Volume 1
Capítulo 13: Tempo Corrosivo
Era uma sala no quartel da polícia. Quadros e armários encontravam-se pelas paredes; canetas e pilhas de documentos estavam pela mesa, uma bagunça organizada.
— Por que você quis ser policial? — perguntou a mulher atrás da mesa. Pela janela vinha a luz ofuscando sua expressão sorridente.
— Huh? Por que do nada a curiosidade? — disse Dante, próximo à porta.
— O que há de mal? Vamos, diga.
— Mas perguntando assim de repente… Bem, sempre é complicado responder isso. Posso dizer se prometer não rir.
— Eita! Agora que fiquei curiosa mesmo. — Sentou-se e apoiou o queixo nas mãos, aguardando a resposta. — Tudo bem, não vou rir. Mesmo se for um sonho infantil.
— Hum… Para resumir, escolhi essa profissão por causa de uma aposta.
— Não pode ser. Eh… Queria desacreditar, mas você não faria piadas com isso. Sério? Por uma aposta?
— Sim.
— Que choque… E pensar que alguém tão dedicado e honrado faz isso apenas por resultado de aposta. Desculpe o comentário, mas a quantidade de “pontos” que você perdeu por falar isso…
— Eu entendo. Peço desculpas por decepcioná-la, delegada Sa-
— Certo, certo — interrompeu —, pare aí. Não há motivos para se desculpar sendo que eu que me intrometi em sua vida pessoal. Foi mal.
— Da mesma forma, não se desculpe.
— Sinceramente… — Preguiçosa, ela se deitou relaxada pela cadeira. — E então? Como era essa aposta?
— Nada de mais. — Abriu os braços, representando possibilidade. — Pesquisador, farmacêutico, bombeiro, médico ou… Era sobre que carreira eu deveria tomar para salvar mais pessoas.
Seu olhar sincero refletia a luz como um espelho.
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Seu rosto torcia-se em ira. Em meio às escadarias, Dante via o homem ser morto pelo soldado restante. A realidade voltava com um gosto amargo.
— AFASTEM-SE! — disse para Otávio e os outros, que estremeceram com ele vindo em passos pesados.
Com o empurrão do braço, o monstro tirou a arma da vítima, que caiu no chão sem forças. Nesse baque seco foi quando o grupo se deu conta que sofreram um assassinato. O sangue deslizava pelos degraus e o abatido mantinha no rosto a dor que o atormentou em seus últimos momentos.
— P-por que… ele tá aqui?! — falou Armstrong, aproximando-se da parede numa tentativa de tomar distância. Era o mesmo para os outros, que aos poucos se distanciaram da criatura.
Havendo um caminho livre, o policial e o monstro se encaravam — alertas. Dante, sujo do sangue expelido do que matou recentemente tendo sua espada em mão, era como um carrasco; o soldado restante observava esses detalhes, afetado por um temor crescente.
Ao ver o corpo do seu companheiro, o monstro alcançou seu limite. Argh! Ele se amedrontou e fugiu.
O grupo paralisou, desacreditados; Dante foi o primeiro a reagir, correndo em perseguição.
— Doutor, cuide dele! — pediu Otávio antes de correr atrás.
O médico e Diego, como ajuda, rapidamente foram verificar o caído.
Pela escadaria, os barulhos dos passos apressados ecoavam. Dante estava com o oponente à vista, mas não conseguia alcançá-lo, a velocidade do invasor era ridícula.
As chamas amarelas espalharam-se.
Sem opções, o policial arremessou sua espada; o monstro olhou para trás, fora quando a lâmina passou cortando seu rosto. Perdendo equilíbrio na corrida devido à dor, sua velocidade caiu, e Dante não perdoou: ao lembrar-se de como perseguia um criminoso — ao estar perto o suficiente — ele avançou da mesma forma que ia para pegá-lo e pulou, derrubando-o.
Os dois rolaram pelos degraus, com o soldado perdendo sangue pelo buraco em sua boca. Suas costas batiam; o piso estourava.
Ao pararem, o policial imediatamente tentou atacá-lo, mas levou um chute no peitoral que o fez voar para a parede. Com essa chance, o monstro correu para a primeira porta que avistou, logo o homem ergueu-se e foi em sua busca.
Dante se surpreendeu ao entrar na sala e ver o buraco na parede com a vista para o deserto, uma passagem que não foi feita pelo seu pessoal. Por essa rota de fuga o invasor sumiu.
Ao se aproximar dela, já era tarde. O soldado descia rápido e, de uma altura considerável, para poupar tempo, pulou direto para o solo. O restante que o policial só pôde enxergar com desgosto foi a corrida desesperada dele pelo deserto, com os ventos empoeirados encobrindo sua existência.
— Porcaria! — Dante socou o chão, rachando-o. Depois, ficou deitado por lá, remoendo-se com o que considerava uma derrota.
Uma grande derrota.
Incontrolável, o tempo passava.
A notícia que os invasores foram expurgados foi dada por Otávio, que escondia sua preocupação por baixo da encenação de alegria.
Muitos se aliviaram com a notícia, outros, mesmo com o êxito, alcançaram novos patamares de paranoia.
Apenas mais tarde, com o rosto enfaixado, Dante deu as caras e anunciou a morte do homem. Os murmúrios aconteceram descontrolados, mas não faltaram voluntários para ajudar a enterrá-lo.
A paisagem do deserto escurecia pela proximidade da noite e, em frente ao túmulo improvisado, o policial a observava com olhar vago.
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Dois dias passaram-se desde então.
Depois da invasão, uma vigilância foi organizada na torre. Sempre haveria alguns nas salas de observação, posicionados para cobrir todas as direções. Desde então, nenhum outro ataque aconteceu.
A movimentação pela torre era livre, mas a maioria das pessoas passava o tempo na sala inicial, quietos. Preocupados.
Da sala médica, Dante acabava de sair acompanhado do mestre espadachim. Lá dentro, Karlos seguia desacordado com a companhia da Eva.
— Ele piorou — comentou o policial.
— Sim. Se não o levarmos rápido para um hospital, vai ser um milagre que sobreviva aos próximos dias. Por favor, tenha cuidado para que isso não chegue aos ouvidos da minha filha.
— Naturalmente. Me desculpe pela falta de resultados…
— Não peça desculpas, Sr. Dante. Sei bem o quando tá se esforçando… Pensei sobre isso, e independente do ângulo em que se veja a situação, essa situação é simplesmente ridícula para qualquer um lidar.
— Obrigado, me esforçarei para dar valor ao seu apoio. — Em seguida, ele entregou a espada de madeira para Diego, que aceitou com leve relutância. — Pegue, já passou da hora disso estar comigo. Com certeza terá melhor uso em suas mãos.
— Entendo… — O homem conferia o material com o toque, lembrando-se do treino que Karlos fazia com uma semelhante. — Ele trouxe uma boa espada para acompanhá-lo.
Pelo caminho, os dois se separaram para irem a postos diferentes.
Novamente em meio ao deserto, Dante investigava os arredores. Diferente dos dois dias anteriores, nesse fazia sol, um escaldante. Apesar da vestimenta o protegendo dos raios solares, a temperatura os faziam derramar bastante suor.
“Explorar as proximidades não acarretou em nada”, pensou o policial. Listava os últimos acontecimentos em sua divagação. “É inviável se aproximar da torre mais próxima; os monstros vieram de lá… A comida e água estão acabando, preciso decidir algo.”
Sua investigação estava desatenta, então não demorou para retornar desapontado à torre. Perto dela, ele sentou no chão para descansar, observando o panorama desolado.
“É inviável uma viagem para longe, o deserto nos mataria. Só nos resta ir para a torre?”
Olhá-la lhe causou profundo desconforto. Sua mão tremeu ao relembrar da luta que teve contra os soldados e da que assistiu do Karlos contra o vassalo.
“Mas se houver mais deles… É impossível ganhar. Talvez nosso destino já seja certo, afinal deixei um dos monstros fugir. Agora mesmo, enquanto considero isso, pode estar sendo organizado um grupo para nos eliminar e não podemos fazer nada além de esperar.”
Cerrou o punho com areia.
“Como posso proteger essas pessoas?! Por favor, alguém me diga!”
Ninguém diria.
Na sala de observação, os homens aguentavam a monotonia de olhar o horizonte pelos buracos. Pelo excesso de poeira jogada na sua cara, Silva — o senhor barrigudo que estava responsável por esse lado — espirrou. Pelo chão, ele via as formas das dunas deformaram-se pela alta temperatura.
— Caraca, que fome — disse o homem em outra parede. — Mas não tenho pressa para comer aquele cereal sem gosto.
— Seja grato ao que tem e por estar vivo — respondeu Silva em um tom amistoso.
— Claro… Só que, cara, eu mataria por uma geladinha agora.
— Com certeza! Ha ha- — parou. O pavor o permeava mais a cada instante gasto olhando o adiante. — O que diabos é isso?!!
Todos se assustaram com seu grito e correram para perto, perguntando o que aconteceu, rodeando-o. Todos, sem exceção, sofreram da mesma reação ao verem o que havia à frente.
Dante levantou ao ouvir um grito fraco chamando-o. Surpreso, o policial olhou para o buraco de observação na torre aliada e viu o sinal com o reflexo de luz num espelho. Entendendo a importância do aviso, ele correu de volta para saber a situação.
— Sr. Dante! — exclamou Silva ao vê-lo chegar na sala, surpreso junto aos outros. — Já fecharam os portões?!
— Sim! Me diga, onde estão os inimigos?! Quantos são?! — Abriam espaço para sua passagem.
— Sobre isso… é apenas um.
— Um? — Enfim pôde olhar. Sua surpresa não foi menor que as dos outros. — O que é essa aparência?!
Destacando-se entre o infinito amarelo, estava uma forma humanoide enorme. Vestia um manto e capuz vermelho-escuro, que sombreava por completo seu interior, restando no lugar da cabeça e braços uma intensa escuridão sem fundo. Os passos dele eram lentos, despreocupados e eram limpos pelo arrastar da vestimenta.
— Que grande! — disse Dante ao observá-la pelo quadrado que fez com seus dedos, pelo qual media a distância. — Pelo jeito, tem por volta de 8 metros!
— Oito metros?! — Os homens arregalaram os olhos.
— Tem certeza?! — disse Silva.
— Teremos certeza quando estiver perto — concluiu Dante. — Não temos escolha…! Espalhem pela torre que entraremos em combate! Rápido!
Eles correram e a notícia voou pelo prédio. Os que tinham que ser protegidos foram mantidos na sala inicial enquanto a maioria dos homens desceu para o saguão, armados com pedaços de madeira tirados das caixas, que seguravam como porretes. Aguardavam com os olhos vidrados nos portões, inquietos.
“Nem aquele monstro gordo que o rapaz enfrentou era tão grande”, pensou Dante. “Como seria possível lutar contra esse gigante?! Não temos canhões aqui ou seja lá o que for necessário para derrubar essa coisa!”
O monstro aproximou as pontas das suas mangas e, pela forma que as balançava, buscava algo como um objeto. Graças à distância, era um ato que passava despercebido pelo policial.
“Pense… Deve haver algo que possamos…” Dante segurou a cabeça pela dor de cabeça vinda do estresse, mas sua expressão abalada subitamente foi tingida de surpresa ao reparar o que a criatura fazia. “Branco?” O tecido sacudia no vento.
O gigante balançava uma grande bandeira branca. Abaixo do sol, era um cegante pedido de paz.
Tempo passou.
Dante havia ido aos portões e esperava que fossem abertos. Equipado apenas com a espada roubada, ao entrar em comparação ao enorme que se aproximava, estava claro nos rostos dos outros a falta de confiança na decisão que tomou nesse meio tempo.
— Fechem os portões imediatamente quando eu sair — disse o policial. Havia conversado com o grupo antes de fazer sua escolha.
— Tem certeza disso? — perguntou Otávio. — Dá tempo de desistir.
— Sim… Irei apostar na possibilidade. — Os portões eram abertos, acertando-o com a luz do exterior. — Se acontecer alguma coisa, lidere-os no meu lugar.
— Certo! — Fez continência em despedida, aceitando a decisão do amigo.
Do lado de fora, o coração do Dante apertou no estalar da madeira selando caminho de volta. Ao dar o primeiro passo, a sua aposta entre entendimento e bobagem começava. O gigante continuava de costas para o sol, criando uma sombra adiante que cobriu o homem.
Ambos pararam de caminhar, trocando olhares. A areia parava de estremecer com a quietude. Pelos buracos na torre, os outros observavam, tensos.
A bandeira branca caiu para o chão, abandonada.
— Consegue me entender?! — começou Dante. O suor pelo seu rosto era frio apesar do calor infernal; o abismo do manto engolia-o quanto mais o encarasse. Para ele, não era mais dia.
Cada segundo era eterno.
O monstro levantou o braço; o policial estremeceu, quebrando sua postura para trás. A resposta que queria — afundada em um tom pesado, próprio do desumano — saiu:
Consigo.