsuji gritou estupefato.

Ele tinha acabado de solucionar o mistério de que só havia uma única rota de fuga dali. A saída pelo teto. E a passagem subterrânea era um caminho único, não havia onde se esconder. A mínima estranheza que houvesse, Ayatsuji teria percebido.

Ele procurou em todos os cantos dos dois quartos e no vão fora da sala. Mas Kyougoku não estava em nenhum lugar. Só havia uma parede de concreto após o vão. A menos que houvesse uma terceira sala, não existia uma passagem secreta.

Era o mesmo quarto simples de agora há pouco ─ ou melhor, agora tinha menos pistas ainda.

O truque de desaparecer de uma sala trancada. Ayatsuji gemeu.

Esse era o mistério verdadeiro. Inclinando o quarto menor, dava para alcançar o buraco no teto. Mas sem esse buraco, era impossível sair daqui. Sem quebrar nenhuma parede e sem a ajuda de outra pessoa, Kyougoku simplesmente sumiu como fumaça.

Quanto mais fácil, mais difícil de solucionar uma sala trancada. Mas uma simplicidade anormal dessa ultrapassa as possibilidades de resolução.

Ayatsuji ficou em pé no centro da sala. O que Kyougoku tinha dito por último?

─ Mesmo que salve sua assistente, você já perdeu.

Se ele não solucionar esse mistério, Kyougoku fugirá. Irá deixar escapar uma chance de uma em um milhão.

Parado no centro como uma escultura, ele não movia um milímetro se quer.

Após um tempo, o barulho dele gritando enraivecido e batendo o punho contra a parede ecoou pela passagem subterrânea.

 

✦ ✦ ✦

 

Eu e Asukai-san nos apressamos para o navio cargueiro. Nós já havíamos conseguido impedi-lo de zarpar usando a influência da Polícia Militar. Não havia mais como o Engenheiro fugir.

O navio tinha três andares. A camada de baixo para os contêineres, a do meio para veículos comerciais e a de cima para as cargas. Eu não acho que ele ainda esteja dentro do carro. Nós decidimos nos separar para procurar pelos andares. Eu com minha arma, e o Asukai-san com uma machadinha usada para destruir portas em caso de emergência.

O andar superior era largo, com caixas empilhadas até o teto que não acabavam mais. Não havia quase ninguém no navio para redução de custos. Por isso estava extremamente silencioso. Pude ouvir um barulho parecendo o rangido de um carro se movendo lentamente em outro andar, mas estava longe demais para eu conseguir distinguir o que realmente era. Com a arma preparada, eu prossegui cautelosamente.

Eu não gosto desse lugar. Há vários cantos para uma pessoa se esconder. Atrás das caixas empilhadas, na sombra de uma empilhadeira amarela. Havia várias caixas em que cabia uma pessoa também. Se isso fosse um filme, esse seria o lugar perfeito para os vilões atacarem a agente protagonista por trás. Não é um lugar em que eu queria estar perseguindo o Engenheiro.

Com o meu revólver apontado na minha linha de visão, eu continuei a seguir.

De repente, ouvi o barulho de botas de borracha esfregando no chão. O meu sinal de alerta pulou para o vermelho.

“Quem está ai?!” Eu gritei apontando a arma. “Apareça!”

Um vulto se moveu por detrás das caixas, perto da parede, tentando fugir ao ouvir minha voz.

“Pare! Se não parar, eu atiro!”

No desespero, o vulto tropeçou e caiu. “Ughh”, “uhh” eram os gemidos patéticos que ele soltava.

“Eu entendi, foi mal, desculpa. É como pode ver. Eu conto o que quiser, o que quiser, então me perdoe.”

Vestindo uma blusa azul, um homem de meia idade de baixa estatura estava caído no chão em pânico. Não era o Engenheiro.

Será um trabalhador do navio? Não ─

“Essa bolsa de golfe. É do Engenheiro, não é?” Eu apontei com a arma para a bolsa escura que ele tentava esconder atrás das costas.

“Is-Is-Is-Is-Isso é--” O homem de blusa azul tentou escondê-la e caiu de novo.

“Onde está o dono?”

“Não-Não posso dizer.”

Pálido, ele balançou a cabeça veementemente em negação. Eu aproximei a arma sem falar nada.

“Ughh, entendi, entendi! Pare!” O pequeno homem de meia-idade tremia como uma criança.

É uma pessoa difícil de lidar. Ele empurrou a bolsa para frente.

“É a bagagem do homem que está fugindo. Ele me deu depois de subir no navio com o carro e eu ia esconder no lugar instruído. Não tinham falado para jogar no mar, mas no último momento…“

“Espere, espere um pouco.” Eu o interrompi com a mão. “Pessoa que está fugindo? Está falando do Engenheiro? Esconder no lugar que indicaram…”

“São os procedimentos de um Traficante de Fuga.”

“Traficante de Fuga? Quem?”

“Euzinho.”

O homem de meia idade sorriu. Minha mão segurando a arma ficou cansada abruptamente. Não me sentia mais como uma protagonista de um filme.

“A polícia impediu que esse navio zarpasse.” Eu disse abaixando a arma. “O Engenheiro que você deveria deixar escapar não irá para lugar nenhum. Me diga onde ele se escondeu.”

Traficantes de Fuga se refere a uma das empresas criminosas que permite seus clientes fugirem ilegalmente para um lugar remoto. Eles arranjam passaporte e oferecem assistência para a vida depois da fuga.

Nessa era misteriosa cheia de criminosos Usuários, esse tipo de trabalho é bem popular no mundo do crime. Às vezes funcionam como transportadoras que traficam produtos perigosos. Quando é esse o caso, os Traficantes de Fuga geralmente cuidam de armas de fogo. Mas esse homem desarmado pelo que posso perceber, parece ser um especialista em fugas.

Pressionando-o, ele disse “por aqui” e começou a andar assustado. Enquanto andava, ele foi ficando cada vez mais animado e começou a tagarelar.

“Ele desceu do carro e se escondeu em uma das caixas. Como seria fácil achá-lo em um dos contêineres ou trailers por serem grandes, eu o coloquei em meio as cargas de comestíveis e máquinas de precisão. Há um enorme reembolso se esse tipo de mercadoria tem a caixa aberta porque se torna inusável, então a polícia abre por último. Por precaução, coloquei um fundo duplo e ele deitado na parte inferior. Vejamos, como se fosse salmão embrulhado. Entende?”

Eu não respondi.

“De qualquer forma, o fugitivo está naquela caixa ali…”

Ele apontou com orgulho para a montanha de cargas.

“Ué?”

“O que foi?”

O homem olhou confuso ao redor e disse:

“Não tá aqui.”

“O que disse…?”

“Era a terceira caixa de cima para baixo. A 58. Que estranho, tenho certeza que a coloquei aqui. Tem a 57 e a 59, mas só tá faltando a 58. Ele foi abduzido?”

“Será que ouviu a confusão… e fugiu?”

“Mas a caixa não tá aqui. Ele ia correr com a caixa debaixo do braço sentindo o perigo se aproximando? Ela é bem pesada.”

Ele tinha razão. Essas caixas alinhadas eram de um tamanho que dava para uma pessoa dormir dentro confortavelmente. Tirando a questão do peso, elas definitivamente não eram de um tamanho apropriado para carregar. Além do mais, a caixa de cima, a 57, estava exatamente empilhada em cima da outra. Digamos que tenha ouvido o tiroteio com a Máfia do Porto, ele colocaria perfeitamente a caixa de cima no lugar antes de fugir?

Nessa hora meu celular tocou. Quando peguei, verifiquei quem era.

Era o Sakaguchi-senpai.

“Tsujimura falando. Senpai, o Engenheiro…” Interrompendo minhas palavras, ele falou do outro lado da linha:

“Tsujimura-kun. Não precisa mais investigá-lo. Volte. Os investigadores da Polícia Militar acabaram de achar ele.”

“EH?!”

Surpresa, eu apertei o celular com força. Encontraram? Mas ele embarcou nesse navio tentando fugir para o exterior…

“Então vocês o capturaram!”

“Sim.” Dizendo isso, ele pareceu passar um momento pensando. “Tsujimura-kun. Passe a próxima ordem para o Ayatsuji-sensei. Para ele desvendar como detetive o que aconteceu com o Engenheiro.”

“O que aconteceu… Mas vocês não o encontraram?”

Foi então que eu entendi. O porquê desse pedido para o Ayatsuji-sensei.

Sakaguchi-senpai anunciou calmamente:

“O corpo dele foi encontrado.”

 

✦ ✦ ✦

 

Há uma porta diante de mim. Uma porta escura, pesada e pequena. Uma porta rústica feita de ferro fundido. Não há nenhuma decoração ou maçaneta. Uma vez fechada, nunca mais é possível abri-la.

E ela está fechada. Não dá mais para abrir. Não há mais nenhum meio de eu descobrir a verdade que existe do outro lado.

Eu abro meus olhos devagar. Essa ilusão projetada dentro das minhas pálpebras desaparece.

Essa porta de ferro não existe de verdade. Apenas por detrás das minhas pálpebras. Ela está fechada. Ninguém mais pode chegar na verdade além dela.

Ao abrir os olhos, o que havia diante deles era um corpo trazido pelo mar. Era uma pequena praia não muito longe do porto. Em cima da areia cinza estava um corpo sujo igual a um saco de lixo preto. Em volta, investigadores e peritos confusos.

Ninguém estava jogando conversa fora e sim fazendo seus trabalhos seriamente. Mas é claro. O corpo que está aqui não é um daqueles desconhecidos quaisquer. Era do assassino do Diretor-geral adjunto Sakashita, o assassino em série que a polícia e a Divisão perseguiram com a honra em jogo: O Engenheiro.

O mais próximo do corpo era o Sakaguchi-senpai inexpressivo. Como se estivesse olhando para uma velha latinha jogada, ele olhava para o corpo do Engenheiro.

“Já passou muito tempo desde a hora da morte. E ele está severamente prejudicado.” Ele disse olhando rapidamente para mim. “Será difícil até para a Divisão conseguir alguma informação pela perícia.”

Assim como o Sakaguchi-senpai disse, a forma como o corpo estava destroçado não era normal. Não dava nem para reconhecer de imediato que era o Engenheiro. Ele estava espancado por todos os lugares, acertado por alguma coisa pesada e havia sido destroçado ao ponto de não restar mais nenhum lugar em que pudesse sofrer fraturas. Somado a isso, havia incontáveis feridas em que parecia que sua pele havia sido arrancada. Pelo jeito foi um ataque bem severo que o matou.

Os peritos confirmaram suas digitais como sendo as mesmas deixadas por Kubo na estação e no carro roubado.

Parece que Kubo era seu verdadeiro nome. Então sem sombra de dúvidas ele era Kubo, o Engenheiro.

A pessoa que transformou minha mãe em uma assassina e a única que a conhecia. Esse homem estava morto diante dos meus olhos. O que eu deveria achar disso?

Os pescadores acharam o corpo trazido pelas ondas. Só a dissecação diria a hora da morte em detalhes, mas pela rigidez do maxilar e coloração, ele só pode ter morrido há não mais do que duas ou três horas. Foi quando eu estava enfrentando a Máfia do Porto. O Engenheiro… O Kubo morreu logo depois de embarcar no navio.

Depois de pensar um pouco, eu disse:

“Para ter conseguido matar o Engenheiro, Kubo, em tão pouco tempo, acredito ser alguém que sabia sobre seu plano de fuga. Ou seja, alguém envolvido no plano de assassinato do Diretor-geral adjunto.”

“Ou o próprio Kyougoku.” Sakaguchi-senpai assentiu. “Para ele, o Kubo não passava de um peão… Tsujimura-kun.”

“Sim?”

“Como eu disse anteriormente, esse caso é de extrema importância para a Divisão. Para que não percamos contra o Ministério da Justiça, precisamos descobrir de qualquer jeito o verdadeiro culpado pela morte do Diretor-geral adjunto e provar sua culpa. E como vivemos em uma era que é possível fraudar provas físicas e até uma confissão, é essencial uma Habilidade para uma fidelidade absoluta ─ Você entende, certo?” Eu assenti. “A pessoa que o matou só pode ser a que o estava manipulando. Isto é, o mentor por trás da morte do Diretor-geral adjunto. Há uma possibilidade grande de ter sido o próprio Kyougoku, mas não podemos afirmar. Porém não me importo.”

“Não?” Perguntei um pouco surpresa.

“O importante é provar que não foi a Divisão que armou a morte do Diretor-geral adjunto. E dada a situação atual, somente o Ayatsuji-sensei é quem pode provar.”

─ Então era isso.

“Solicite a morte do assassino do Kubo para o Ayatsuji-sensei.” Sakaguchi-senpai disse precisamente. “O princípio de ativação da Habilidade é completamente diferente dos outros Usuários. Ela só ativa diante da verdade absoluta. Isto significa que a morte não acontecerá contra um culpado falso ou será guiada por um erro de dedução. Consequentemente o indivíduo que sofrer uma morte acidental prova que ele era o culpado.”

─ Uma Habilidade onisciente.

A maioria das outras Habilidades são apenas reflexos dos próprios Usuários. Mas não a do Ayatsuji-sensei. A Habilidade de morte ativa apenas para aquele que pode ser considerado objetivamente o culpado. Então é descartada qualquer possibilidade de ser uma acusação falsa. Sua Habilidade é temida e considerada perigosa pela sua credibilidade absoluta ─ Por ser uma Habilidade extremamente rara capaz de registrar a exatidão deste vago mundo.

Por isso a Divisão o solicita. Mesmo ela sendo tão perigosa assim.

“Essa é uma ordem de prioridade máxima. No caso de recusa, erro ou não conseguir solucionar dentro do tempo limite, ele será tratado como um Usuário de Perigosidade Máxima. Lembre-o disso.”

Ser tratado como um Usuário de Perigosidade Máxima. Ou seja, ─ 'removido'.

“Está tudo bem.” Eu disse. “Ele me informou que ganhou o confronto intelectual contra o Kyougoku. Tenho certeza que revelará a verdade sobre essa morte também.”

Sim. É claro que estaria tudo bem. Não existe a chance daquele detetive imprudente, cruel e repleto de confiança não resolver esse caso.

 

✦ ✦ ✦

 

Ayatsuji estava parado em transe. O estrondo ensurdecedor da cascata isolava sua audição do mundo. A pálida névoa que surgia como se num sonho isolava sua visão do exterior.

Ali era onde um dia Ayatsuji e Kyougoku se enfrentaram e Kyougoku caiu ─ o lugar dessa queda.

Ele estava em pé próximo ao lago sem saber o que dizer. Ele procurava por uma saída. A saída desse enigma. Dessa armadilha.

Sem se preocupar em molhar os joelhos, ele enfiou os pés na beirada. A água gelada penetrou sua roupa, roubando seu calor.

Era inútil. Não havia uma saída em lugar nenhum. Não havia nenhuma solução. A saída da armadilha estava fechada.

─ Você não pode me vencer, Detetive Assassino.

─ Essa é uma luta a qual está destinado a perder.

“Então… era isso.” Ayatsuji disse para si mesmo.

A pele pálida, os lábios pálidos. A gélida intenção de matar que fez muitos criminosos tremerem, dessa vez mostrava suas presas ao próprio Ayatsuji.

“Então… era isso, Kyougoku.” Ele foi mais adentro da água. Para o fundo do lago. Para a origem da névoa.

Assim era a situação da sala trancada. O plano nocauteante do Kyougoku. É possível entrar, mas não sair. Uma maléfica sala trancada.

Ayatsuji enfiou grosseiramente os braços na água que jorrou em todo o seu corpo. Até que ele encontrou e pegou o que estava procurando do fundo. Ele a colocou contra a luz. A moeda brilhando ligeiramente.

“Desvendei tudo.” O monólogo escapou de sua boca. “O enigma, o seu plano, entendi tudo… Kyougoku.” As palavras saiam no lugar de vomitar sangue.

Todos os mistérios. Incluindo como o Kyougoku sobreviveu ao cair da cascata. O porquê da Habilidade dele não ter funcionado. Sobre o que era o poço. Porquê usou o Engenheiro. Como desapareceu da caixa subterrânea.

“Era isso, Kyougoku. Era isso o que queria dizer com derrota.”

─ Você já perdeu.

O real motivo do sorriso do Kyougoku.

Ayatsuji levantou o queixo, olhando para os céus. A luz do sol fraca e distante obstruída pela névoa era efêmera como se vista de dentro d'água.

“Você estava certo, Kyougoku.” Sua voz quase estridente. Seu tom não era de um predador, mas sim de uma presa. Não era de uma cobra, mas sim de um rato.

Ayatsuji fechou os olhos lentamente.

“Eu… perdi.”

 

✦ ✦ ✦

 

Asukai-san está em sua mesa.

Sem nem tocar nos vegetais em conserva na sua frente, ele pensa em algo no mais profundo silêncio.

A delegacia está movimentada como sempre. O tiroteio no porto e a morte do Engenheiro. Havia coisas demais a se fazer para os investigadores. De repente, o telefone tocou.

Ele observava o telefone. Estranho. Ele não lembra de já ter ouvido esse toque. Quando é sobre um assassinato, ele faz o barulho de um assassinato e quando é sobre um roubo, o barulho de um roubo.

O talento do Asukai era adivinhar o conteúdo do telefonema pelo barulho do toque. Mas dessa vez ele não tinha a mínima ideia. Nunca ouviu esse som.

Após o terceiro toque, ele desistiu e atendeu. Era alguém inesperado.

“…Ayatsuji-sensei?” Ele puxou o telefone mais para perto, prestando atenção em suas palavras. “Sim. Eh? Uma lista de pacientes que sofreram acidente de trânsito e estão em situação crítica? Sim, consigo preparar prontamente.”

 

✦ ✦ ✦

 

O barulho de carne sendo cortada ecoava pelo Escritório do Detetive Ayatsuji. Várias e várias vezes acertando a carne obstinadamente. A larga faca oscilava sem parar no espaço entre a carne e a espinha.

Eu fingia que não estava ouvindo esse barulho. Com os olhos nos documentos, fingia estar concentrada neles.

A ponta da faca girava no espaço entre as espinhas e as costelas sem nenhuma hesitação ou compaixão. Só havia o senso de obrigação calado em executar a punição.

Quem está segurando a faca é o Ayatsuji-sensei. Eu dei uma espiada nele. Ele está inexpressivo como sempre. Mas sua expressão está um pouco diferente do comum. No fundo de sua expressão fria, há algum sentimento escondido. Mas eu não sei qual é.

Ele vai despelando a fina pele da carne com a faca. Delicadamente. Depois, girando a ponta na junção das espinhas e costelas agora expostas, ele a remove. O barulho de osso sendo partido ecoa pelo escritório. Eu dou mais uma olhada nele. E então penso.

Se ele quer desmantelar carne de carneiro, não é essa faca militar que tem que usar, é uma de trinchar.

“Sensei.” Eu o chamei.

Ele não me respondeu. Apenas retirou a pele e carne restante da costela devotadamente. Ele sabia muito bem. Que ele precisava ler esse relatório que eu estou segurando. Sobre o Engenheiro, os antecedentes do Kubo, os provenientes do Traficante de Fuga que encontrei no navio e as filmagens internas do navio. Não era para ele estar destrinchando a espinha de um carneiro, nem descascando batatas. Nem moendo ervas e alho. É para estar solucionando o caso.

“Sensei, chega disso e me escuta.”

“Você se importa se eu usar ervas para temperar?” Ele me perguntou enquanto eu cozinhava.

“Não é hora para isso!” Quando eu gritei, ele tirou a mão de dentro do corte e me olhou.

“Eu… adoro ervas.” Ele assentiu e voltou ao trabalho.

Haviam duas vozes ecoando ao mesmo tempo na minha cabeça. Não é hora de pensar em tempero, se você não resolver logo o caso será 'removido' pela Agência, dizia uma. Ehh, então eu também vou poder comer? Dizia a outra surpresa.

Ignorando o meu estado de confusão silenciosamente, após descascar o alho, ele usou a parte interna da faca para esmagá-lo e o esfregou por toda a carne. Depois colocou o sal grosso, inclusive por dentro da carne, e adicionou pimenta preta fresca.

Passou a erva moída por cima e jogou óleo de girassol. Foi então que eu finalmente me libertei do cheiro das especiarias e voltei a mim mesma.

“Escute. O Traficante de Fuga confessou tudo. Ele recebeu dinheiro de um cliente anônimo que pediu para levar o Kubo ao exterior.” Lembrei do estranho homem baixo e de camisa azul que encontrei no navio. “Como é normal o cliente não revelar nada sobre si nesse meio, o Traficante não suspeitou de nada.”

Eu parei de falar e espiei a reação dele. Continuando a cozinhar, ele apenas disse “estou ouvindo.” Por isso eu continuei.

“Pelo jeito que ele se comportou na estação, não penso que o Kubo estava ciente do plano de fuga para o exterior. Ou seja, não foi ele quem pagou. E o Traficante de Fuga passou em detalhes como o Kubo fugiria para o contratante anônimo. Então ─ é possível essa pessoa ter roubado a caixa em que o Kubo estava e o ter matado em outro lugar.”

O contratante anônimo foi quem matou o Kubo. Essa é a conclusão que eu tirei dos documentos.

“Não há nenhuma contradição.” Ayatsuji-sensei falou.

“Não é?!” Eu sou uma agente excelente. Consigo deduzir algo assim, mesmo sem a ajuda do sensei.

Ele acendeu o fogo sob a frigideira, jogou óleo e a esquentou em fogo alto. Depois passou para fogo médio, pôs a carne e adicionou pedaços de alho, deixando-os dourar. O cheiro acertou meu estômago em cheio. Mas como eu sou uma agente de primeira classe, não me deixei levar por algo desse nível.

“E o que mais?”

“…Eh? Ah, o que era mesmo? O que mais tinha? Ah é, os pedaços de madeira inseridos nas feridas abertas no corpo batiam com o material da caixa preparada pelo Traficante de Fuga. Então ele foi morto dentro da caixa, ou pelo menos, é bem possível que caiu em cima ou do lado da caixa quando foi morto. Isso apareceu nas câmeras de segurança.” Eu mostrei uma foto do relatório para ele. “Quando nós estávamos no meio do tiroteio, uma minivan saiu do navio.”

Era um pequeno veículo branco em formato de cubo mostrado na foto. A parte da carga não tinha janelas, então não dava pra ver o que estava dentro.

“Foi esse o carro que carregou o caixote em que o Kubo estava. Infelizmente não dá para ver o rosto do motorista desse ângulo… Se nós acharmos essa pessoa, com certeza descobriremos quem o matou. Provavelmente foi quem contratou o Traficante de Fuga e o mentor que o controlou.”

Ao falar isso, uma certa pessoa me veio a mente. Kyougoku. O Necromante. Aquele quem controla criminosos.

Com isso tudo acabará. Certamente eu e o Ayatsuji-sensei daremos um ponto final nesse confronto. Mas suas próximas palavras traíram a resolução dentro de mim.

“Não.”

Eu olhei para ele.

“…Eh?“

“Você está achando que esse motorista está indo se encontrar com o Kyougoku, não é? Não está. Quem matou o Kubo foi um civil.”

“Mas!”

“Olhe a foto em cima da mesa.”

Seguindo a linha de visão dele, eu olhei para a foto em cima da mesa de trabalho.

“Hisashige Kakeba. Professor universitário. Foi ele quem matou o Kubo.

“Eh?” Eu fiquei aturdida. “Você já descobriu quem é o culpado?” Eu peguei a foto sem entender nada.

Era uma foto 3x4. Um rosto calmo que passa a impressão de trabalhar em uma escola. Ele provavelmente tem mais ou menos uns trinta anos. Não parece ser alguém que conspiraria nem agiria violentamente sem restrições. Foi esse homem quem espancou o Kubo até ele ficar naquele estado deplorável?

“Sua dedução não é ruim, mas não é a verdade. Ele é o assassino e quem sabia sobre o plano de fuga desde o começo. Ele esperou o Kubo entrar na caixa, a carregou para uma sala que não chamasse atenção e bateu nele por cima dela com um cano de ferro, o matando. Depois jogou o corpo no mar.”

Jogou o corpo no mar. De fato se ele fez isso, não dava para ser pego carregando a caixa pelas câmeras.

Porém… matou ele com um cano de ferro? Um humano tem força para desfigurar um corpo daquele jeito? Comparada as resoluções afiadas como se cortadas por um Kamaitachi, há alguma coisa estranha nessa explicação.

“Mas… se foi alguém sem relação com o Kyougoku, qual o motivo?”

“Vingança. Você também sabe sobre os assassinatos em série que aconteceram em Reigo. Ele era amigo de uma das vítimas.”

“Hã?”

O caso de assassinatos em série na ilha Reigo. Kubo executou um papel principal em relação ao grupo de assassinos.

“Como ele chegou até o Kubo sozinho é a próxima investigação. Muito bem, está pronto. Me ajude a preparar a mesa.”

“E-Espera um pouco.” Eu interrompi seu pedido frustrada. “Se é como você diz, precisamos entregar logo esse culpado para a Divisão! Essa é uma missão de prioridade máxima! Se você falhar em resolver o caso, você será punido. E desse jeito que estamos, corre o risco dele fugir…”

“Ele não vai fugir para lugar nenhum.”

Eu ia perguntar por que, mas a frieza que emanou de seu olhar me fez entender a razão antes mesmo de perguntar.

“Ele já morreu acidentalmente.”

─ Uma Habilidade que supera o carma e mata o criminoso.

“Eu investiguei a casa do Kakeba e encontrei o cano de ferro ensanguentado lá. Também encontrei evidências dele ter interceptado o telefone do Kubo. Com essas provas todas, não há mais necessidade de procurar pelo culpado ─ O Kakeba colidiu com um caminhão em que o motorista dormiu no volante numa rodovia metropolitana e morreu.”

Não tem como a Habilidade dele acusar alguém falsamente. Se o Kakeba morreu num acidente, isso prova que ele era definitivamente o culpado.

“Entendi.” Eu disse. “É só eu pegar os pratos, não é?“

Eu circundei a mesa de jantar, arrumando a louça.

“Estava um pouco insegura.” Eu disse enquanto colocava os talheres. “Desde o último confronto com o Kyougoku, você estava um pouco estranho. Achei que não queria resolver o caso… Mas você preparou esse carneiro para nós celebrarmos você ter solucionado, não foi?”

“Nós?” Ele disse inesperadamente enquanto servia a comida com um aroma de dar água na boca. “Por que está se incluindo?”

“Eh… Eh, eh?!” Eu comecei a me mover peculiarmente sem pensar. “Espera um pouco. Nós vamos comer juntos, não vamos?”

“Sinto muito, mas não importa como veja, só tem porção para um.” Ele levantou a frigideira me mostrando.

“Eh, heh, eh…? Então para que eu aguentei o cheiro maravilhoso dessa carne e alho, segurei a saliva e arrumei a mesa…?”

“Você quer que eu te diga o que você é?” Ele aproximou a frigideira do meu rosto.

“Aaaaaaah.” Uma voz inesperada saiu automaticamente.

Ele aproximou a frigideira de novo.

“Aaaaaaah.” Uma voz inesperada saiu automaticamente.

“Vou te contar. Você é a encarregada de divertir o escritório.”

Eu cai de joelhos.

 

Minha consciência divagou, meu estômago roncou, minha visão ficou levemente embaçada. Quando eu estava a ponto de apagar, vi vagamente o Ayatsuji-sensei, que havia esgotado sua cota de piadas, trazer da cozinha outro pedaço de carne já cozinhada, mas era tarde demais. Por causa do choque de ter tido um carneiro de primeira classe esfregado no meu nariz, eu despenquei desmaiada no chão e tive minha foto tirada.

Por sinal, a carne estava deliciosa ao ponto de eu soltar uma voz estranha.

 

✦ ✦ ✦

 

……

Por que naquele dia eu não o questionei mais a fundo? Eu sabia que havia algo errado. Era apenas uma pequena contradição, porém se eu tivesse procurado com afinco, teria chegado na origem.

Por que eu não dei esse passo? Se eu fosse mais inteligente, teria evitado a situação fatal do Ayatsuji-sensei.

Por que eu não tive essa prudência? Se eu tivesse um décimo do poder de antecipação do Kyougoku e do Ayatsuji-sensei, aquilo não teria acontecido.

Mas agora é tarde demais para o que seja.

 

Nessa noite, o Ayatsuji-sensei escapou da rede de monitoramento e desapareceu. Nunca mais voltando.



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