Volume 1
Capítulo 2: Dívida
Revirou e semicerrou os olhos ao acordar, sentiu uma sensação desconfortável e gelada. Seu rosto estava contra algo duro e ao abrir os olhos, viu que estava de cara no chão.
Bocejou, e colocou as mãos sobre o solo para se levantar. Uma dor veio na sua lombar, ele puxou os lábios ignorando ela, se colocou de pé, e começou a se alongar.
— Caramba, dormi de mal jeito. — Abraçou os ombros após uma brisa gelada. — Parece que a tempestade durou a noite toda.
Ele bateu os dentes, estendeu o braço pegando uma capa pendurada ao lado, suspensa por um prego. Coçou os olhos e olhou ao redor, a única luz que entrava saia por debaixo da porta e iluminava até as costas da poltrona.
Ao fechar a caixa com um pouco mais de força, uma sensação pinicou seu nariz, e então ele tentou conter o ranho de saltar por suas narinas.
Após ver o ranho deslizar para fora ele grunhiu enojado, mas limpou com um lenço que estava convenientemente em seu bolso.
— Há quanto tempo eu não limpo essa casa?...
Pensamentos pesavam sobre ele, ele se julgava pela falta de responsabilidade com seu próprio lar, e não percebeu a luz de baixo da porta, aos poucos sumir.
O som das batidas na porta fizeram Ken se revirar no sofá. Kaleek arregalou os olhos olhando-a, hesitou, mas se aproximou após um breve momento que pareceram minutos.
A madeira rangeu após ele tentar pisar de forma silenciosa, cerrou os dentes, ao alcançar a porta, encostou o rosto nela.
— Quem é?
Se aproximou ainda meio sonolento para ouvir quaisquer sons do lado de fora, pôs o rosto contra a madeira, mas, não ouviu nada além do puro silêncio. Fora absoluto, quanto a brisa suave da manhã, que sussurrava através da porta.
As vozes conflitantes eram quase inaudíveis, uma briga era perceptível por uma fala atropelar a outra. Palavras sem nenhuma relação, ou sentido, deixavam tudo mais difícil de decifrar.
Seu corpo tremeu, dos pés à cabeça, com o impacto da lâmina que atravessou a porta a centímetros de acertá-lo na cabeça. Suspirou atônito, sua primeira reação foi olhar com olhos arregalados para a lâmina, depois para a caixa a alguns metros dele.
Mil coisas passaram por sua mente, em especial aquela voz, que aquecia seu peito com o sentimento estridente de ódio paralisando-lhe. Sem conseguir pensar numa solução imediata, se afastou cambaleando.
— Quero o meu dinheiro. — disse a figura do outro lado da porta.
O machado foi retirado com um movimento violento, deixando um buraco na madeira. Socos, cotoveladas e chutes sucessivos foram aplicados no local até que cedesse ao impacto.
A porta foi arremessada contra Kaleek, que foi jogado junto contra a lareira, partindo ambos. O sangue que pingou vermelho na madeira, era quente e carregava gritos contidos do garoto.
Se revirou no chão e tentou se erguer, mas a lasca de madeira em sua perna dificultou, assim como farpas nos braços e uma sensação incômoda nas costas.
Os sons de aplausos era o que manteve ele com os olhos grudados na entrada, após se aproximar mais, viu de quem se tratava. O responsável por jogar uma porta nele, e invadir sua casa.
Acompanhado de dois homens adultos, estava o alvo da voz infernal que atormentava sua mente, vestindo um manto preto com traços em vermelho, ele aplaudia cinicamente ao comprimentá-lo.
— Sua mãe não te ensinou a ter boas maneiras? Precisa atender seus visitantes com mais carinho, garoto.
Não ceder às provocações de Tod, mordeu os lábios e arrancou a lasca de madeira da sua perna. O grito que veio em seguida foi abafado por suas mãos, uma gota de sangue escorreu pelos dedos e pela sua perna.
— Que porra! — Limpou o sangue do rosto. — Precisava quebrar a porra da porta, Tod?
— Me desculpe, eu sou uma pessoa um tiquinho ansiosa. — Juntou os dedos em um gesto, e gesticulou ao falar.
Mesmo atento, não foi rápido o bastante para escapar dos dois homens que se lançaram contra ele, com uma precisão assustadora, cada um deles, chutaram ambas as juntas, fazendo ele se ajoelhar.
Sua respiração foi cortada e ele engoliu seco, foi quando percebeu estar imobilizado. Seus braços eram apertados com muita força, ao tentar movê-los, o homem com capuz ameaçou quebrar seus dedos quando os torceu.
Seus olhos ligeiramente se viraram para seu irmão ao lado, estava imovel e na mesma posição. Conhecendo ele, estava acordado e tremendo de medo, demais para fazer qualquer coisa, ainda sim…
Ken, por favor. Não se meche.
Esperava que seus pensamentos chegassem a ele, mesmo com todo aquele caos instalado, que entendesse que a melhor escolha era continuar fingir estar dormindo.
O soco atingiu seus lábios e fez ele cuspir sangue, passou a língua sobre o corte no lábio e cuspiu logo em seguida. Levantou a cabeça novamente para aquele que diante de si estava, sentado em uma cadeira a centímetros dele.
— Quero meu dinheiro, anda.
— Eu, não tenho dinheiro.
— Então matem! — Tod revirou os olhos.
Sacaram suas facas de forma mortal, o brilho das lâminas cortavam o ar em um som limpo, mas assustador. Após seu líder ordenar, estavam prontos para selar o destino do jovem ali mesmo, em um único golpe.
Não conseguia respirar, era tanta aflição que esqueceu-se de fazer isso, mas precisava gritar o mais alto que puder. Sua cabeça colapsou quando o som da lâmina soou, o vento em suas bochechas, e a morte sussurrou em seus ouvidos.
Seus olhos se ergueram atônitos para os homens, seu coração parou de bater como se já aceitasse a morte. Mas Kaleek gritou, de forma que suas cordas vocais poderiam explodir.
— Um acordo!
A última fagulha da vida, o berro que carregou toda sua determinação em ficar vivo, fez eles pararem. Olharam para Tod, que fez um gesto sutil assentindo. O suor desceu gelado na espinha, sua respiração frenética rasgou o silêncio.
— Prossiga. — Puxou uma cadeira e sentou-se.
O vento gelado entrava pela porta e um silêncio momentâneo se espalhou pelo cômodo. Os suspiros condensados se misturavam, seus lábios tremeram e ele continuou:
— Até o final do dia, eu posso te dar o dinheiro que devo.
— Que piada, acha mesmo que vai fugir?
Houve uma pausa estranha após ele oferecer o acordo, era estranho pois Tod levantou levemente a cabeça, como se estivesse pensado em algo. Seu olhar de certa forma voltou com um certo brilho no olhar.
Engoliu a saliva e o pânico, que desceu pela sua garganta como navalhas, finalmente se recompondo. Encarou o par de olhos com brilho assassino, afiando o olhar continuou:
— Nós dois sabemos, eu não sobreviveria uma noite sequer no lado de fora, em Arneb. Fugir seria uma morte bem pior para mim.
Estalou a língua por saber não se tratar de um blefe, acariciou sua barba ruiva enquanto refletia. O suor voltou a escorrer no rosto do garoto, e seu olhar ligeiramente se voltava para Ken, ainda imovel.
Arneb, a mais fria e implacável das três vilas no extremo norte de Astrea, era um local onde a morte esperava a cada esquina. Suas tempestades noturnas eram mais que intensas — eram inabitáveis.
Sentiu raiva por ele ter razão, mas no fundo ele riu, como um gênio do mal preparando seu plano, aceitou sereno e completamente confiante.
— Tudo bem, mas antes disso…
Os homens viram o olhar de seu mestre mudar drasticamente, assentindo, eles soltaram os braços de Kaleek. Surpreso, tentou se levantar lentamente.
A pressão de seus joelhos jogaram para baixo, como se estivessem amarrados em anilhas de aço. Chegou até mesmo se perguntar, se aqueles dois que o atingiram eram humanos.
— Cure ele, César.
Cesar assentiu, balançou seus cabelos longos e sedosos e se aproximou do garoto que parecia um cachorro raivoso. Ajoelhou-se e tocou-lhe nos joelhos e suspirou fundo.
Gotas de água se formaram e se reuniram na palma de sua mão, semelhante a uma correnteza se acumulando no centro e sendo aplicada na perna de Kaleek —, ficou sem palavras vendo a água sendo absorvida pela sua pele.
A pressão no joelho e pelo corpo todo, se esvaiu junto com os cortes e arranhões. Em alguns segundos sentiu-se leve, sem incômodo algum ao se levantar.
— Bravo! Habilidades dignas da Ordem, você é demais! — exclamou o outro lacaio.
— Cala boca, Bruce.
Bruce se mostrou um admirador das habilidades curativas de César, com isso, Tod se irritou, e golpeou o estômago dele, fazendo ele se calar com as mãos sobre o abdômen.
— Eu não permiti vocês falarem.
Levantou-se ainda meio confuso e fixou o olhar no homem que se aproximava. Enfincou o machado no chão, ele estalou os dedos e segurou o punho fechado.
— Primeiro round, acho bom você cerrar os dentes.
O arrepio que veio em seguida não foi apenas o atrito do vento provocado pelo deslocamento rápido, era como uma premonição antes do impacto do jap direto no rosto.
Mesmo percebendo o golpe, não foi rápido o bastante, recebendo em cheio o soco poderoso. A dor e o sangue pingando fizeram ele cobrir com a mão a área atingida, impressionado com tal habilidade.
— Olha só.
— Orgulhoso, filho da puta…
Mesmo ao acertar em cheio seu rosto, claramente com a vantagem do combate em sua posse, nada fez. Esperou o seu adversário se recompor e ficou parado em silêncio, diante dele rindo de sua expressão.
Kaleek estufou o peito e levantou os punhos para Tod, seus olhos vermelhos arrepiaram os pelos de seu braço. Vendo isso, sorriu e se lançou novamente. Entretanto, algo de errado aconteceu, o homem nitidamente a sua frente, sumiu sem nem mesmo movimentar a poeira do chão.
Olhou pros capangas que estavam calados e com expressão neutra, vasculhou ao redor enquanto mantinha a respiração regular. Naquele breve momento ele não escutou nada, nem sentiu, sua única chance era detectar de onde vinha o ataque, para que não fo-
Seus pensamentos foram cortados pelo soco giratório que veio atrás de si, acertando seu cotovelo e arremessando ele para o canto da sala. A poeira subiu após o estrondo, e se misturou com o berro de agonia.
— Merda…
O som do golpe soou como tiros de uma arma de fogo, podia ver mn seu rosto enquanto ria, que havia talvez se segurado, na verdade essa hipótese era ainda mais cruel.
— Você tá facilitando demais, pirralho.
Algo dentro de si se remoeu, vendo tal arrogância e soberba do homem que ria com as mão sobre o abdômen. Como alguém que acabou de escutar uma piada muito engraçada, ele induziu seus companheiros a rirem também.
— O que é tão engraçado, seu merda.
Suas pernas estavam prestes a colapsar quando se botou de pé, seus olhos fitaram-lhe cerrados. Ao tocar o braço lesionado, voltou a jogar os joelhos no chão e morder os lábios de dor.
O sangue manchava suas roupas, estavam em estado deplorável depois do impacto que rasgou parte delas. As gotas que pintavam e a dor latejante, estavam deixando ele louco.
Tod parou de rir ao sentir a brisa fria que passou por ele, fixou-se no garoto que se levantava com dificuldade, virar a palma da mão para ele com brilho vil no olhar.
Uma sensação que havia experimentado pela primeira vez desde que conheceu aquele homem. Um sentimento que consumia sua vida, que envenenava sua alma, e congelava seu coração: o ódio.
Ele sorriu como se já esperasse, Kaleek ignorou isso, de forma arrastada e fraca ele murmurou, enquanto o brilho azul irradiava de sua mão.
— Dohma.
O som de vidro se quebrando soou, instantaneamente após isso, um grande pilar de gelo se formou logo acima e caiu onde estava Tod e seus lacaios, atravessou o teto e atingiu eles em cheio.
Junto disso veio uma dor estridente e um cansaço inimaginável, seu nariz esguichou sangue e ele se ajoelhou tentando suportar.
O ataque foi um sucesso, mas acabou por destruir metade de sua casa no processo. O grande e cristalino pilar gélido, tomou por completo o ambiente, isso deixou os irmãos a salvo.
— Irmão! — Ken surgiu e tocou o rosto de seu irmão. — Você está me ouvindo?
— Eu to bem…
Sua cabeça latejava de uma forma constante e cruel, o calor que emitia de seu braço e costelas, era uma tentativa desesperada de seu corpo ignorar a dor, mesmo assim ainda não conseguia se mover.
O gosto azedo alcançou sua garganta, regurgitou o suco gástrico enquanto seu corpo ficava cada vez mais lento. Mesmo de forma confusa, conseguiu enxergar seu irmão numa tentativa de ajudar ele a se levantar, enquanto olhou atônito para o pilar.
Ken tentava sustentar seu irmão nos ombros, mesmo sendo menor, se esforçou ao máximo para as suas pernas não cedessem. Estava cansado de só assistir, e se moveu rapidamente para fugir com seu irmão.
Novamente o som de vidro fez seus ouvidos zumbirem, desta vez, acompanhado de um corte que fez tremer o chão. Quem foi o responsável por esse feito, foi o homem encapuzado com um machado, saindo de um corte feito no gelo
— Você é realmente interessante.
— To… — Voltou a regurgitar o suco gástrico.
Antes mesmo de dizer o nome, voltou a vomitar, seu rosto pálido decaiu novamente, não conseguiu ver nada além de manchas.
Não sabia o motivo de estar consciente naquele estado, diversas vezes apagava e voltava a si enquanto era torturado pela própria vontade.
Ken se esforçou para ajudar seu irmão a encontrar uma posição confortável, mas era impossível. Sentiu até seus músculos se contraírem quando tocou seu ombro.
Mesmo que suas pernas tremessem, e sentisse vontade de urinar nas calças, juntou forças para assumir a frente de seu irmão desnorteado, brandiu uma faca tirada da cintura e apontou para Tod.
— N-Nos deixe em paz!
— O garoto tem coragem. — disse César, caindo do céu ao lado de Todd e seu outro lacaio, na qual pingava sangue de manga.
Ele segurava a lâmina com força, não queria largá-la, assim como seu irmão faria, ele não queria que tudo acabasse.
Segurou por ser necessário, por não ter opção, era ele neste momento a proteger quem mais admirava. Precisava da sua ajuda, e ele daria a essa tocha uma chance de ser acesa novamente.
Os olhos vermelhos e os azuis se fixaram um no outro, um sob lágrimas, outro sereno e entediado. Ken arregalou os olhos, e finalmente soltou a respiração ao ver o homem abanar as mãos, mostrando um sorriso amarelo.
— Tudo bem garoto, você venceu. Dessa forma não tem graça…
— Chefe? — Bruce reagiu com indignação.
— Você tem até o pôr do sol. — Seu olhar fixou-se nele atrás da criança. — Já que se esconde atrás dele, ele também fará parte disso.
Não pode enxergar o gesto que fez simulando um corte em seu próprio pescoço, porém, ouviu mesmo que um zumbido tomasse conta da sua audição por um breve momento.
Como alguém que fora convidado educadamente, ele se retirou, agradecendo com um sorriso amarelo, e virando as costas para os irmãos enquanto assobiava.
Esse assobio foi a única coisa que conseguiu ouvir nitidamente, dava arrepios, sentia vontade de fugir. Amedrontava totalmente aquele garoto que se pôs a continuar de pé, mas desabou novamente e atingiu a parede.
Ken não tirou os olhos dele enquanto seguia seu andar apontando a faca, até que ele atravessasse a porta. As pequenas pernas perderam a força após isso, e ele respondeu confuso a essa ação instintiva.
— Hã?...
Já não sentia nada, o borrão a sua frente começou a cada vez ficar menos nítido, os olhos se fechavam lentamente e se esvaiam junto com o brilho amarelo.
— Ken?...
— Isso, sou eu! Por favor levanta, respira… — Sua respiração ofegava enquanto as suas lágrimas pingavam no chão.
As palavras dele, o jeito que soluçava enquanto implorava para que respondesse, fizeram querer aguentar mais um pouco, para que pudesse fazer algo antes de perder a consciência.
— Por favor… não me deixe sozinho…
Sentiu o toque carregado de preocupação e culpa, tentando ascender a última fagulha da sua alma, estendeu o braço fraco demais para se manter naquela posição, perdendo a força segundos depois de limpar a lágrima que desceu no rosto de Ken — deixando no lugar, uma mancha do seu próprio sangue.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios