Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 38: Sorriu ou Chorou?

 

Ficaram parados por alguns momentos. A figura da garota continuava curvada, com ambas mãos entrelaçadas por detrás das costas. Sua altura já não era alta, 1,62m, e com essa inclinação aparentava ser ainda menor, mais frágil. O seu anterior sorriso se alargou ainda mais, tomando um tom manhoso. Deixou a perna esquerda estirada como suporte, enquanto a direita ficava dobrada, dando uma pose mais elegante. Seus olhos encaravam fixamente o homem à sua frente que não podia esconder a excitação no rosto.

Por fim, Sea se moveu.

— Ugyah!? — Gritou a garota de forma desafinada devido ao súbito movimento.

Em um rápido movimento o dorso do invocado desceu, chegando quase a tocar o chão. Abriu suas pernas e braços e, com uma poderosa investida, agarrou a garota em sua frente com uma força surpreendente. Imediatamente a feição da menina se tornou confusa.

Sea não se importou com o corpo trêmulo ou com o claro desconforto e continuou. Içou a garota ao céu. Pôs uma pressão descomunal nas pernas e praticamente a jogou ao alto, por mais que não tenha se distanciado do seu agarro, sendo recapturada em seguida.

Agora o peito da garota tocava a parte superior da testa de Sea, e seus braços, sem forças, ficaram jogados contra suas costas. O nariz e boca do invocado estavam encostados contra a barriga. Apenas as duas camadas de tecido o separavam da pele da jovem.

— U-u-uaaaaa! — ela soltou mais um berro, dessa vez mais agudo e beirando ao desespero.

Antes que tivesse a capacidade de reagir pondo em palavras, seu corpo instintivamente começou a se debater. Havia entendido como uma presa capturada pelo seu predador. Suas pernas foram de cima a baixo na tentativa de machucar Sea, porém mesmo acertando-o perto de locais delicados, não soltou.

O “abraço” do homem ficou mais forte, não deixando nada sob o tórax ou acima das coxas se moverem. Agora começava seu ataque final. Como se sua vida dependesse disso, Sea começou a esfregar sua face na barriga da menina, abrangendo totalmente tanto o flanco esquerdo quanto direito. Era uma região sensível, então normalmente Limit sentiria cócegas, porém dessa vez apenas conseguira sentir temor. Seus olhos viraram um V deitado (> <), sinalizando seu constrangimento. Seus lábios rosados ficaram bambos, e iniciou uma série de socos contra os ombros do meliante. — por mais que tenham se provado inúteis.

— Uwa... Uwawawa... — seu estado mental não conseguia criar uma frase condizente para dizer “por favor, pare” ou algo do tipo, por isso o que saiu foi... — Puliça! Puliça...! — estava tão confusa que sequer conseguira dizer corretamente.

O apego foi ficando mais forte do que deveria ser possível, e não mais só o rosto se movia, o tronco, cintura e quadris também iam junto com a excitação. A figura da garota subia alguns centímetros e caía, tudo em um ciclo constante.  Seus olhos ficaram amuados, perto do ponto de desabar em lágrimas.

Esse ato continuou por mais alguns segundos, e provavelmente duraria bem mais se no meio a garota não tivesse percebido algo...

— Puli...! Ah! PeraÍ! — seus gritos por socorro pelo órgão estatal cessaram em prol de uma ideia vinda em mente.

Suas pernas continuaram a se mover, no entanto sua parte superior disponível se acalmou. Mesmo com as dificuldades inspirou profundamente e expirou. Em seguida ergueu seu braço, tão pequeno que em meio a tanta confusão era dispensável. Cerrou o punho como se estivesse preparada ao ataque e disse:

— Para!!! — o braço caiu todo de uma vez. O cotovelo chegou a tocar no pescoço de Sea, mas o intuito não era causar dano.

— U...uaaah! — algo bem pior que um soco o esperava.

Em um único momento todo seu corpo ficou imóvel. Seu rosto, única exceção, demorou um tempo para extinguir o prazer, trazendo à tona uma cara confusa. Suor escorreu pela testa. Lentamente o agarro foi se tornando mais frouxo até se soltar, e como se levitasse distanciou-se do corpo da garota. Seu rosto estava confuso, por mais que entendesse o que estava prestes a acontecer, resultando em um pedido de misericórdia. A garota, entretanto, pôs sua primeira feição séria, ainda com o punho cerrado.

Ela levantou o braço mais uma vez, apenas para leva-lo ao chão.

Por um momento o corpo de Sea foi deixado suspenso, porém no instante seguinte uma pressão sobre-humana o atingiu por cima. Ele girou até ficar numa posição de barriga para baixo, e como se uma mão extremamente forte o empurrasse por cima, foi de encontro ao chão. Mesmo o solo continuando intacto, dava para sentir o quão forte o golpe tinha sido.

Levou um tempo até a confusão em seu cérebro se dissolver. Seus olhos estavam fechados e o punho cerrado na tentativa de diminuir a dor. Os pés mexiam brevemente, ainda assim não podia se levantar. Sem alternativas ergueu o queixo. Via a garota com um olhar sério. Porém, ao ser marcada com o olhar de Sea, recordou o que acabara de acontecer e entrou em guarda. Levantou a perna e cruzou os braços, na intenção de proteger as partes íntimas. Tendo em mente a sensação seu rosto ficou mais vermelho, e as lágrimas voltaram em seu rosto distorcido.

O homem no chão não sabia a melhor forma de suplicar. Em uma ação inconsciente soltou um sorriso amargo. Limit, ainda com lágrimas nos olhos, levou seu punho ao chão mais uma vez, agora num misto de olhos sérios e feição amedrontada. Um “Urgh” pôde ser ouvido, contudo continuou sem falar. A garota de cabelos azuis cansou de esperar, finalmente vencendo o embaraço. Deu três passos adiante e ficou próxima de Sea. Levou o pé o mais alto possível, e logo o desceu. A sola foi direto contra a testa, e posteriormente uma série de chutes mais fracos utilizando da sola foram lançados.

Com isso imaginou que logo escutaria um lamento, no entanto superou suas expectativas. À medida que ia lançando os chutes o sorriso de Sea ia ficando ainda mais vasto... ao ponto que até um “hehe” escapou de sua boca. Limit ardeu em fúria, mas ao entender as entrelinhas da reação, também sentiu um nojo profundo.

— Nojento desgraçado! — ela logo retraiu o pé. Seus braços se estenderam completamente na vertical, encostando diretamente contra o dorso, sinalizando sua raiva. Suas sobrancelhas caíram e os olhos ficaram afiados.

Isso só fez a alegria de Sea se elevar. Foi um erro fatal pois, consequentemente, a raiva foi às alturas. Tinha de descontar de alguma forma.

Limit se preparou. Distanciou-se alguns metros de Sea e fez posição de maratonista. Seu rosto tão irritado quanto nunca. Sea apenas pôde soltar um “Uh-oh...” antes do que vinha a seguir.

Ela disparou. Tão rápido que o branco que a protegia da escuridão foi jogado para cima. Seus braços estavam retos no intuito de diminuir a fricção do vento contra seu volume corporal, demonstrando a sua seriedade.

Antes que as mãos de Sea pudessem se mover para dizer ‘pare’, a garota chegou em sua frente.

Seus dedos acertaram perfeitamente a barriga dele, entrando pelo espaço livre de sua posição. Cravou ainda mais o membro até que metade do pé estivesse sob a sombra da barriga, e aí sim deu um chute com toda sua força.

Claro que nesse exato momento a força invisível sobre Sea foi desativada. O mesmo foi jogado a dezenas de metros de distância. Seu corpo cambaleou uma, duas... sete vezes contra a escuridão, cada uma sendo mais fraca que a anterior, porém jamais deixando de ser destrutiva. Ele finalmente parou.

Sob circunstâncias normais qualquer humano teria morrido devido a tanta potência, mas não foi o que aconteceu. Ele ficou de joelhos momentos depois, com o braço esquerdo o sustentando enquanto o direito segurava a barriga. Normal ou não, tinha doído pra burro!

Seu olhar estava afiado, em resposta a garota que também não parecia ter levado tudo na brincadeira. O clima foi ficando mais pesado, a expressão de cada ficando mais fechada e carrancuda... até que...

— Haha...

— Hue!

A máscara de ambos caiu, revelando a verdadeira faceta. Tudo não passara de um pequeno ato improvisado. Mesmo com algumas costelas quebradas Sea correu em frente, e assim Limit o fez.

Sea correu de braços abertos, por mais que lentamente devido o machucado. Em contrapartida Limit avançava como um torpedo, já com lágrimas em seus olhos.

— Li-

— Pai! — Ao invés de um abraço mútuo e carinhoso, Limit o acertou como um caminhão.

A potência foi tanta que caíram. Agora, com os corpos juntos no chão, o branco protetor se estendeu. O que antes protegia apenas as partes que tocariam a escuridão se alastrou, formando um círculo de vários metros de raio.

Sea quase perguntou o porque, sim, quase pois Limit o abraçou com toda a força que podia, derramando uma série de lágrimas contra seu peito.

— Pa... pai boboca! Por que demorou tanto!? E ainda mais me receber daquela forma...! Eu não soube reagir, tá legal? Você parecia um assediador descontrolado. Burro! Boboca! — seu rosto esfregava contra o peito enquanto jogava essa série de lamentos, alguns do fundo do coração, outros devido a situação de momentos atrás — Ah! E... e... e caso não tenha ficado óbvio, eu sou Li-

— Limit, eu sei. — Sea interrompeu a fala dela. Com o indicador ergueu o queixo dela para encará-la com os olhos. Com o indicador restante limpou as lágrimas, por mais que outras viessem em seguida. — Minha filha. — Mesmo dizendo com toda seriedade, seu rosto ficou um pouco vermelho.

O rosto de Limit já não podia mais ser compreendido. Estava em um misto de emoções que iam e vinham, mais fortes e mais fracas, dando espaço para novas enquanto outras acabavam. Estava completamente corada devido ao choro incessante, mas também devido a alegria e excitação percorrendo seu sangue. Os braços fechavam automaticamente, como se seu corpo não tivesse a intenção de largar um objeto tão precioso quanto Sea. As lágrimas de alegria corriam dos olhos, deformando-se pelas bochechas até caírem do queixo, direto no peito. Sua boca trêmula não sabia o que dizer, soltava sons inconstantes e sem significado. Ainda assim, conseguiu dar um último grito antes de sucumbir completamente ao choro.

— Paiiii!!!

Sea pegou a garota pela nuca e a encostou contra seu peito, fazendo cafuné no cabelo para melhorar o estado emocional dela.

A conversa que ela tanto quis ter finalmente teria seu início.

...

— Que... querida... — ainda não estava acostumado com essa forma de tratamento. — já tá bom, não?

— Ey dum kélu labar.

— Hum?

— Akataketingatá.

— Acho que você só desistiu de falar mesmo...

Para a primeira pergunta Limit respondeu “Eu não quero largar”, porém de tanto choro não conseguira formular. Após ter notado sua falha ficou ainda mais nervosa e quando tentou se corrigir sequer fez sentido.

Sea observou o corpo trêmulo por alguns segundos e depois suspirou. Com a mão esquerda trouxe a garota para mais perto enquanto dava tapinhas nas costas com a direita. Ela aparentou ficar irritada por ser tratada como um bebê, quase contestou, mas se deixou levar pelo prazer.

Já se alongava por um bom tempo, então após esse pequeno diálogo a garota conseguiu se acalmar. Lentamente desgrudou o abraço e afastou seu pai, Pôs cada mão no braço oposto, e se afastou. Sea a ajudou tanto quanto possível.

Limit sentou com as pernas em formato de W. Seus punhos estavam sendo usados para limpar as lágrimas restantes. Quer queira, quer não, parecia demais uma criança. Ao terminar o processo voltou o olhar para seu pai, porém o constrangimento da birra que acabara de fazer veio em mente, por isso corou um pouco e inclinou a cabeça, tentando não trocar olhares.

Sea arrumou a própria postura e sentou de forma que a altura coincidisse com a da outra parte. Sua perna direita ficou na vertical, enquanto a outra como um V deitado, porém com ambos pés se tocando. Sustentou o braço dominante na perna e com o restante levou a mão até o rosto da garota. Limpou o resto do líquido salgado e endireitou o rosto.

A conversa que teriam era para ser feita frente a frente.

— Também, agir assim não combina com você.

— Hue... — soltou um riso irônico para a fala sem sentido. Esta era a primeira vez que Sea se encontrava com ela, não tinha forma de saber sobre sua personalidade. — ... Heh... — não, tinha sim.

Um conhecia o outro melhor que si mesmo.

— Pois bem! — a voz saiu um pouco fina, não tinha se recuperado completamente, contudo não ligou e continuou. — Sou Limit! Limit Scal... não, me recuso a aceitar que esse seja meu sobrenome, te deserdo como pai.

— Mudou rápido! E inverteu completamente a lógica! — Sea entendeu a piada, e internamente sentiu vergonha pelo próprio nome. — Eu tava sem tempo, tá legal!? Eu sei que é um nome merda, e o sobrenome pior ainda, mas já foi feito e foi! Você não escolhe seu nome, agora fica quietinha.

— Você já tem um nome e sobrenome, paspalho! É sua culpa ter esquecido até a droga do seu nome! O outro era muuuuuuuuito melhor!

— Não lembro qual era, mas concordo!

Esse ódio vinha principalmente por “Sea Scalding” ser “Mar Escaldando”, até o tempo verbal estava errado, já que o correto seria “escaldante”.

Por mais que trocando xingamentos, e o clima parecer de briga, acabaram por chegar num consenso. Limit ainda lançou mais alguns xingamentos até se acalmar.

— Então, vão demorar muito aí ou...? — uma terceira voz veio de uma região desconhecida. — se forem se beijar me avisem, não sou fã de incesto... mas devo admitir que formam um belo casal.

— Ah, maldito! Aparece agora!? — quem gritou foi Limit, mas Sea compartilhava da mesma opinião.

Atlas era essa pessoa. Limit e Sea não ficaram surpresos. De certa forma era até imaginada a vinda dele aqui. Ainda assim, a garota não esqueceu como foi “abandonada” em pleno ringue por este título maldoso, e para mostrar o descontentamento fez um beicinho enquanto cruzava os braços.

— Apenas deixando claro, não é minha culpa você ter me prendido.

— Não ligo! Você não deixa uma dama frágil e indefesa contra um monstro sozinha! Perdeu o cavalheirismo!?

— Heh... — isso soou irônico aos seus ouvidos devido o resultado do duelo.

Atlas ia se aproximando ao passo que Limit se afastava. Não estava de bom humor para conversar com ele. Levantou a mão mais uma vez com o punho cerrado.

— Ei, essa pose... — por um momento Atlas entrou em um pequeno choque.

— Hum...? — Limit viu isso e olhou para seu próprio braço, então arregalou os olhos e o baixou forçadamente com a outra mão. Fez uma pose desconfiada e temerosa, todavia logo a descartou. — Minha conversa com você não é agora! Sai daqui!

Ela abriu a palma da mão e jogou o braço da esquerda pra direita.

— Ei, ei, de novo não!

Um buraco se abriu sob Atlas, fazendo-lhe desaparecer dali. Apenas seus gritos foram deixados para trás.

Pai e filha riram em conjunto.

— Mas bem, deixando ele de lado.

— É, melhor ir direto ao ponto. — antes que Sea, envolto em escuridão pudesse dizer algo, Limit concluiu o que quis dizer.

Havia muito a ser explicado. Na verdade era bem óbvio que Sea não compreendia nada do que estava acontecendo, por mais que compreendesse ao mesmo tempo. Entendia o sentimento, mas não o específico.

— Quem é você?

— Sou Limit Scalding, sua filha. — falou em tom de piada, porém com a reação de Sea sabia não ser o que esperava. — estou com você desde o nascimento. Éramos duas consciências dividindo um único corpo, porém depois do nosso encontro com o mago, ele estabeleceu um limite para nossa relação. Assim, tornando o que sou hoje, uma consciência adormecida em seu cérebro até me tornar necessária.

— Hum...

— Hue, imaginei. De antemão, não, não sei o porque de estar aqui. Não adianta perguntar. Tudo que sei é o que você viu com seus próprios olhos e o que descobri estando por aqui.

A explicação inicial de Limit foi bastante geral, tornando a mensagem incompreensível. Bem, se fosse algo tão simples ao ponto de ser explicado brevemente, seria um péssimo mistério. Ela deu de braços e negou para si mesma com a cabeça.

— Bem, vamos lá. Você lembra pouco depois do que aconteceu com o vovô e a vovó? — por isso ela quis dizer o pai e mãe de Sea. — A época dos olhos mortos.

— Sim, o mago que encontrei... tramos na caverna. O limitador que ele me falou achei que fosse apenas para restringir a minha capacidade de processamento, já que na época eu tava com fortes dores de cabeça... então aquilo era você?

Quando tudo parecia perdido para si, nada importava, estava praticamente sozinho e tudo que mais desejava era o fim... Sea fora até uma caverna. Lá encontrou esse mago, e ele o guiou, também despertando nele esse desejo por antropologia... Foi o que o salvou na época.

Todavia, essa é uma história a ser contada em detalhes em outro momento...

— É, mas não me chame de “aquilo”, — falou insatisfeita. — eu não sei o que ele é, mas parecia saber sobre minha existência. Todo aquele papo de que cada vida é diferente, toda pessoa importa, e que por isso duas pessoas não podem dividir uma mesma vida e blá blá blá balela, aí ele nos separou.

— Não é balela! — por levar as palavras do Mago como ensinamentos de vida, Sea contestou. Limit apenas abanou as mãos como um pedido de desculpa e continuou.

— Bem, antes daquilo nós vivemos a mesma vida. Eu sentia o mesmo que você, via o mesmo, pensava o mesmo, escolhia o mesmo... tecnicamente éramos a mesma pessoa. Só que aí nos separamos. Você ficou com o corpo principal e eu fiquei aqui, nesse meu mundinho... — ela indicou o mundo negro que a rodeava com o indicador. — Daqui eu via tudo que você via, mas como se fosse um cinema. Normalmente apareceria uma tela Full HD 4k por aqui, mas já que tá dormindo não vai dar pra mostrar...

Obviamente a tela Full HD era uma piada, ao menos assim Sea pensou. Ele abanou a cabeça tentando pôr tudo no lugar. Parecia complicado e simples ao mesmo tempo. Para ajudar a pensar se levantou. Seguindo-o Limit também ficou de pé, sendo puxada pela mão.

— E também... tinha uma coisa a mais. — disse enquanto limpava o macacão. — Eu ganhei uma forma de compreensão sobre seu corpo, meio que... hum, como dizer...? Como se eu pudesse controla-lo em todo sentido, tanto sentimental quanto físico.

Para essa informação Sea ficou surpreso. Olhou pelo seu corpo para ver se estava tudo normal, sendo controlado por si, porém Limit apenas sentiu vergonha dessa ação.

— Hum, não. Pera. Já entendi o exterior. Por algum motivo que sabe se lá qual você nasceu comigo, o mago veio e nos separou. Pum, veio pra cá e começou a ver minha vida sentindo o que sinto só que com uma consciência de observadora. Certo. — o invocado falou rápido para ver se tinha entendido, fala a qual Limit concordou com a cabeça, insinuando estar correto. — Mas eu sei que vivi minha própria vida, fiz minhas escolhas e senti o que devia sentir.

— Hum... — para essa constatação a garota virou os olhos. Mordeu os lábios como se tentando aliviar a tensão. Era um tema delicado, mas tinha de continuar. — Sim, a vida que você viveu era sua vida. Só que, vez ou outra, eu interferia um pouquinho... imaginando ser o seu bem.

— Interferia...? Como...?

Desse ponto em diante a anterior atmosfera amigável se tornara algo mais tenso. Um braço de Limit se dobrou, indo para trás e segurando o outro braço. Ela continuou.

— Papai, não haja também como se nunca tivesse notado... ou ao menos um indício... mas o que quer que eu tenha feito, foi tudo pensando ser o melhor para vo-

— COMO VOCÊ INTERFERIU!?

Isso não era mais uma brincadeira ou mistério.

Agora, a própria existência de Sea o que o tornava Sea estava em jogo. Talvez não para todos, mas sim para ele. A visão de vida dele era bem clara. Toda pessoa tem sua própria vida, cada vida é insubstituível. Tanto um escravo quanto um rei possuem o mesmo valor. Cada um com suas experiência e escolhas. Cada um sendo cada um. Todos sendo diferentes entre si, mesmo nas mínimas coisas.

Se outra pessoa estava escolhendo por ele o que sentir, quando sentir, isso só podia significar que...

Sea Scalding nunca foi Sea Scalding.

Investiu contra a própria filha, segurando-a fortemente pelos ombros. Ela se assustou, mas aceitou o fato. Desviou a cabeça, e quando o invocado notou o desconforto, afrouxou o aperto.

— Papai, você nunca sentiu ódio, sentiu?

Esse sentimento.

— Um sentimento ardente corroendo tudo de bom que tem dentro de si. Uma felicidade de décadas pode ser convertida em um sentimento puro e repleto de ódio em segundos... você nunca chegou a sentir.

A falta dele.

— Isso porque eu nunca lhe permiti sentir.

O atormentava.

— A primeira vez foi... quando você estava apanhando de um menino. Você o dominou, sentiu ódio, ia retribuir... só que nesse momento o parei. — ela se referia a alucinação que Sea tivera no quarto do castelo, pouco antes de começar o treinamento.*

— Aquilo foi só uma alucinação devido os machucados!

— Quando você começou a sentir ódio de Elias no seu primeiro encontro... — ela destacou a reunião pouco depois de receberem títulos.

— Fiquei puto com o jeito dele!

— Vai negar até mesmo a forma como agiu logo depois de deixar a mamãe ser capturada?

— Eu... eu...

Sea não conseguiu responder essa última indagação.

Não tinha o que responder.

Foi emboscado, perdera a mulher que amava. Deixado em um buraco por dias, sem consciência, alimentando-se de raposas cruas... ainda assim, chegando ao castelo estava calmo como num dia outro qualquer.

— Ah... — recordou também que fora esse o motivo de Ase ter ficado com raiva. Também o motivo de ter se odiado no quarto e tentado desacordar por vontade própria ao bater a cabeça contra a parede.

Então... tudo era verdade?

— Eu nunca te deixei desenvolver ódio ao ponto de senti-lo na essência. Eu fiz isso repetidas vezes durante quase esses últimos dez anos... sempre que você começava a desenvolver, eu ia lá e te parava...

Sea caiu de joelhos. Não importava como visse isso, ela estava certa. Ou ao menos podia confirmar que seu comportamento não era natural.

— Por quê...? — sua voz veio rouca, fraca, perto de sumir. Não queria se aprofundar ainda mais no assunto, mas tinha de o fazer.

— Ora, ainda pergunta...? Você estava vendo meu duelo contra Elias, não? Aquilo não é motivo o suficiente?

— ...

Pelo que Sea lembrava, ela havia ficado horas a fio torturando Elias, despejando toda sua raiva contra sua pessoa...

Não.

Não era raiva.

Por nunca ter sentido não chegou a compreender que aquele sentimento era... ódio.

— Aquela sua alucinação... não era exatamente uma alucinação... não entendo perfeitamente bem, mas imagino que era algo como seu futuro se não controlasse esse ódio. O que viu no duelo foi uma palheta ínfima... devo ter dito algo como ‘0,1%’, mas na verdade não chega perto disso. Imagina o que aconteceria se você tivesse esse ódio liberado em sua totalidade? Nem o mundo... nem você estariam a salvo.

— ...

Claro que a última fala de Limit não passava de suposição. Ela não podia prever o futuro para saber o que aconteceria com Sea caso não interferisse... mas era o que sentia. Um sentimento tão ardente que galáxias e universos pereceriam sob seus pés.

Nada estava a salvo desse ódio incontrolável.

— Quando o ódio te consome, você não sabe mais como voltar à paz. É difícil não odiar. Eu sei. Mas ao se submeter ao peso incomparável desse sentimento tão pesado você... se torna uma máquina revoltada em busca de destruição. Uma máquina de matar. A justiça dentro de você se cega. Por mais que tente se controlar, a dor no coração sempre volta. Almejando sempre voltar ao estado de paz. Precisava o mínimo de empurrão para soltar a fera. E por mais que tente acalma-lo... cresce com o tempo. Não adianta fugir, correr... sempre volta ao mesmo caminho. Um labirinto em que todas as passagens levam ao mesmo destino. Você continua dizendo a si que vai cicatrizar, vai passar, vai levar a algum lugar... mas não vai. É como um céu noturno. Ele te faz perceber que o que sobrou de si é apenas um ponto do seu verdadeiro eu imerso em uma escuridão vasta de sentimentos negativos. E então, quando for lutar contra o mundo, vai pensar estar fazendo o certo... enganando-se com falsas belezas. O ser humano por si só é fraco, se afundam tão facilmente... e no fim, se torna um cadáver. Uma nova forma de você criada pelo preço do velho. Você olha na cara do senhor desespero e... quando percebe que não sente mais medo, é a prova definitiva de que já morreu por dentro. Ele te torna em tudo aquilo que jurou jamais ser. — falou tudo de uma só vez. Não pretendia que fosse uma fala tão longa, porém precisava passar seus sentimentos. Abanou a cabeça para os lados, negando a sensação desconfortável e continuou. — Não se torne outra pessoa. Não se curve ao peso horrível em seu coração. Mesmo se o impulso pedir, negue, não pereça. — por fim, viva sua vida do jeito que quiser viver, sendo você mesmo, sendo a pessoa que tanto amo e me importo.

A esse ponto, Sea conseguia compreender. Desde que nasceu sentia ter algo faltante em si, não o permitindo ser completo. Se sua vida toda houvesse sido vivida sem poder odiar alguém, isso com certeza o quebrava como pessoa, indo contra seus próprios princípios. Contudo, frente a essas palavras tão sentimentais, vindas do fundo do coração de uma pessoa que tanto o amava, como podia continuar sendo egoísta? Tudo que Limit havia feito era em prol do seu bem, pensando sempre nele. Sua vida era por ele.

Caiu em lágrimas. Seu cérebro estava em uma contradição pesada. Por um lado seus princípios morais, tudo que guiava sua vida e futuro estavam em xeque. Por outro, se pendesse para liberar seus verdadeiros sentimentos, ele seria destruído junto a tudo que buscava saber.

Suas mãos foram ao rosto, a cabeça doía. Não sabia o que pensar, falar ou responder. A marca feita na estrada de sua vida estava feita, nada podia tira-la.

Mas o que estava para decidir era simples. Não uma fala complexa ou bem elaborada, mas sim um simples...

— Perdão...

Enquanto lutava constantemente dentro de si para decidir o que fazer, uma voz rouca chegou aos ouvidos. Não precisou levantar a cabeça para pensar o por que de estar sendo tão egoísta.

A garota em sua frente começou a derramar lágrimas. Não se comparava nem um pouco às de alegria de mais cedo. Eram tristeza. Sua vida toda foi dedicada a proteger seu pai, aquele por quem tanto se importava, de ter um destino cruel... de ser levado por um sentimento desconhecido. E mesmo tendo sempre pensado única e exclusivamente no bem alheio, estava sendo culpada.

— ...

— Ah...!

Deixou seu conflito interno de lado. Não podia suportar ter a visão de Limit assim. Seu rosto não foi criado para chorar, e sim para sorrir. Abraçou-a com força. Deixou um braço pela cintura e outro na nuca. Dando-lhe um local para chorar.

— N-não precisa se preocupar! Mesmo que tenha interferido vez ou outra, foram mínimas em um mar de escolhas próprias minhas, certo? E daí que 1% da minha vida tenha sido com você me influenciando? Não importa, o resto fui eu! Eu sempre fui o garoto boboca que não sabe ler o clima, amante de livros e recluso que nunca conseguiu fazer amigos. Me trancava no quarto e assistia anime de menininhas fofinhas até dormir, eu continuo sendo esse garoto, não é?

Era mentira.

Ele mesmo não acreditava nisso.

Ainda assim, continuou dizendo, como se suplicasse pelo bem-estar de Limit.

Ela havia se acalmado, então Sea a distanciou, tomando cuidado com seu corpo. Limpou as lágrimas que caíam e forçou um olhar confiante, por mais que não tenha saído perfeito.

— Também, foi só nesses momentos com ódio, né? Esse tipo de coisa não é normal, então realmente não conta.

Para essa última fala, os olhos de Limit se espantaram. Ela imediatamente desviou seu olhar, também se afastando completamente de Sea. Grudou os braços como se preocupada.

— Foi só com o ódio, certo...?

Limit desviou ainda mais o olhar. Conseguia sentir o que estava prestes a vir. Seus olhos ficaram um pouco molhados. No entanto lutou contra e foi em frente, aceitando as consequências de seus atos.

— Quando você veio para cá, foi invocado... foi um misto de sentimentos diferentes. Sabe, pessoas normais não levam uma invocação tão facilmente... — ela apontou para seu pesadelo pouco depois da invocação. — A maioria das pessoas surtariam. Normalmente não seria um problema tão grande, mas juntou ódio, medo, ansiedade, nervosismo... e um grande misto de coisas. Aí eu tentei ajudar, mas estava excedendo até meus limites. E aí...

— Safira.

— ...

— Ei, você não tá dizendo que...

‘O que sinto por ela é falso?’ quis gritar, mas a mera possibilidade disso estar correto era uma afronta. Simplesmente não podia.

No meio do pesadelo, quando Sea estava prestes a quebrar... sentiu sua mão ser segurada. Todos os sentimentos negativos indo embora, dando espaço para um calor amoroso. Desde aquele dia em diante pensou ter sido influência de Safira, a garota que arriscou sua vida para protege-lo. Desenvolveu sentimentos românticos sobre ela. Mas se o catalisador inicial fora uma das interferências de Limit...

— Não! — ela negou fortemente. As lágrimas pararam, e até mesmo seu rosto ficara irritado. — O que você sente pela mamãe não é mentira! Eu ainda estou em você, entendo seus sentimentos e posso controla-los, aquilo não era mentira. Senti o amor que você sentiu pela mamãe, ainda sinto! Também amo ela. Talvez eu tenha influenciado um pouco, mas não fiz tudo sozinha. Você realmente se sente bem perto dela! Ela te faz se sentir bem! Eu sei disso!

Suas palavras saíram mais como um grito, um apelo, querendo que tudo fosse real. As lágrimas quase pulavam de seus olhos, e o rosto ficara vermelho. Assim como Sea, não poderia suportar uma mentira dessas... acreditava do fundo do coração.

Ainda assim, Sea estava relutante. Sua expressão fechou, tanto olhos quanto sobrancelhas tinham espasmos. Se realmente seu primeiro amor era só uma mentira criada por uma incoerência de sentimentos... no que poderia acreditar?

— Simplesmente confirme! — antes que Sea pudesse ficar ainda mais melancólico, Limit esbravejou. — logo você vai acordar, e poderá se encontrar com a mamãe. Lá você confirma por si mesmo se o que sente é amor ou se fui eu manipulando seus sentimentos! Pare de agir como criança, encontre as respostas por si mesmo.

Até mesmo a jovem havia ficado irritada, não era onipotente ou onisciente, continuava uma pessoa normal que passara por situações adversas. Não podia responder todas as perguntas de Sea. E mesmo se pudesse, sentia que não devia.

As sobrancelhas foram ao chão. Sea cresceu acostumado a ter respostas fáceis. Internet, livros, seu vô... fontes de conhecimento acessíveis e quase globais. No fim, lembrou de sua conversa com Safira na estalagem. “cada pessoa é complicada, como se um universo vivesse dentro de si,” era demais pedir que se entendesse, ou ao menos que fosse de imediato. Relaxou o corpo e sentou na posição de antes, Limit acompanhou.

— Prometa...

— Hum?

— Prometa que não vai mais interferir nas minhas ações e sentimentos...

— ...

Ao menos, daqui para frente, Sea queria ser ele mesmo a todo segundo. Talvez encontrasse uma resposta mais clara sobre sua pessoa. No entanto, a única certeza que tinha era que não permitiria mais controlarem seu corpo.

— Claro, eu já pretendia isso... — sua voz saiu rouca, um pouco receosa. Sea quis perguntar o motivo do tom, mas deixou de lado. Não queria estender ainda mais esse assunto...

A garota limpou o restante do rosto e arrumou a franja, passando um pouco do excesso por de trás da orelha. Sea ainda estava indeciso, prometera a si mesmo não mais pensar nisso, ao menos durante a conversa, mas não conseguia. Era desesperador.

— Mas sabe, se você vier a confirmar que ama a mamãe... — sua voz mudou. — Ao menos tenha certeza de corteja-la direito! — deixou a tristeza anterior de lado. Talvez tenha parecido forçado, mas tinha de corrigir o clima. — Sério, onde já se viu conhecer a garota por dois dias e propor casamento!? Sabe quanta vergonha alheia senti vendo aquilo!? Burro! Papai burro! Você não merece a mamãe.

— ... — a troca de tom foi repentina, indo do pesado ao leve. Sea viu que era a única forma de deixar os pensamentos confusos de lado, e foi junto. — Eu sei, beleza? Ela é areia demais pro meu caminhãozinho! E eu nunca amei ninguém antes, certo? Toda garota que já chegou perto de mim me batia ou caçoava!

— A-ah... Desculpa, papai......

— ... Sem problema.

Limit esqueceu totalmente a relação de seu pai com outras garotas, destruiu sua autoestima de repente, não que já tivesse muita. Ela se desculpou meio temerosa de quanto dano causara, e por mais que Sea tenha dito que levava numa boa, parecia apenas ter sido mais profundo.

— Ah, isso é algo que venho querendo perguntar há um tempo.

— Hum?

— Por que papai? Eu meio que sinto que te entendo perfeitamente, entendo o porque desse tratamento, mas meio que não compreendo...

— Hum... — Levou o dedo até a boca, indicando estar pensando seriamente. Após alguns instantes juntou os braços por trás das costas e respondeu. — É meio a sensação que passa, sabe? Quero dizer... desde que o mago apareceu, nos separamos. Eu estava sozinha nesse mundo escuro, porém você sempre esteve comigo... me ensinou sobre tudo que sabia, me alimentou, protegeu dos valentões, — ‘ou ao menos tentou’ quis dizer, todavia estragaria o clima, então apenas soltou uma risadinha. — me deu uma cama quentinha... cuidou de mim desde o nascimento. Não sei o porque ter vindo parar aqui, nem o que vai acontecer, mas de certa forma... você me criou, não?

Sea ficou parado por alguns segundos. Tonto, paralisado. Essa fala podia facilmente ser entendida como uma declaração de amor, mas não no sentido romântico, e sim no familiar. Sensações diferentes, porém a alegria era igual... talvez tão grande quanto.

Não pôde deixar de soltar um sorrisinho tosco, em sua mente entendeu ter recebido a primeira declaração da sua vida.

— ... — o sorriso de seu pai começava a incomodar. Também começou a pensar em sua própria fala como uma declaração, e por isso seu rosto corou e desviou o olhar. — Boboca. — o xingamento veio quase sussurrando. — Não fica assim, olhando, sem dizer nada...

— Eu te amo.

— Uh... uah...? Ugyah!?

Para os apelos de sua filha, Sea respondeu com o primeiro pensamento em mente. A garota de cabelos azuis não esperava por isso, demorou até digerir. Na realidade ainda não tinha conseguido entender o verdadeiro peso dessas três palavras, e antes que pudesse, Sea trouxe seu corpo para perto, abraçando-a com força. Ambos não sabiam o porque, mas tinham uma vontade intensa de chorar.

— Eu... também te amo... — foi a única forma de responder. — Mas veja bem! — ela deixou isso de lado rápido, tinha medo de continuar esse agarro por mais tempo... — Você é o papai e a mamãe é a mamãe! Não vire um talarico! E nem vem com essa de amor puro e perfeito, te conheço bem. Se pular a cerca juro que te mato!

— Eh.... eu juro que o harém era brincadeira.

— Sim, você já é um paspalho por si só. Conquistar a mamãe é tipo ganhar na mega-sena. Está muito além dos seus sonhos! Fique feliz por ter uma chance com ela.

Para essas afirmações completamente verdadeiras, Sea só pôde exalar um suspiro de derrota. Passou por sua mente que todas as garotas da família Scalding teriam esse temperamental forte e quente...

— Mas... enfim, você realmente não sabe o que é? Ou o porque disso tudo acontecer logo comigo?

— Hum, quem sabe? Ao menos deve ter relação com esse mundo, procure direitinho aqui, viu? É bom saber o que sou. — ela falou de forma poderosa, queria saber o que originara tudo isso. — Mas talvez eu seja uma bela bruxinha meio-elfa de cabelos prateados e olhos violeta? Talvez o irmão gêmeo de outra pessoa que você salvou na infância, aí se tornou um psicopata? Ou talvez eu tenha sido o próprio assassino em série, quem pôs toda a culpa no pai por ter medo de suas próprias lembranças? Ou quem sabe seu lado espelhado da escuridão, a corrosão de seus desejos puros de altruísmo?

— ...

Sea demorou um tempo até entender, mas logo notou que Limit estava simplesmente fazendo referência a mistérios de algumas obras que havia assistido. Ficou ainda mais claro quando o sorriso manhoso e brincalhão aflorou em sua face. Não sabia se as obras citadas eram suas preferidas, mas se fossem, ela com certeza tinha bom gosto.

Ele abanou as mãos em derrota.

— Bem, os mais óbvios seriam algo como... reencarnação, você ter se posto nessa situação e ter perdido as memórias, ou feito arbitrariamente... ou é a filha biológica, laço vermelho do destino etc etc. — ele foi supondo de forma geral, mas à medida que falava mais parecia besteira.

— Hum, são plots bem interessantes para algum anime ruim de temporada. Se eu tiver de ser algo, quero que seja criativo e bem feito! — falou de forma egocêntrica, como se pudesse escolher a qualidade de seu passado.

— Estamos em um isekai, não espere criatividade.

— ...

Para esse último ponto a garota não teve resposta.

— Enfim, quanto a filha biológica... acho melhor não apostar suas fichas nisso... ao menos neta.

— Huh?

— Bem, meu cabelo é azul, — trouxe seu cabelo para frente, destacando-o. Também passou a mão para mostrar como era sedoso. — só que os olhos são verdes... bem, a não ser que você seja torturado por horas e repentinamente mude sua cor de cabelo para branco.... no caso, verde, isso só pode significar que...

— Tá, tá, já entendi! Descartei a hipótese de biologia!

Basicamente Limit quis insinuar que era impossível nascer com olhos verdes se fosse fruto de Safira e Sea. Até aproveitou a oportunidade para zoar um pouco seu pai. Ao fim levou a mão à boca para esconder as risadinhas.

— Ainda assim, conquistar sua mãe parece complicado...

— Ora, você ficou dois meses treinando para salva-la! O que as garotas mais curtem em um homem é o esforço deles! E se não tiver dado certo só com isso... Row! Row! Fight The Power!

— Sim, você com certeza tem um bom gosto excepcional.

Para essa última referência ele se sentiu na obrigação de elogiar, e Limit respondeu com um sorriso largo.

Todavia, a graça acabou logo.

— Ah!

Ela deu um grito assustado, e logo depois puxou Sea para perto. O garoto não havia entendido o motivo para tal ação, só que quando olhou para trás viu o círculo branco diminuindo... sendo tomado pela escuridão. Se não houvesse sido puxado, teria entrado em contato direto.

Sea olhou em volta e notou que o outrora enorme círculo estava bem menor, diminuindo em uma velocidade crescente se olhasse de perto.

— Já venho querendo perguntar há um tempo, mas... o que seria... ‘isso’? — sinalizou com os dois indicadores o preto que se aproximava.

— Eu falei, não? Ódio é um sentimento que corrompe tudo de bom... digamos que essa seja a representação física dele. “Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma,” certo? O ódio tinha de vir para algum lugar. Aqui está, no subconsciente da sua mente.

— Você cresceu aqui, assim?

— ... — a pergunta não foi o que esperava. Contudo ficou feliz por Sea ter se preocupado primeiramente com seu bem-estar. — Hue... Não, hum... bem, vou ter de explicar isso também.

Ela limpou a garganta com algumas tossidas e foi para o centro do círculo, trazendo o homem consigo. Falou:

— Bem, quando cheguei aqui estava tudo limpo... com o tempo ia ficando mais escuro, já que obviamente o ódio que eu barrava vinha parar aqui. Não estava tão problemático, possuía uma boa capacidade ainda... até que aconteceu a emboscada com Elias. — ela conferiu que Sea estava ouvindo com atenção e continuou. — Eu... meio que sabia que você não o venceria treinando durante esses dois meses... então, naquele momento... fiz uma decisão. Sabe, mesmo que eu possa controlar seus sentimentos e corpo, não é algo onipotente... tem limites. A melhor forma que encontrei foi priva-lo do sono. Só que eu não conseguiria manter isso por dois meses, então... nos aproximei. Quebrei o “limite” entre nós, e cada vez mais íamos nos tornando próximos.

— Isso significa que...?

— Bom, eu também controlo o corpo no sentido material. Liberei uma quantidade vasta de hormônios, botei órgãos para trabalhar além do normal... essas coisas. A propósito, sua expectativa de vida deve ter sido cortada pela metade. — Sea não se importou com essa última fala. Limit se surpreendeu, porém continuou. — Ao mesmo tempo tinha de controlar seu ódio... era algo constante durante os dois meses, e a única cura era a mamãe... sem ela o jeito era eu. E esse é o resultado. A mamãe é mais importante do que você pensa, viu? Em dois meses ela fez isso tudo... — falou destacando o universo negro no qual se encontravam.

— Então você pegou meu corpo por...

— Sim, havia atingido o limite de seu ódio bem naquele momento. Quando saiu do castelo e observou o ambiente no qual foi emboscado... ardeu um ódio puro. Tive de tomar controle do seu corpo para concluir o duelo.

— Mas se supostamente eu tava no meu limite, como estamos conversando agora?

— O duelo. — seus braços se cruzaram. Também seu olhar ficou atento para o círculo que se fechava. — aquele final eu usei uma pequena porcentagem do ódio contido em você... o que nos possibilitou essa pequena conversa.

— Pera pera pera pera.

Sea chacoalhou as mãos e cabeça para frente. Era muita informação para absorver. Chegava a ser simples, explicava tudo que acontecera com ele durante os últimos meses. Todavia não estava gostando do rumo dessa conversa.

— Por que tá falando como se fosse nossa primeira e única conversa?

— ... Hue. — ela riu como forma de mascarar a tristeza na voz, mas não foi o suficiente, deixando suas emoções bem claras. — essa é nossa última conversa.

— Não brinque com isso!! — ele tomou impulso e segurou Limit pelos ombros. Imaginou que ela fosse desviar o olhar, mas não. Encararam-se fixamente. — Você não está brincando...?

— Você não pode voltar ao seu corpo nessa situação. Eu sou uma existência virtual. Pretendo transportar todo seu ódio para meu subconsciente e... bem, provavelmente só devo sumir.

— Não fale disso com tanta calma!

Súbito. Muito súbito. A conversa inteira teve seus altos e baixos de tensão, mas parecia estar indo para um caminho pacífico... por que terminara assim?

Mas bem no fundo, Sea tinha consciência. Para falar algo de forma tão calma e resoluta, Limit sabia desse fim desde que fez a escolha no buraco. Acabaria assim.

Estava o tempo todo conversando com uma jovem garota consciente de seu breve fim...? E ela conseguia ser animada...? Saber disso apenas o machucava ainda mais. Estava além do que podia suportar.

— E se... e se a minha consciência fizer isso? Você não precisa morrer, certo? Podemos dividir o corpo, ou algo do tipo...

— Papai, não funciona assim. Eu prometo. Não tenho como sobreviver além desse ponto.

— ...

Podia ver na entonação de suas palavras que não mentia.

Estava assustado. Temor preenchia seus ossos. Depois disso tudo, a pessoa que o protegera durante toda a vida iria morrer...? Por sua causa?

De repente, viu tudo dentro de si mudar de lugar. O que estava lá já não mais estava. O sorriso originado na conversa cessou. Mesmo as lágrimas que soltava devido o choque secavam. Era ridículo pensar que essas conversas com Limit nunca mais seriam feitas. Algo estava fora do lugar, uma anomalia dentro de seu eu.

Sem ao menos esperar tudo iria acabar. Sem aviso prévio ou palavras. Pela velocidade do círculo não devia restar muito mais que dez minutos de conversa. Tinha medo. Acordaria pelo resto de sua vida recordando dessa pequena conversa de uma hora, ou viria a esquecer? Queria manter no presente. Sentir a voz todos os dias, as risadas, zoações, referências... não desejava ter como uma memória.

Quando acordasse... iria sorrir ou chorar...?

Não mais se encontrava são. Seu estado mental estava imerso em águas escuras, tentava nadar em busca de ar, porém afogava-se na própria incompetência. Culpava-se por tudo. Se ao menos houvesse sido mais inteligente, notado as entrelinhas dessa misteriosa existência que o cercava... as coisas não teriam tomado tal rumo.

Sea possuía uma visão do mundo um tanto quanto neutra. Não choraria pela morte de milhões, assim como não ficaria alegre pela salvação de uma criança. Ao menos era o que pensava. A todo custo buscava se manter imparcial aos seus arredores. Para que pudesse ser um antropólogo de respeito. Conhecer cada cultura, pessoa e sociedade sem as amarras do preconceito.

Porém, no fim, Sea Scalding continuava humano. Humano esse que chora, ama e odeia. Simplesmente diria ‘tanto faz’, buscando a própria sobrevivência. Agora não dava mais. Era ele próprio tentando se enganar. Não poderia mais não se importar, ou mentir com isso.

Já tinha quebrado esse padrão ao se envolver tão diretamente em algo importante como uma peça de relevância, mas foi contra seus desejos. Na realidade, seu intuito nesse mundo era fazer o mínimo de barulho possível, não sujar as belezas intactas desse universo... observa-lo como uma criança lendo uma história. Sem afetar seu conteúdo.

Havia se desviado, mas pelo seu amor por Safira, que também considerara uma pequena exceção.

— Espera aí...

Não poderia mais manter essa linha de raciocínio.

Agarrou com ainda mais força Limit. Ela se assustou. Seu pai estava quieto há um tempo, então não esperava por isso.

— Existe uma regra de três desejos nesse lugar, certo...?

— Huh?

— O criador, naquela invocação, e que explicaram. O ganhador dessa droga de torneio receberia três desejos. Não posso simplesmente ganhar essa droga e desejar que fique...? — o termo correto seria ‘volte’, contudo Sea não queria afirmar que Limit caminhava para o seu fim.

— ... — o rosto da garota ficou um pouco confuso de início, mas ao entender tudo ficou neutro. Seus olhos rolaram como se pensando na possibilidade. — Papai. — chamou a atenção de Sea, que arregalou os olhos. Deu um sorriso largo. — Faça o que quiser.

— Huh...?

Antes que percebesse, o círculo já estava extremamente pequeno.

Havia mesmo ficado tanto tempo refletindo...?

Sua cabeça foi de encontro ao ombro de Limit.

— Se você tiver sucesso, pode ao menos me dar um nome mais bonitinho...?

— River!

— Hum...

Sua resposta foi imediata. Não queria perder mais tempo. Faria tudo que a garota em sua frente dissesse. O nome já estava sendo elaborado em mente, então respondeu na mesma hora.

—É um bom nome. — ela soltou mais uma pequena risada. Depois seu rosto ficou de uma paz imensa. Parecia estar confirmando algo. — River...

— Pera! Realmente não tem outra forma? Talvez se eu falar com o criador, ou deve ter algum meio para transferir esses sentimentos-

— Papai. — ela o parou com o dedo indicador, selando sua boca. O rosto de Sea estava destruído. Cheio de emoções de tristeza. Choro, confusão... — Me dói ver você assim. Mesmo que eu não esteja aqui, você ainda vai se lembrar de mim, né? Talvez seja egoísta, mas é o suficiente. Meu maior objetivo de vida, encontrar você, foi concluído. Vê-lo assim, animado, bobo, carente... era bem como te imaginava. Mesmo com a dor que vá sentir assim que eu não estiver aqui... peço que lembre dessa nossa breve conversa com um sorriso, não com lágrimas. Se eu não fosse ficar feliz com esse nosso diálogo, teria partido sem me despedir. Pode não parecer, mas seu abraço e sorriso mudaram meu mundo... mesmo que por pouco tempo. Vai haver uma cicatriz em seu coração que vai doer... O mundo vai continuar girando, assim como uma roda gigante... e você também. Ninguém para no tempo. Enfim... Sorria um tantinho quando lembrar de mim, tá bom?

O choro de Sea não cessava. Ridículo, patético. Era como se devia descreve-lo. Mesmo a garota estando em seus últimos minutos de vida, tinha de conforta-lo... não pensando no seu próprio bem, mas sim no dele. Como sempre foi... como está sendo.

— Por que... — ele parou o choro, mesmo que não pudesse ajudar com a voz trêmula, fez o melhor para manter uma feição normal. A sua de costume: sorridente e boba. — mesmo eu sendo o pai... por que os lados parecem tão trocados...?

— Hue... — uma risada veio dela. Ao menos seu último desejo estava sendo completo... era tudo o que queria.

O abraço se tornou mais forte. As lágrimas de Sea pararam, mas não por falta de emoção. Não se perdoaria se nos últimos momentos de River não cumprisse seu último desejo.

Podia ter passado mais tempo, conversado sobre mais coisas. Escola, animes, relações, comidas... mas não seria mais possível.

— Eu juro que vou te trazer de volta...! — um misto de choro e animação forçada saiu junto sua voz.

— Eu te amo... — sua voz saiu duma junção de melancolia, remorso, desejo... mas, acima de tudo, aceitação e paz. —  Espero que dessa vez possamos ter nosso tão merecido final feliz.

Em meio ao universo negro repleto de escuridão, o círculo branco se fechou por completo. O mundo se foi desintegrando pouco a pouco junto a consciência de Sea... o início do fim.

Agora, tinha um objetivo. Ganhar esse jogo...

Tendo que ser o mais bom possível para tal...

Tendo que ser o mais demoníaco possível...

Não importava.

Quando Sea acordar, irá sorrir...? Ou irá chorar...?

...

—Há...

Sua consciência voltou. Parecia ter durado eras, mas se estava de volta ao mundo real, significava que três meses haviam passado.

Continuava sendo um tempo bem pesado, mas necessário para sua recuperação.

Não demorou muito para Sea se levantar das cobertas. Trajava uma roupa completamente branca, parecida com de hospital, mas uma peça única, e cobria todo o corpo, do pescoço aos pés.

*...*

Uma voz soou pelos seus ouvidos. Bela, calma e pura... como se viesse de um anjo.

Não demorou para que soubesse quem detinha tal voz.

Correu até a porta. Ainda era de manhã, não parecia estar sequer perto do almoço... O clima estava agradável e fresco, com o raiar do sol iluminando toda a extensão das terras. Um dia de primavera.

Chegou à maçaneta, contudo antes de abri-la viu um espelho. Instintivamente o olhou, tinha de ver seu rosto.

— ...

Como pensava.

Não havia errado.

Não precisava dizer qual era sua feição nesse momento.

Não se importou mais e saiu do quarto.

Avançou com toda rapidez que podia pelos corredores. O corpo imóvel deveria estar um pouco raquítico, porém estava relativamente mais fácil de mover do que imaginara. Seguiu a voz, andou por seis, sete... nove portas até encontrar a origem.

Abriu-lhe sem esforços. Na sua frente uma sala de música com os mais variados instrumentos. Um piano preto e lustroso à esquerda, uma série de instrumentos de corda na estante... dentre vários outros compondo o cenário.

— ...

Uma pessoa no centro da sala era o alvo. Seus cabelos vermelhos estavam tão longos quanto nunca, voando pelo lugar com o vento proveniente da janela aberta. Um vestido branco e florido cobria sua pele, deixando aberturas nas costas e na região da clavícula.

O som parou, seguido de um “uh” surpreso. As mãos unidas no peito se descolaram, sendo jogadas sobre a poltrona vermelha que estava. Luzes verdes dançavam pelo ambiente, deixando tudo aquilo mais mágico junto a figura da garota.

Lentamente ela virou o corpo, revelando seus olhos azuis como mar e longos cílios. Não tinha erro.

Sea avançou com força contra a garota surpresa, gritando algo incompreensível. Voltando ao que havia perdido há tanto tempo.

Ele sorriu.



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