Shelter Blue Brasileira

Autor(a): rren


Volume 3 – Arco 2: Desejos

Capítulo 1.1: Nesse céu em pedaços

Um som de batida ecoou e se repetiu, tornando-se mais alto e próximo. Feixes de luz dourada acenderam-se em sequência, vazando entre as nuvens de chuva que começavam a se dissipar, formando a passarela que revelava uma única figura.

— Eu consigo sentir o quão triste está o estado de nosso lar, mas precisamos aceitar essa vergonha! — Com o último impacto de seu salto, colocou as mãos sob o peito e fez a voz reverberar, rompendo o silêncio.

No alto do castelo de vidro, com torres afiadas e couraças decoradas em metal, estava uma mulher esbelta de longos cabelos prateados à beira da sacada. Usava um vestido decotado com fenda lateral e uma tiara. Como uma divindade prestes a inspirar.

Os olhos do povo que a contemplava se desviavam, mãos tremiam e corpos se encolhiam; sussurros e soluços escapavam pelo ar, intensificando-se diante da vastidão que os cercava. Naquele abrigo, não existiam mais barreiras que os reconfortassem. Restava encarar a realidade nua e crua de um mundo em que a ilusão fora rompida.

— Estou ansioso pro momento em que soltarem os fogos de artifício — disse Jun, desligando a tela do celular.

— Eu fico curiosa pra ver algo assim nesse céu… mas de manhã não tem graça. Imagina só isso brilhando à noite, ia ser mágico! — Ela entrelaçou os dedos aos dele e o puxou, acelerando os passos.

Apesar de terem parado de assistir ao anúncio, era impossível não o presenciar. Estava nos televisores espalhados pela cidade, nas mãos dos civis e até nas paredes dos prédios. A rainha Yuriko Hirose queria garantir que todos testemunhassem sua imagem e ouvissem sua voz.

As pessoas eram mostradas em vista panorâmica. Gotas escorriam de suas vestes e cabelos encharcados. Uma aglomeração que exalava fedor, mesmo a quilômetros de distância. Misturada à fumaça dos acontecimentos do dia anterior, a cena se tornava ainda mais imunda.

Conforme as palavras da mulher prosseguiam, a filmagem mudou para mostrar uma garotinha ajoelhada, em prantos, nos braços da mãe, que acariciava sua cabeça. Trajavam roupas de seda com bordados e acessórios delicados, agora encardidos e gastos. Na visão de Jun, era tão lamentável que beirava o cômico. No fim, tudo não passava de uma encenação dramática.

— Vem cá, vem cá, eu preciso que você experimente um desses. É obrigatório. — A moça, de cabelos brancos, arrastou o namorado até a barraca para comprarem dois crepes, quase saltitando de empolgação.

Jun nunca havia provado esse tipo de comida, mas achou curiosa a mistura de massa, sorvete, bananas e chantilly. Já Rie escolheu algo mais carregado, com granulados e outros ingredientes que ele não reconhecia. Ela se lambuzava e emitia pequenos sons de prazer sem perceber.

Não perdendo a chance, o garoto de cabelos carmim passou o dedo na bochecha dela e levou uma sobra da refeição à boca.

— Ei! Não faz isso em público, não! — Arrepiando-se como uma gatinha assustada, Rie contestou, com o rosto tão vermelho que parecia expelir fumaça.

— Oh, coitadinha… — Jun saboreou o gosto e deixou uma risada curta escapar. Rie o atingiu com soquinhos no ombro.

Ninguém prestava atenção nos dois naquele momento. Grupos se amontoavam pelo parque, enquanto as poças refletiam o céu ainda turvo. Risadas ecoavam de todos os lados, algumas altas o bastante para espantar os pássaros das árvores. Um homem batia palmas; duas mulheres, sentadas no banco encharcado, imitavam o tom solene da rainha com trejeitos exagerados. O parque inteiro se tornara a plateia de um espetáculo de comédia improvisado.

— Por mais de mil anos, fomos agraciados pela proteção de nosso céu, mas agora chegou a hora de olharmos além — declarou, abrindo os braços diante da população.

Para o povo dela, os “Ones”, conhecidos como seres únicos e superiores, a situação deveria ser devastadora. No entanto, para a espécie de Jun, viver em meio ao mesmo tipo de caos que eles presenciavam não passava de um dia comum. Por serem apenas “Zeros”, não sentiam a mínima compaixão pela sociedade dourada.

— Mesmo sem nosso domo, agora possuímos meios de detectar qualquer ameaça a milhares de quilômetros. Não há mais motivo para temermos. Permaneceremos como nos últimos mil anos e nos próximos, sem que uma única pessoa seja perdida. — Com postura firme, sua voz ressoou, impulsionada pelos gritos de louvor que se espalhavam.

Diante dessas palavras, uma questão se formou na mente de Jun: qual era a razão de não terem ocorrido perdas durante todo esse tempo? Para ele, tratava-se de algo banal — os que morriam em batalha eram os Zeros. Como o nome indicava, menos que humanos; meras ferramentas. A razão de tratarem aquilo com humor se explicava.

— Ah, é? Então significa que não importava ter o domo ou não, basicamente? — após limpar o rosto e retocar a maquiagem, Rie comentou.

Ele estendeu a mão para ela, e o casal retomou a caminhada. Seguiram por calçadas de mármore trincado, onde o musgo se espalhava, e por pontes de madeira sobre rios de águas correntes, cercados por prédios e arranha-céus de vidro cobertos por trepadeiras.

Quando precisaram se separar para cumprir funções diferentes, soltaram as mãos e se despediram com um sorriso. Conforme Rie desaparecia de sua visão, Jun observou várias fadas — pequenas criaturas luminosas, com asas de borboleta que cintilavam em branco — voando e pousando entre as ilhas suspensas no céu, junto de cardumes que nadavam no ar, com corpos formados de energia. Embora o cenário o acalmasse, um calafrio se instalava a cada passo.

— Mas agora chegou o momento de enfrentarmos um novo desafio. — As comemorações cessaram outra vez. — Toda essa destruição que vocês presenciam foi causada por uma única pessoa. Um garoto que não apenas enfrentou todo o nosso exército sozinho, como também poupou a vida de todos, pois eram tão insignificantes que sequer valia o esforço para ele… uma completa humilhação…

Um grupo trajando uniformes de combate, que Jun supôs estar a caminho de uma missão, lançaram olhares atravessados. Ele apenas acenou e sorriu de volta, seguindo adiante até o prédio principal cercado de instalações.

— Mesmo assim, não irei esconder e admitirei… — Ela fechou os olhos e soltou um suspiro longo, como se cada palavra lhe custasse a vida. — A culpa disso tudo foi fruto da nossa própria falha, pois o responsável por fazer o garoto tomar tal atitude e, também… o único a morrer nessa tragédia, foi um dos nossos — mordeu os lábios e manteve-se cabisbaixa antes de erguer-se outra vez. — Um traidor que quebrou… um dos mais severos tabus!

Diante das últimas palavras da mulher, o povo dourado inteiro reagiu com espanto — pela primeira vez, genuíno — apesar da encenação digna de alguém que jamais estudara teatro. Para eles, era inconcebível que alguém de sua própria raça fosse o causador de tamanha calamidade. Eram únicos, acima do restante; seres evoluídos.

— Por fim, há uma verdade que precisam saber… — Lágrimas de crocodilo escorreram do rosto da soberana. — Aquele que provocou essa destruição foi meu próprio neto. A cria de minha filha defeituosa, que imaginávamos ter eliminado…

Enquanto Jun subia as escadas do prédio, avistou ao longe uma aglomeração cercada por luzes espalhafatosas apontadas para o alto, parecendo minúsculas de onde estava. Dos transmissores espalhados e do topo do edifício, após uma longa muralha, revelava-se uma cidade magnífica.

Um lugar erguido com arquitetura de ponta, composto por estruturas de mármore branco polido e detalhes em ouro, além de arranha-céus finos e afiados. Uma paisagem que evocava a imagem de uma terra pura e utópica — ou que ao menos tentou ser.

Agora, encontrava-se em ruínas.

Enormes rasgos se espalhavam pelo solo em múltiplas direções, como ravinas artificiais. Rombos e crateras decoravam o terreno como uma pintura abstrata. E quanto às construções? Essa era a melhor parte: um amontoado de escombros e estilhaços. Algumas pareciam ter sido atingidas por algo tão intenso que fez o sólido derreter como líquido.

Certos prédios haviam sido perfurados, distorcendo e esticando as áreas atingidas de forma irregular. Outros ruíram em sequência, provocando um efeito dominó, ou ficaram apoiados uns nos outros, formando passagens improvisadas. E havia ainda os dilacerados — cortados como se uma lâmina invisível os tivesse atravessado com precisão.

Tamanha devastação durara menos de cinco minutos — uma tormenta impossível de conter, algo imparável. Mas a causa já fora revelada.

Um garoto, nada mais. O mesmo que agora observava o resultado de suas ações à distância, seguindo o próprio caminho com uma calma quase natural.

— O conceito de Ones e até mesmo de Zeros precisará ser reavaliado, pois agora temos certeza de que há um novo tipo entre nós. Um com poder suficiente para destruir nossa nação, mas que escolheu zombar de nós. — E foi com essa última fala que a rainha concluiu.

Jun lançou um último olhar ao grandioso império dos Ones, agora em frangalhos, pelo canto dos olhos. Tentou conter o riso, mas deixou escapar o ar, ajeitou a gola da camisa e seguiu adiante até seu destino, imerso nas sombras suaves das nuvens de um céu imensurável.

 

* * *

 

As paredes e o telhado consistiam em vidro, enquanto o chão exibia textura e coloração arenosa. De um lado erguia-se uma arquibancada, e do outro alinhavam-se manequins, sacos de pancada e outros utensílios de treinamento. A sensação era a de estar em uma caixa suspensa no ar, enxergando tudo, exceto o que ficava abaixo dos pés.

O movimento do exterior desviava sua atenção.

— Eu sempre quis poder ver isso com mais calma… — comentou a mulher de cabelos prateados, com os olhos fixos no filho.

Linhas de energia fluíam da palma de Jun até a ponta dos dedos, entrelaçavam-se e giravam, assumindo a forma de chama. Eram prateadas, junto de poucas de cor azul. O brilho que as compunha lembrava o de um cristal reflexivo, em vez de uma tonalidade sólida.

Contrações involuntárias percorriam a mão dele, desestabilizando a magia. A perna oscilava e a visão vagava pela sala. A ausência de um domo sobre a cidade trazia uma vista inédita. Ainda levaria um tempo para ele se acostumar.

— Isso não chega a ser um pouco nostálgico, não? — Yuri se agachou, apoiando os cotovelos nos joelhos e o queixo nas mãos. Os lábios dela se curvaram.

— É… pode crer…

Ela ergueu uma sobrancelha. Jun sorriu, mas o canto da boca tremeu. O poder chacoalhou, lançando partículas que se despedaçaram ao som de notas agudas.

“Nesse ritmo, isso vai demorar uma década…”

Ao realizar a união com Rie, ambos adquiriram a mesma aptidão para as técnicas do outro, junto de uma segunda coloração em suas auras. Contudo, para Jun isso trouxe uma consequência: a de ter que reaprender tudo o que sabia antes. Devido à natureza de sua, em vez de somar-se à da garota, seu tipo despertou para um diferente.

Todos possuíam um núcleo onde a energia era gerada. Com um pensamento, ela se ativava e corria por cada parte do corpo num instante. Era como um músculo não físico, sujeito ao cansaço quando estimulado além do limite.

Pela vontade do indivíduo, o formato podia ser alterado internamente ou projetado para fora. Os efeitos possíveis são variados, limitando-se ao conhecimento, criatividade, prática e vigor. No momento, Jun estava na etapa mais básica: fazer seu fluxo seguir seu desejo sem perder o controle ou ficar exausto.

Em sua percepção, era algo que até uma criança conseguia, mas a dificuldade estava no hábito de controlar um estado que já não possuía. Com o tempo, o processo tornara-se automático, bastando lembrar-se para obter o resultado. Agora, se tentasse isso, a magia explodiria, drenando suas forças.

— Quando pequeno, sempre que não conseguia manter a aura, fazia uma cara de emburradinho tão fofinha. Era um amorzinho… — Ela balançava a cabeça, fantasiando as íris iluminadas.

Um calor se formava nas orelhas de Jun. Ele se encolheu, cabisbaixo, curvando as costas e deixando o cabelo cair sobre o rosto ruborizado.

Inspirou e bufou, endireitando a postura. Estendeu o braço, acelerando o giro das linhas, elevando a chama até o teto, lembrando-se da sensação antiga de quão rápido conseguia fazer aquilo. Reverberando por ele com uma eletricidade contagiante. De repente, as duas cores mudaram para tons de púrpura, e um relâmpago atravessou a sala.

A mulher deu um salto para trás, desequilibrando-se e caindo sentada no chão. A visão de Jun ficou turva, e ele soltou o ar de uma vez. Os ombros baixaram, o braço relaxou. Curvou-se, dobrando os joelhos. Piscou várias vezes, firmando os pés enquanto a respiração retomava o ritmo.

“O-O quê? Como assim!? Eu… usei magia elemental? Eu realmente usei!?”

O estado da energia podia ser alterado para assumir outro comportamento, conferindo-lhe nova propriedade e forma. Jun já sabia disso e havia usado antes, porém era uma técnica avançada demais para sua condição atual.

“Bem, pra fazer isso, tenho que tentar replicar como é na prática, então… Como tem uma composição própria, quer dizer que ela é sempre a mesma!”

— Tá, eu tive um bom avanço agora! Qual é a próxima parte? — disse em tom alto, mas interrompeu-se ao notar o olhar arregalado da mulher.

Ela ainda estava no chão, apoiando-se com as mãos atrás do corpo. Encarava Jun com a boca entreaberta, como se tentasse compreender o impossível. O jovem pensou em estender a mão para ajudá-la a se levantar, mas parou ao ouvir uma voz:

— Ei? O que aconteceu? Tá tudo bem aí?

Rie estava parada à porta, com a mão sobre a maçaneta. O vestido preto moldava-se à sua silhueta, e o decote em V revelava a camisa branca por baixo, junto do laço borboleta caído sobre o peito. Uma mecha de seu cabelo deslizou pelo ombro quando ela inclinou a cabeça.

— Está sim. Foi só um susto. — Yuri levantou-se, limpando a saia.

Rie franziu os olhos, ainda vagando, como se tentasse entender o que havia ocorrido. Contudo, decidiu ignorar e caminhou até o garoto.

— Nosso pedido finalmente ficou pronto, olha aqui! — estendeu as mãos, exibindo duas adagas.

As armas tinham sido enviadas ao ferreiro Nobu para manutenção. Desde a união de auras, passaram a se desgastar com mais rapidez. O mais provável era que não suportassem os novos poderes do casal.

Em algum momento, precisariam transformá-las no mesmo tipo de espada que Jun herdara de Yuri — a que ele destruiu na última batalha. Chie guardava uma cópia do esquema da arma, mas ainda não haviam descoberto como recriá-la nem a adaptar às suas.

Apesar de ter tentado se desfazer dela no passado, aquela na palma de Rie permanecia com Jun. Era do mesmo modelo da antiga de cor noturna, após atualizar para uma empunhadura única, porém de um vermelho como sangue. Ele conhecia bem aquele objeto — a lembrança viva dos próprios pecados que jamais o abandonariam.

— Bem… obrigado, de todo modo… — murmurou, estendendo a mão.

Antes que conseguisse tocá-las, Rie puxou o braço para trás, deixando-o agarrar o ar em um estalo seco. Ele parou por um instante.

— Eu não vou te entregar, a menos que me prometa uma coisa, viu? — Ela ergueu o peito, fitando-o de lado com os lábios curvados. — Sabe? Depois de todo o esforço que tive pra ir até lá a pé, sozinha… eu quero que pense em mim sempre que for usar! Me promete, tá? — inclinou-se para ele, apontando com o indicador.

— Ué? Tá sem criatividade, é? Acho que essa não é a primeira vez que escuto algo assim, hein… — Jun respondeu, tentando conter o riso.

— Olha, é só impressão…

— Hm… mas que coisa… — cruzou os braços, batendo o pé.

Ela recuava o braço pouco a pouco, e ele mergulhava mais fundo na sensação de déjà-vu. Jun suspirou e disse:

— Tá, tá bom… eu prometo.

— Fofo. — Rie saltitou de alegria.

O sorriso da garota se abriu em contentamento e, enfim, permitiu que o namorado pegasse a adaga. Jun hesitou, os dedos trêmulos ao tocá-la. Enquanto isso, observou de relance a reação da mulher próxima — um gesto sutil, porém indecifrável.

“O que será que minha mãe pensa da gente?” — a dúvida ecoou em sua mente, sem resposta. Jun sequer conseguia imaginar.

 

* * *

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